quinta-feira, dezembro 29, 2022

Dos mistérios do diálogo

     Conversar nem sempre é fácil. Conversar com alguém que não conhecemos na tentativa de esclarecer uma situação desagradável provocada por esse alguém poder ser complicado. Muito complicado. 

    Se o nosso interlocutor for uma pessoa com vistas (aparentemente) curtas ou (verdadeiramente) muito curtas, o diálogo resvala para as bermas da impossibilidade comunicativa. Podemos ter necessidade de repetir a mesma coisa várias vezes tentando a cada repetição ser mais objectivos e, mesmo assim, após 10, 15, 20 repetições, permanecer a sensação de que não estamos a ser compreendidos. 

    Que fazer? Penso que a melhor solução, eventualmente a única solução, é insistir, tentar uma e outra vez sem alterar o tom de voz, mantendo uma certa suavidade no discurso e a possibilidade de um sorriso. Um sorriso é sempre uma "arma" a considerar nestas situações mesmo quando do outro lado encontramos uma cara trancada numa expressão de desconfiança (vistas curtas geram expressões estranhas e sombrias na face de quem as tem).

    Chegados ao termo da conversa a coisa poderá não se ter resolvido mas, pelo menos, teremos encontrado a plataforma de entendimento possível e, quem sabe, numa próxima ocasião possamos alcançar um patamar mais elevado para a resolução do problema. Sabemos bem que a esperança é a última coisa a morrer apesar de não gozar do dom da imortalidade.

sexta-feira, dezembro 23, 2022

Mundo maravilhoso

     O mundo está tão cheio de coisas extraordinárias que é difícil perceber a reles ordinarice.

quarta-feira, dezembro 21, 2022

É Natal (outra vez)

    Deixemo-nos de merdas, o Natal é uma treta. Bem que há quem se esforce por recuperar o Espírito da coisa mas... nada feito. O Natal é, cada vez mais, avidez e desespero, uma espécie de black friday à escala de uma comunidade muito para lá da católica. Uma confusão de conceitos e tradições que por pouco não provoca uma cena de pugilato entre o Pai Natal e o Menino Jesus.

    O Natal transformou-se num imenso negócio. Sem vergonha nem pudor. Todos celebram o Natal sejam católicos, apostólicos, judeus, muçulmanos... todos o celebram de alguma maneira quanto mais não seja a vender alguma coisa a quem tenha feito uma árvore travestida de paradoxo lá num canto da sala de estar. 

    Seria interessante haver quem se desse ao trabalho de calcular a pegada ecológica do Natal.

quarta-feira, dezembro 14, 2022

     Deu por si estava sozinho, mais só que um perú bêbado na véspera de Natal. Acreditara que fazia parte de um todo, que havia mais gente como ele, que tudo haveria de acabar bem. Mas não. Percebia agora que vivera uma ilusão, que as pessoas boas não eram de fiar, que as más eram ainda piores do que ousara imaginar. Ele era o último, o único, o mais puro de todos os homens; mulheres incluídas.

    Virou outra página mas não lia o livro pousado sobre a mesa. Passeava os olhos pelas palavras sem as perceber, sem tentar sequer receber-lhes o sentido. A sua mente divagava, perdido que estava naquele mundo agreste que, decididamente, não o merecia. Nem vice-versa. Num assomo de virilidade encheu mais um copo de vinho tinto e forte bebendo-o num trago vigoroso. Os olhos lacrimejaram, o cérebro desencaixou-se um pouco mais e levantou-se.

    Deu um passo em frente sentindo o vazio imenso de um precipício que o fez perder a noção do espaço e o equilíbrio. Caiu de borco. Ali ficou. O mundo não o merecia, nem vice nem versa.

segunda-feira, dezembro 12, 2022

História do Futuro

    Está bem, pois sim, claro que tem toda a razão! Nunca em tempo algum me passaria sequer pela cabeça contrariar a sua opinião... que digo? Peço humildemente vosso perdão e clemência, o senhor não emite opiniões, apenas e sempre saem da sua boca verdades absolutas momentos antes formadas no vosso espírito inabarcável. Curvo-me humildemente perante Vossa Grandeza.

