segunda-feira, agosto 17, 2020

Saudade

Dizem por aí que a palavra "saudade" não tem tradução, que é a expressão de um sentimento muito português, uma exclusividade nossa, uma bizarria. Tretas! Quem ama e sente a distância sabe bem o que é "saudade". 

O coração mingua, a garganta aperta-se um nadinha, o peito parece ficar um pouco louco, o corpo atrapalha-se. Estas são algumas das sensações físicas provocadas pela saudade. Explicar a coisa no campo psicológico é mais estranho, mais arriscado. Será a saudade uma sensação física?

Talvez; talvez a saudade seja coisa física, talvez não haja explicação possível em termos... digamos... termos médicos. Penso que a poesia seja o meio mais eficaz para tentar explicar a saudade, penso que a saudade seja coisa do campo de uma medicina poética, coisa do universo da magia. 

Que digo eu? Na verdade a saudade não se explica, sente-se. E eu sinto uma grande, enorme, profundíssima saudade.

sábado, agosto 15, 2020

Sossego

Desejar sossego é como esperar um fantasma que nos visite ao pequeno-almoço. Um fantasma simpático, sentado à cabeceira da mesa, todo ele apenas um sorriso. O fantasma não vem, o sossego também não. O lugar prometia silêncio e isolamento. Contas furadas. Começam a chegar carros a este fim do mundo, com pessoas dentro. Pessoas faladoras e bem dispostas, ao menos isso. Ao que parece vão reunir-se para uma celebração religiosa na capela que fica ao lado da casa onde viemos parar desejando sossego. Seja feita a vontade do Senhor.

Trás-os-Montes é um território portentoso. Belo, a prometer selvajaria, montes a perder de vista, um céu azul enfeitado por nuvens muito brancas a perder de vista. Para aqui chegarmos percorremos auto-estradas, itinerários principais, itinerários complementares, estradas nacionais e, finalmente, estradecas esconsas, ladeadas por pinheiros e carvalhos, aldeolas de ruas desertas, finalmente a casa de xisto onde nos instalámos. Uma bela casa, lugar perdido, lugar isolado a prometer sossego. Até que começam a chegar carros, dos carros vão saindo pessoas, pessoas faladoras, pessoas bem dispostas. Ao menos isso.

Ouço dizer que o Senhor Padre chegará por volta das seis e meia. Caramba, nem aqui, no fim do mundo, Deus deixa um gajo em paz e afugenta o fantasma do sorriso. Da capela sobe um cântico a fazer-me recordar a igreja da minha aldeia beirã. O catolicismo é massa unificadora deste portugalzinho rural, perdido dentro de si próprio.

Está visto que desejar sossego é pedir demais a Deus Nosso Senhor.

sexta-feira, agosto 14, 2020

Sonhar não sonhar

O meu sonho seria não os ter, não ter sonhos, quero dizer. Poder não ambicionar nada de especial, apenas não provocar desastres. Sim, penso que se um génio saído de um garrafão me dissesse para eu expressar um desejo a ser magicamente atendido, só um, nem mais nem menos, eu diria: "desejo não causar desastres" e pronto, acho que teria criado as condições necessárias à minha felicidade e, decerto, teria poupado algumas outras pessoas a certas dores existenciais.

Isto aconteceria se, além de o garrafão ter um génio esquecido lá dentro, eu não tivesse sonhos. O problema é que não os consigo evitar, aos sonhos, quero dizer. Sim, porque evitar génios que habitam garrafões já eu sou capaz de evitar há muito tempo. Perderam muita magia embora não os tenha renegado para todo o sempre. Além disso é cada vez mais difícil encontrar garrafões, vem tudo em "boxes". Evitar sonhos implicaria viver em permanente estado de alerta e eu durmo como um anjinho, ou como uma pedra, depende da expressão escolhida para explicar que mal encosto a cabeça à almofada desligo imediatamente e durante umas horas. Quem dorme assim sonha de certezinha.

Está bem, eu confesso: perdi o foco do meu raciocínio, isto já dificilmente poderá fazer algum sentido. Ou, o caminho que estava a seguir levou-me para lugares que prefiro manter secretos e não dá para desenvolver mais esta historieta da treta. Ou ainda, um texto que começa com a frase que abre este texto não poderia nunca acabar de outra forma.

quinta-feira, agosto 13, 2020

Férias

Preparar a viagem, fazer as malas. 

Livros para ler, cadernos para desenhar. Canetas, lápis, aguarelas um pincel. Colunas de som, convém poder ouvir música caso esteja para aí virado. Ler, desenhar, ouvir música. Olhar a paisagem. Para pensar não esquecer de levar a cabeça.

