segunda-feira, março 20, 2023

Águas mornas

     

    A conversa não é fácil nem sequer muito clara. Discute-se uma eventual diluição da fronteira entre territórios políticos, uma terra de ninguém entre "esquerda" e "direita". Para João Miguel Tavares será uma espécie de "terra prometida" que o Deus do Bom Senso reservou aos liberais, o povo eleito. É aí que se vai construindo o discurso equilibrado merecedor de constituir o evangelho socioeconómico que nos levará à redenção enquanto projecto de sociedade. Apesar de normalmente tomar banho com água muito quente até posso concordar com parte substancial do discurso de JMT.

    O problema é quando a nossa reflexão é feita em abstracto, principalmente se formos pessoas com uma vida razoavelmente confortável que, apesar da inflacção e dos salários baixos, ainda conseguimos pagar as contas e ter dinheiro de sobra ao fim do mês para comprar um livro ou ir a uma sala de teatro. É que há uma multidão que não se pode dar a estes "luxos”. São os tais deserdados que nunca tiveram herança que não fosse fome e miséria. São os tais que, apesar de trabalharem, não conseguem ganhar dinheiro suficiente para pagar a renda de casa e poder comer decentemente uma vez por outra. E o tempo é curto.

    A morte de Rui Nabeiro veio lembrar a todos nós que a solução se encontra na redistribuição da riqueza. Não há que abominar o capitalismo. Há que abominar os abutres, as sanguessugas e os vampiros que se aproveitam da nossa incapacidade para encontrarmos o tal lugar sem fronteiras onde todos seremos (mais ou menos) felizes.

   carta enviada ao Director do jornal Público

domingo, março 19, 2023

17 horas

     Apercebeu-se de que nunca mais haveria aquela pessoa do outro lado da chamada telefónica. Tudo porque passavam as 17 horas no mostradorzeco do telemóvel. Sentiu um aperto na garganta que desceu ao peito, um desconforto, uma ausência. As lágrimas voltaram. Nos últimos dias as lágrimas iam e vinham como se fossem um mar. Foi então que constatou o facto de não ter visto o corpo. Um calor inesperado ruborizou-lhe o rosto. Poupara-se ao cadáver?

    Reflectiu sobre a questão. Quem poupara ele ou o que poupara? No deve e haver dos afectos nunca houvera qualquer tipo de poupança. Concluiu que não poupara nada, pelo menos conscientemente, não houvera poupança. Apenas entrega, amor e, agora, instalava-se a saudade. Todos os dias, quando as 17 horas passearem em direcção ao fim da tarde. Para sempre.

domingo, março 12, 2023

Oxalá

     Pergunto-me se a crueldade nasce do ponto máximo da capacidade humana em suportar a dor e a angústia, aquele momento extremo em que alguém pensa: "que se foda!" e a partir do qual tudo perde o sentido e tudo passa a ser possível. Deixa de haver amor, deixa de haver ódio, tudo se transforma em indiferença paranóica.

    A pessoa cruel não terá de ser necessariamente monstruosa, muito provavelmente será triste e angustiada: tristeza e angústia, instrumentos terríveis das forças obscuras que teimam em manter viva a nossa crença na existência do Inferno. 

    A crueldade é uma doença do espírito? Para que isso fosse verdadeiro a nossa condição natural teria de ser a da bondade. Oxalá.

sexta-feira, março 10, 2023

TINA

     Não há volta a dar-lhe, dizem que vivemos sob o patrocínio da TINA (a tal que diz "there's no alternative) mas, está na cara, é uma conversa da treta. Alternativa há sempre, o problema consiste em percepcioná-la e, mais complicado ainda, conseguir criar sinergias capazes de pôr a coisa em marcha. 

    O nosso modo de vida fomenta a fragmentação do grupo. Metemo-nos em casa a olhar para rectângulos com imagens (televisores, computadores, telemóveis) acreditando que através dessas janelas virtuais comunicamos com o Mundo. Talvez até seja verdade, talvez haja comunicação (olha para nós, aqui, a "conversarmos"), mas acaba por ser uma comunicação estéril em termos sociais. A haver algum benefício no processo será tendencialmente individual.