    Seria assim no tempo dos monarcas absolutos? Gente curvada a parecer marreca mesmo que tivesse nascido com o cu virado para a lua? Nem esses teriam direito a contrariar ou pôr em causa o rei sem correrem o risco de virem a ser rapados, depenados e dependurados, como porcos à espera de serem desmanchados. E a populaça? Lixo, merda, detritos.

    Quanto ódio recalcado não esteve na criação do mundo em que vivemos! Quanto ódio estará ainda reservado para com ele escrevermos as páginas da História do Futuro?

sábado, dezembro 10, 2022

Quietude

    Não se ouvia grande coisa: ruídos esparsos, pequena barulheira indefinida, uma espécie de marulhar urbano. Conhecendo o lugar onde ficava a praia sabia bem que aqueles sons não poderiam nunca ser um eco da voz potente de Poseidon, alguma coisa seriam, só que não o mar, o mar não, isso com toda a certeza.

    Nem sequer apurou o ouvido, nada daquela coisa meio suja poderia alguma vez vir a  interessá-lo. No entanto sentia dentro de si palavras que se deslocavam em conjunto, palavras que formavam frases e pareciam produzir algo semelhante a música; música estranhamente sincopada, animada por ritmos desconexos mas nem por isso menos agradáveis.

    Apercebeu-se de que algo estaria para acontecer; que tudo aquilo: os sons, as palavras mudas, a estranha sensação que dentro dele se formava, tudo aquilo fazia parte de um todo monstruoso, uma dilúvio, um vulcão, uma avalanche que estaria quase, quase a acontecer. Deixou-se estar, mais absorto do que atento, mais morto do que vivo, deixou-se estar assim, tão quieto, tão descansado que até mesmo o deserto dele teve inveja.

quinta-feira, dezembro 08, 2022

7 mares

     Veio-me à cabeça a cantiga dos Sétima Legião, "se os mares são só sete..." e, enquanto a cantarolava mentalmente, apercebi-me que a visão de 7 mares nunca fez parte da paisagem mental de Sócrates (nem da de Platão). Esse conhecimento que, como toneladas de tantos outros, está ao alcance de qualquer estudante do primeiro ciclo do ensino básico nos dias que correm.

    Espantei-me com tanto conhecimento com o qual Sócrates (ou Platão) nunca sonhou (nunca sonharam) e que está aí, à mão de semear de qualquer um que tenha um mínimo de curiosidade ou não tenha nada melhor para fazer. Foi então que me apercebi (mais uma vez?) que a informação está muito longe da sabedoria, ainda mais neste mundo piolhoso, coberto e repleto de macacos que saltam e guincham, alguns até com alegria!

domingo, dezembro 04, 2022

É o bicho, é o bicho!

     A nossa opinião, a minha, a tua, as opiniões dos nossos familiares, dos nossos amigos, devem ter algum valor. Não sei se muito, se pouco, mas algum valor haverão de ter para que sejam empregues tantos meios na tentativa de as orientar, manipular e condicionar.

    Por vezes dou por mim a pensar se a diferença entre um estado democrático e um estado autocrático (ou de outra qualquer natureza política) não será, no fim das contas bem feitas, essencialmente uma questão de maquilhagem. Mas depois lembro-me da Liberdade de Expressão e as dúvidas acabam logo ali.

    As democracias vivem tempos difíceis (alguma vez viveram tempos fáceis?) pois estão infectadas por um capitalismo selvagem que é maleita peçonhenta e incapacitante. As leis complicam-se e engalfinham-se umas nas outras numa confusão que ora mete ordem no bicho capitalista, ora parece protegê-lo como se corresse risco de extinção. E o bicho cresce e fica cada vez mais agressivo.

    Teremos futuro enquanto sociedade democrática? Depende muito de nós mas nem David teve desafio tão angustiante.