Imagino dias suaves com o tempo a passar calmo e desinteressado. Espero que assim seja.


domingo, agosto 09, 2020

Rugas no cérebro

Ver a idade transformar-se em velhice: o corpo a curvar-se perante a imensidão do tempo, a mente perdida na lonjura da memória. Abandonamos o corpo, perdemos o espírito, tornamo-nos outra coisa, invólucros cujo conteúdo perdeu o prazo de validade. Envelhecer parece ser duro. Pelo menos presta-se à construção de frases tão pomposas como as que atrás ficam escritas. 

Pondero seriamente apagar este post, esquecer a coisa, mas não, que fique. Sempre poderá servir-me de memória quando começar a esquecer-me de mim e funcionar como marco ou fronteira. Para lá ficam os desertos do pretensiosismo. Para cá... para cá estou eu, perigosamente próximo de coisas que preferiria evitar.

quarta-feira, agosto 05, 2020

Antimania

Falar sem parar deixa marcas. No que fala, em quem ouve: zumba, zumba, zumba, blá, blá, blá, golpe sobre golpe, conversa ininterrupta, toma lá, dá cá, palavras, palavras, ficam marcas, com o tempo serão cicatrizes. Falar sem parar exige quem ouça o tempo todo?

E que dizer quando se dispõe do tempo todo para falar? Como ter assunto, zumba, zumba, zumba, sempre assunto de conversa, conversa inesgotável, blá, blá, blá, os ouvidos sangram de tristeza, os olhos desorbitam no espanto. A boca torce-se, contorce-se, como um verme guloso sobre a podridão de um cadáver, zumba, zumba, zumba, a conversa não pára, é como um rio, um ruído, um zumbido, um vento perdido que nunca encontra o fim do seu caminho e sopra, sopra, sopra.

Falar sem parar tem de deixar marcas, marcas no que fala, marcas em quem ouve. A mensagem é repetitiva e repetida até à exaustão, todo o dia, o mesmo tema, uma vez, outra vez, vai mais uma, sobra tempo que é preciso tapar. Tapar o tempo com palavras, blá, blá, blá, palavras como argamassa na betoneira, palavras como lama na torrente, como caranguejos no tsunami, vrrrrrrruuuummmm! Palavras que te invadem e violam, palavras que te ferem mas não matam, assim é.

De tanto ouvires a mesma merda acabas por acreditar na merda que te dizem todo o dia, zumba, zumba, zumba, ficas tonto, ficas sem saber se já acreditavas naquilo ou se te enfiaram aquilo pela cabeça dentro, pela alma abaixo, blá, blá, blá, por favor não deixes que te matem a razão, não emprenhes pelos ouvidos, não deixes crescer dentro de ti esse monstro da estupidez. Desliga: zumba, zumba, zum! Volta as costas, vai-te embora: blá, blá, blá... bl... á... á... á... não aceites esses golpes, não queiras essas cicatrizes.

Ausência

Acontece de cada vez que regresso à cidade onde vivi até aos meus 18 anos de idade. Venho com muito tempo de intervalo entre cada visita e, como seria de esperar, não percorro todos os trajectos que preencheram o meu passado. É por isso que, de vez em quando, me acontece esbarrar com lugares que, estando ali mesmo, à minha frente, são lugares que já não existem.

Hoje vi o lugar onde já não existe a casa onde habitou o meu avô. Já lá não está o gradeamento, nem o portão, nem as escadas gémeas que subiam até ao patamar da porta com o batente de ferro em forma de mão. Já lá não estão as japoneiras, nada resta do meu passado. Agora há um prédio em construção com operários a suar sob um sol abrasador, tudo isto produz um estranho silêncio dentro de mim.

Fiquei estúpido, a olhar. Tirei uma foto com o telemóvel que enviei ao meu irmão com a legenda: "A casa do avô Mário!"

O meu irmão não respondeu.

domingo, agosto 02, 2020

Os bichos

Cada vez mais sinto que a espécie humana é uma espécie usurpadora deste mundo em que vivemos. Tomamos tudo o que podemos violentando a natureza, assassinando outras espécies animais, alimentando-nos delas com prazer; pretendemos acreditar que estamos no nosso direito, que Deus criou o mundo para proveito da Humanidade fazendo do planeta Terra uma espécie de reserva natural para o Ser Humano. Talvez Deus nos visite de tempos a tempos para nos observar como fazem as nossas crianças em visita ao jardim zoológico.

A nossa dimensão animal é, de todas as que compõem o espírito, a mais expressiva. Sensibilidade e inteligência são meros adereços; somos bichos. O senso comum acredita que somos os únicos bichos inteligentes mas já percebemos que isso não é verdade. Então, se não temos o exclusivo da inteligência, justificamos a nossa existência com o conceito de civilização: somos os únicos civilizados, o que é, igualmente, muito discutível. De cada vez que percebemos ser impossível olharmo-nos ao espelho sem ver um monstro tentamos uma nova maquilhagem que nos dê um aspecto menos odioso. Trabalho árduo e inglório.

Que nos resta senão aceitarmos que somos bichos?