    E é esse o nosso fado: sermos indivíduos com barrigas salientes e um umbigo na ponta, o qual contemplamos embevecidos, convencidos de que o Mundo não nos merece ou, nos casos mais desesperados, que não merecemos o Mundo.

    Quando saímos à rua em grandes grupos e manifestamos desacordo com algum aspecto menos atraente da TINA ficamos com a sensação de que fizemos algo socialmente radical mas, no fim das contas, a TINA acaba sempre a rir-se. A puta!

carta enviada ao Director do jornal Público

quarta-feira, março 08, 2023

Reflexos do passado (e do futuro)

     Não sou gajo de perder muito tempo defronte ao espelho. Com o andar da carruagem tenho-me tornado numa espécie de burro velho e grisalho, não sinto grande atracção pelo meu próprio reflexo. Isso não quer dizer que me estou absolutamente nas tintas para o meu aspecto. Nada disso. Apenas não perco muito tempo a pensar no que me transformei nem sinto particular saudade por aquilo que fui outrora. A barriga teima em ficar como está.

    Ainda assim, quando dou por ela, estico a nuca e tento manter uma certa postura ao caminhar na rua. Depressa esqueço e volto ao andar marreco. Estica, marreco, marreco, estica, sempre dá um certo colorido ao acto banal de pisar o passeio.

    Gosto de me imaginar como sendo jovial e bem-disposto. Daí que me ria bastante comigo próprio quando vejo o tal gajo grisalho, com a sua barriguita e meio marrequito a olhar-se no espelho depois de uma bela banhoca matinal. Sei que não sente grande tristeza por ser assim. Sei também que se vai tentando convencer de que a beleza é algo interior, uma confusão qualquer entre Ética e Estética, mas, lá no fundo, pensa que a beleza e a perfeição não precisam dele para nada. E ficamos bem assim.

terça-feira, março 07, 2023

Frutos do futuro

     A mulher já teria tido a ilusão de ser bela. Agora ajeitava timidamente o cabelo e caminhava rente à parede da clínica. Lá mais prá frente todos nos transformaremos em coisas que antes não conhecíamos.

segunda-feira, março 06, 2023

Coisas sem sentido

     Deuses que viajam de barco. Anjos que vislumbramos na berma da estrada. Personagens de fábulas nas quais somos os animais que falam. 

    É como quando te proteges de um frio que não sentes.

    Queremos do mundo coisas que não tem para nos oferecer e o corpo revela-se: é uma atrapalhação do espírito.

    Vivemos os nossos últimos dias.

domingo, março 05, 2023

Da beleza

     A beleza nem sempre é uma mentira. Por vezes ela é difícil de compreender por não ter equilíbrio nem simetria nem proporção. Por vezes está ali mesmo, à espera de ser vista, e não há quem a vislumbre. A beleza pode ser uma coisa triste (nesses casos dizemos que é coisa melancólica), pode ser um abandono, um vento levemente soprado que verga com graciosidade flores à beira do Inverno, pode ser uma ausência que se transforma em saudade.

    Sinto-me atraído pela beleza imperfeita embora seja sensível à sua extrema perfeição (quando o milagre acontece). Não é que a procure, não. Penso que seja preferível deixá-la acontecer. Forçar a beleza é pedir ao mundo que nos dê algo que pode não ter para oferecer.

domingo, fevereiro 26, 2023

Negócio

     Tenho a impressão de que tudo pode ser reduzido à dimensão do negócio. A guerra? Negócio. A linguagem? Negócio. O lixo? Negócio. A saúde? Negócio. E por aí fora: negócio, negócio e mais negócio. Vida e morte? Negócios. Como chegámos nós a isto? Tudo se compra, tudo se vende, tudo se negoceia. Nesta lógica global quem tem o poder? Os gajos do guito, é óbvio.

    Curiosamente os gajos do guito nunca estão satisfeitos com aquilo que têm e procuram sempre o melhor negócio. E nós, o pessoalzinho, qual é o nosso papel no meio disto tudo? Somos coisas negociáveis. Temos mais ou menos valor de acordo com aquilo que podemos oferecer ou que nos pode ser tirado. 