    

sábado, dezembro 03, 2022

Cabeçadas

     Andar por aí a bater com a cabeça nas paredes não me parece maneira de estar nesta vida. Reconheço que não é fácil manter o ânimo, sei bem como é complicado descobrir razões que ajudem a manter os olhos abertos, tentar ver mais do que olhar apenas, mas nada disso é pretexto para alimentar a cegueira com pratadas de indiferença e estupidez à mistura.

sexta-feira, novembro 25, 2022

Fábula comigo dentro

     Não tenho bem a certeza se gostaria de ser recordado lá mais para a frente, quando já cá não estiver. Convenhamos que se trata de um falso problema ou, pelo menos, de uma falsa questão; que incómodo me poderá causar o que alguém possa pensar de mim depois de estar morto e enterrado? Talvez por isso, não me tira o sono imaginar a forma como preferiria ser recordado.

    Quando era jovem ambicionava um lugar na História (ah, a vaidade humana!), imaginava a Humanidade como coisa eterna. Agora que se me embutiu no espírito a certeza de que a humanidade é, afinal, coisa breve, um piscar de olhos de algum deus distraído, nem essa ambição merdosa me atormenta. É um pouco como a fábula da raposa e das uvas.

segunda-feira, novembro 14, 2022

O ponto não está à janela

Notas introdutórias à minha intervenção na conversa/debate "O ponto não está à janela" a realizar no próximo dia 16 deste mês e deste ano

 

Vou basear o meu discurso em algumas coisas nas quais acredito mas que não tenho como provar. Serão ideias discutíveis e talvez, por isso mesmo, possamos trocar umas ideias sobre o assunto.

Vou partir do princípio de que toda a representação simbólica do mundo que nos rodeia tem, na sua génese, um impulso mágico que é, como quem diz, um impulso poético.

Estou convencido que o impulso que origina o discurso poético é diverso do que origina o pensamento científico, embora possam existir momentos em que estes discursos, aparentemente antagónicos, se aproximam e se completam.

Afinal de contas, poesia e ciência, magia e matemática, teatro e astrofísica, são formas de representação do mundo, tentativas de nos aproximar um pouco mais dos mistérios da existência humana. Mistérios esses que, no limite, podem nem sequer existir (ou podem ser representados como na simbologia de Almada Negreiros, 1+1=1).

Acredito que a criação da representação simbólica é muito semelhante às brincadeiras de criança, quando sentimos o impulso incontrolável de tentamos encontrar uma narrativa que faça sentido e a moldamos de acordo com os nossos anseios.

Os adultos informam-nos de que existe uma grande distância entre “real” e “imaginário” e que a “realidade” tem um valor muito superior ao “faz-de-contas” mas não nos convencem. Só deixamos de acreditar no mundo que inventamos quando entramos definitivamente no universo dos adultos e corremos o risco de nos perdermos para sempre.

Quando somos crianças imaginamos a vida como um teatro contínuo. E é assim que eu imagino o teatro: a representação incessante da infância inultrapassável e infinita que é a principal e única característica do Ser Humano.

(claro que continua!)

 

quarta-feira, novembro 09, 2022

Como uma barata (tonta)

     Ai as alterações climáticas, valha-me Nossa Senhora! E a guerra? Benza-me Deus!!! Os aumentos de preços dos combustíveis, das rendas de casa, do chá, do café, da laranjada, dos livros (ai, o preço dos livros...), da inflacção, dos juros da dívida, o aumento da ansiedade generalizada, a deterioração da saúde mental dos jovens (como se os adultos fossem impunes à loucura); estamos fodidos? Um gajo quer  perguntar mas não sabe bem a quem dirigir a questão. Alguém que me ouça? Alguém que me responda?

    Acordar e regressar ao mundo dos vivos é todo um processo de aceitação. Enquanto o mundo circundante não ganha consistência absoluta, o cidadão comum pode imaginar que vive num lugar justo e equilibrado. É como viver a infância toda nos primeiros 10 minutos de cada novo dia. Passada a magia do despertar eis-nos de regresso a este "awful place", como na canção dos Clash. A angústia é normalmente pouco, ou mesmo nada, dispendiosa e encontra-se em qualquer recanto do planeta.

    Viver cada dia como se o objectivo fosse mais ser feliz do que apenas chegar ao outro lado do fim da tarde. Caso contrário corremos o risco de nos tornarmos baratas, baratas daquelas que são tontas.

terça-feira, novembro 08, 2022

O urso

     E é assim, a Memória é como um urso, mas com períodos de hibernação imprevisíveis. Pode acomodar-se na caverna do crânio humano e dormitar para sempre ou deixar-se apaixonar pela luz de cada despertar e não parar de atormentar a quem de direito. A Memória como urso... até poderia funcionar mas parece-me uma metáfora entre o perigoso e o merdoso (rima fácil e evidente).

    A sucessão do Secretário Geral do Partido Comunista Português gerou um pequeno sururu entre alguns comunistas frequentadores do Facebook. Li com razoável atenção certa troca de ideias entre eles e o meu urso rolou sobre a barriga, deitando-se para o outro lado, levantando uma pequena nuvem de memórias na minha caverna craniana (não consigo libertar-me desta metáfora!?).

    Aqui estava eu nos meus 14/15 anos, pleno de confiança em mim próprio, confiança essa gerada por uma ignorância quase absoluta em relação a tudo o que fosse coisa, mas irradiando uma aura de energia positiva capaz de atrair outras pessoas para o meu mundo indefinido, onde ainda não houvera tempo para a criação de pântanos. Foi assim que me vi a frequentar a sede do PCP lá em Viseu sem perceber muito bem onde me estava a meter.

    À época havia a UEC, dos estudantes, e a UJC, dos jovens trabalhadores. A JCP seria fundada mais tarde. Se, por um lado, consegui a atenção dos estudantes, muitos deles, tal como eu, oriundos da pequeníssima burguesia, já do lado dos operários e camponeses apenas recebi desconfiança. A minha militância era errática e frágil e o camarada controleiro, montado numa motoreta e com um aspecto grave e concentrado, demasiado grave e demasiado concentrado para alguém pouco mais velho do que eu, olhava-me com vago desprezo. E tinha toda a razão.

    Nunca tive consciência de classe pois nunca percebi muito bem a que classe pertencia (pertenço) embora reconheça e esteja convencido de que a luta de classes é, sem sombra para dúvidas, a seiva das sociedades humanas. Mas o camarada da motoreta sabia (soube-o antes de mim) que eu não estava pronto a abdicar dos meus anseios em favor da Causa. Afinal de contas eu vivia no universo de Ian Dury e do seu Sex and drugs and rock'n'roll. Estava apanhado, a minha luta era outra: a luta pela sanidade mental.

segunda-feira, novembro 07, 2022

Memorabilia

     Não sei se também te acontece, leitor amigo, olhares para trás (olhares o teu passado) e pensares: não vejo nada! A mim acontece-me quase sempre que olho com a vista desarmada. Não alcanço o que vivi e se sinto uma ligeira brisa a agitar-me a memória, rapidamente a janela se fecha e tudo volta à sua habitual quietude de recanto e sombra. Em matéria de memória sou aparentado ao granito.

    Vivo, no entanto, experiências transcendentais quando coloco na mente o potente telescópio da literatura (ia dizer "os óculos da literatura" mas pareceu-me tão fraquinho...) e o meu corpo é trespassado por memórias de toda a índole. É uma experiência com o seu quê de estranheza mas decerto tudo se explicaria com a maior das naturalidades, fosse eu capaz de compreender os contornos do fenómeno.

    Estou a ler "Lições", o mais recente romance de Ian McEwan, e tem sido uma girândola de sensações perdidas e sensações reencontradas; outras, apesar da sua provecta idade, são sensações que me surgem desvendadas como se regressasse momentaneamente à minha infância, à adolescência. 