    Não me parece que Deus tenha previsto uma coisa assim. Mais uma vez fico convencido que o plano Dele falhou. Ou então Ele não tinha plano nenhum e limitou-se a improvisar quando criou o mundo.

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Como se fora um calhau

     É a guerra, é a guerra! Na Ucrânia disputa-se mais uma guerra (quantas guerras estão activas neste preciso momento em todo o mundo?), faz depois de amanhã um ano que começou na forma que agora lhe conhecemos. Uns dizem que a culpa é dos russos, outros que foram os ucranianos a provocá-la, outros ainda garantem ser da responsabilidade dos EUA, da NATO ou da União Europeia. Há opiniões divergentes conforme o espaço habitado, físico ou ideológico. A única certeza que fica é de que está uma guerra em curso no território ucraniano.

    De certeza? Bom, há ainda quem pense que aquilo é uma "operação especial" o que não configurará bem uma situação de "guerra-guerra" mas sim algo diferente. Patético, não é? Parece que não, não para todos. 

    No meio de todas as declarações de amor à paz, de consternação, de empatia para com os que sofrem na pele a crueza da guerra, de júbilo pela coragem dos bravos ucranianos, de asco para com a brutalidade criminosa dos russos, de enaltecimento dos valores democráticos e de defesa da liberdade dos povos, fico confuso, zonzo, embrutecido, sinto-me uma espécie de calhau.

    Feitas as contas desconfio de tudo, desconfio de todos. Até de mim próprio.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Sem título

É curioso verificar que na polémica ateada pelo plano do governo para a habitação lemos nesta secção do Público principalmente as opiniões daqueles que discordam. Pelo teor das missivas sou levado a pensar que uns são proprietários (ou “privados”), outros aproveitam a oportunidade para dar mais umas porradas no ceguinho e outros, muito simplesmente, não terão muito mais que fazer e, vai daí, segue mais uma carta ao Director. Pessoalmente não sou capaz de formar uma opinião com capacidade de resistência argumentativa mas a minha simpatia vai toda para aqueles que não vêem cumprido o seu direito constitucional à habitação. Vivemos num país de salários baixos (ou miseráveis) onde o preço da habitação em certas zonas compete com o de cidades capitais de países com níveis de vida muitíssimo superiores.

Terminaria fazendo notar ao leitor Bernardo Barahona Corrêa que o camelo, da história da Bíblia, não é um mamífero mas sim um cordame, daí a metáfora com o buraco da agulha. A compreensão deste mundo não está ao alcance de todos os animais; confesso a minha impotência.

 

Rui Silvares

Carta enviada ao director do jornal Público

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

Desprezo

     Os "vistos gold" por um lado, os trabalhadores imigrantes estrangeiros, pelo outro. A grande diferença? Uns têm sonhos, os outros não. Uns lutam pelo direito a sonhar, outros limitam-se a comprá-lo. Uns são pobres e desprezados, outros são ricos e anda por aí muita gente de fato a lamber-lhes as botas e a cheirar-lhes o cu. Como fazem os cães.

domingo, fevereiro 19, 2023

Está tudo bem

     Eu queria estar alegre, mas não estou. Não queria de forma nenhuma estar triste. Também não acontece. Situo-me ali assim, entre uma coisa e outra, exactamente aqui, neste lugar anónimo, nem feliz nem macambúzio; a fluir, simplesmente. É Domingo, vai passando a manhã.

    O céu está nublado mas a aplicação no telemóvel já me informou que daqui por um par de horas o sol vai despontar. Lá fora um pássaro vai chilreando. Tenho a impressão de ouvir martelar do outro lado da rua... talvez não, ainda o dia é criança pequena, quem haveria de o importunar com um  martelo a esta hora? Tudo parece estar bem, se "estar bem" for isto: a ausência de coisa alguma que possa constituir espanto.

    É Domingo, a manhã vai passando.

sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Pergunta estúpida

     Pois, olhar para dentro de nós, não é? Como se a alma fosse um espelho, como se pudéssemos contemplar o interior difuso de que somos feitos. Sentimentos, sensações, memórias. Ah, sim, dissecar a alma com o bisturi da sinceridade. Havia de ser bonito. 