    Eu sei que as minhas experiências de vida hão-de estar gravadas no meu cérebro: arrumadinhas, sempre disponíveis caso eu possa chegar-lhes, estão à minha espera. Mas, sem ajuda, sem a prótese poderosa da literatura. as prateleiras onde se alinham as memórias são sempre demasiado altas, demasiado confusas e desarrumadas, afundando o passado no caldo tépido do esquecimento.

terça-feira, novembro 01, 2022

O cavaleiro do Apocalipse

     Com o fim do mundo humano a ganhar forma (sim à guerra, as alterações climáticas que se lixem) Deus vencerá a disputa eleitoral com a Democracia, derrotando-a por larga margem. Em momentos de desespero provocados pela iminência do fim até o mais empedernido dos ateus sente um frémitozinho que o leva a ponderar a possibilidade de haver algo mais do que a morte. Perante a morte a Ciência tende a perder razão; Deus não.

    As narrativas do ano mil informam-nos de uma loucura suplementar que tomou as mentes dos seres humanos perante a aparente inevitabilidade do fim dos tempos. O desvario transforma-se em norma quando a racionalidade é engolida pelo medo. O medo é o grande lobista de Deus e parece trabalhar a troco de nada, como trabalham os demónios, apenas pelo prazer de mostrar a sua força, a sua razão, a sua omnipotência.

    Virão em breve tempos de desespero absoluto com Deus montado na sua terrível sede de vingança, capaz de julgar-nos a todos culpados da sua inépcia criadora? O Apocalipse tem um cavaleiro, apenas um.

domingo, outubro 30, 2022

Pequenas coisas

     Há uma estranha sensação a pairar no espaço livre entre o meu crânio e o seu cérebro. É assim como uma pequena mão, mas feita de papel, que não percebo se me afaga se me arranha o juízo. Não chega a ser áspera mas está longe de ser macia. Muito longe de ser macia.

    Há uma névoa incómoda que me impede de ver com clareza os contornos dos pensamentos que vou debitando. Como se pensar fosse algo como fazer "enter" numa caixa registadora: mais um pensamento, mais riqueza, mais valor acrescentado, tlim, tlim. Feito e registado. Próximo cliente!

    Há mil e uma pequenas coisas incómodas das quais não convém falar em voz alta para não aborrecer quem incomoda pois convém não incomodar ninguém. Posso bem suportar eu essa pequena cruz. Como um pequeno Cristo. Fraquíssimo imitador de coisa nenhuma.

sexta-feira, outubro 28, 2022

Coisa boa

     Não sei como funciona. Por vezes sinto uma coisa dentro de mim (talvez no cérebro ou no coração, talvez nas tripas) que faz com que as coisas que me rodeiam ganhem significados aumentados. Em certas ocasiões dura apenas um momento e logo se desvanece ou desliza rapidamente para algum lugar escondido. Noutras situações, a coisa ganha alguma consistência e permanece comigo tempo suficiente para que lhe perceba minimamente a forma e o conteúdo.

    Imagino que seja isto a criatividade. Se soubesse como funciona havia de registar a patente para a oferecer a quem quisesse dela usufruir. Talvez isso fosse uma coisa boa. O mundo está a precisar de coisas boas.

terça-feira, outubro 25, 2022

Heróis

     Todos temos os nossos heróis. Por esta ou aquela razão elegemos personagens às quais prestamos homenagem e com elas constituímos os nossos panteões pessoais e personalizados. É como se fôssemos gregos antigos ou romanos, como se fôssemos vikings ou adoradores de santinhos católicos. todos temos os nossos heróis e não somos muito receptivos a críticas que possam conspurcar as imagens que deles construímos; nem um bocadinho!

    Tenho a sensação de que a forma como vamos elegendo e elevando as ditas personagens tem sempre algo de religioso. Os nossos heróis são geralmente impolutos, capazes de feitos extraordinários, seja no campo das acções seja no campo do pensamento, há muitos lugares em diferentes prateleiras. São fortes de carácter e os sonhos que sonham são universais. Nós somos os discípulos dilectos, guardiões da chama que arde nos seus altares.

    Os nossos heróis tornam-nos cegos. Antes nos tornassem surdos e mudos.

segunda-feira, outubro 17, 2022

Castigos

     Padres pedófilos cometem crime ou pecado? Não sei o que lhes vai na cabeça mas se acreditam verdadeiramente em Iavé devem estar a tremer como varas verdes... ou não? Se o deus do Antigo Testamento for tão violento com os molestadores de criancinhas como é com os inimigos do povo de Israel, é caso para ter os tomates gelados. Mas se, pelo contrário, então está-se bem. "No problemo", citando Bart Simpson, esse filósofo dos tempos modernos.

    Molestar criancinhas é pecado? Há alguma passagem na Bíblia que condene especificamente os que metem as patas onde não devem e pior ainda? Não sei não. Talvez isso possa explicar a atitude laxista dos bispos e outros bosses da igreja católica em relação aos porcalhões que militam nas fileiras das suas tropas evangelizadoras. A coisa fica em casa, lá entre eles, uma família exclusivamente masculina que é como Iavé quer, acho eu. O que têm de meter o bedelho juízes, bófias e pedopsicólogos? 

    Talvez os abusadores de sacristia vão directamente para o inferno. Na volta é o castigo que lhes está reservado e a bispalhada não vê razão para que lhes seja aplicada outra pena, uns anos de prisão, por exemplo. Eles sabem que bater com os ossos na choça não se compara a ter um satanazim a enfiar-lhes uma forquilha na tromba por toda a Eternidade. Nem nada que se pareça.

quinta-feira, outubro 13, 2022

Ele

     O homem (seria um rapaz?) não tinha dentes e também parecia não ter o juízo todo. Deitado no banco, próximo de uma esplanada bem composta de cidadãos respeitáveis, pediu-me que lhe pagasse um abatanado. Dei-lhe 2€. Pediu-me que entrasse no café e lhe trouxesse o abatanado. Disse-lhe que não se esticasse.

    Apesar do calor, estava coberto com umas mantas sebosas. No chão espalhavam-se restos de coisas que talvez tivesse comido. Uma embalagem vazia, brilhante de gordura, dava guarida a uma pequena multidão de moscas nervosas. Ele perguntou-me "gostas de poesia?" ao que respondi qualquer coisa que nem eu próprio fui capaz de compreender. Ele disse-me "vou dizer-te um poema".

    Começou pelo título: "Eles". E foi por ali fora "blãblãblãbambalhã", foi por ali fora e, fitando-me nos olhos, declamou a coisa num longuíssimo e único fôlego apenas interrompido por muito curtas pausas para respirar. Não percebi uma única palavra. Ficou-me uma espécie de música, uma prece, qualquer coisa assim: "blãblãblãbambalhã"; seria um lamento?

    As moscas distraíam-me mas, fosse como fosse, nunca poderia perceber uma palavra do que ele disse além de "eles", única palavra nítida que irrompia aqui e ali, nos momentos das suas curtíssimas golfadas de ar. As gengivas rebrilhantes, sem um único dente à vista, a língua a formar os estranhos sons que eram, afinal, um poema, os lábios húmidos num sorriso que podia ser feito de urgência. A urgência de não perder o espectador ocasional da sua saga.

    Quando finalmente terminou deu uma risadinha mostrando a totalidade das gengivas. "Fica bem" disse-lhe eu. E fui embora com um misto de alívio e traição alojado no peito. Dali em diante tudo mudou de aspecto. A rua pareceu-me mais suja e mais triste, as pessoas pareceram-me apenas pessoas.

    Eu sabia que era aquele poema ("blãblãblãbambalhã") a provocar em mim um certo desconforto, um desajuste na pele que me cobria o corpo. Apanhei o barco e subi ruas de Lisboa mais ou menos atento, mais ou menos desorientado, até encontrar a Ana. Nesse momento as coisas voltaram a ser mais ou menos o que já tinham sido.