    Suportar a densa banalidade que a solidão ajuda a fabricar e, ainda assim, manter uma humanidade à prova de bala. Ser capaz de ignorar a vontade de atirar boca fora um ou outro impropério, manter a calma olímpica própria de uma divindade amestrada. Possível, sim, mas desejável?

    Queremos ser ovelhas ou preferimos vestir a pele do lobo? Estúpida pergunta que não merece resposta. Cada um de nós é herói no seu próprio filme. Uns dias come-se, outros dias é-se comido. Diria que é assim a lei da vida mas estaria apenas a debitar mais uma frase vazia de sentido.

terça-feira, fevereiro 14, 2023

Preguiçar

     E se não te apetece fazer nada, sentes-te culpado? Não estás no teu direito? Que raio de espeto te enfiaram na consciência que te põe a rodar enquanto te assa o juízo no fogo lento da culpa? E que culpa é esta, é censura social; talvez religiosa? 

    De alguma forma criaram em ti a sensação de que há alguém ou alguma coisa que vigia dia e noite o que fazes e o que trazes contigo. Queres preguiçar, não fazer nada? Então não faças! O vigia que se indigne, que vá fazer queixinhas aos seus superiores. Sejam eles quem forem não serão nunca superiores a ti nem à tua vontade.

domingo, fevereiro 12, 2023

Enquanto Caronte não vem

     Enquanto Caronte não chega contemplamos memórias difusas, inventamos pretextos que preencham as conversas. As memórias vêm e vão, trazidas e levadas pela corrente eterna e lenta do escuro rio. Sob o negrume das águas adivinham-se almas errantes que nadam como se fossem peixes esquecidos do que são. Enquanto Caronte não vem.

    Enquanto Caronte não chega tentamos encontrar motivos que façam do tempo uma coisa viva, uma coisa que possamos viver juntos. Prolongamos a espera. Sabemos que Caronte vem a caminho. Não sabemos se rema ou deixa a sua nave negra simplesmente vogar por sobre as águas quietas. Aguardamos. Sabemos que Caronte lá vem.

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Sabedoria mais ou menos popular

  Quando a esmola é grande o pobre desconfia, o rico pede mais. O pobre pensa que talvez não mereça tanto ou que alguém o pretenda enganar com tamanha generosidade; já o rico, ciente do seu brilho e da forma como funciona o direito divino, acha pouco o que lhe oferecem. Tudo o que possa ganhar e acumular será sempre pouco. É tudo uma questão de hábito.

domingo, fevereiro 05, 2023

Boa tarde

     Bom, passei por aqui só para te dizer "olá, boa tarde", vou para ali fazer outra coisa. Pareceu-me de elementar boa educação cumprimentar-te, sorrir um pouco, acenar-te como se estivesse a zarpar rio acima numa barcaça atulhada de pinguins. Até amanhã. Fica bem.

sábado, fevereiro 04, 2023

Felicidade

     Por vezes sinto que a busca de uma forma de expressão artística vive mais de felizes acasos do que de buscas concretas e objectivas. Ensinaram-me que a transpiração vale mais do que a inspiração. Fingi acreditar. Na verdade não ensino isso a ninguém o que não significa que não valorize o trabalho esforçado. De maneira nenhuma!

    No parágrafo anterior falei em "busca de uma forma de expressão artística" e agora duvido dessa formulação. Fico a matutar se uma coisa assim se procura ou é ela que se revela e dá a conhecer. Terão as ideias (e as formas artísticas) algo que se possa assemelhar àquilo a que chamamos "vida"? Haverá algum universo paralelo habitado por esse género de entidades?

    Seja como for, regressando (penso eu) ao início desta reflexão, diria que a transpiração não garante a felicidade do encontro com a forma artística; que dependerá mais da inspiração, do jogo que jogamos quando lidamos com materiais e conceitos, misturando algures aquilo que trazemos na alma com aquilo que temos nas mãos. É uma alquimia, algo da ordem do maravilhoso. O resultado nem sempre ultrapassa níveis rasteiros mas, sabemos bem, há ainda dias felizes que poderemos viver!

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

Da explicação do mundo aos mais jovens

     A tinta encolhe-se na caneta. Tem frio. A caneta sente necessidade de raspar no papel mais do que desejava mas não há razão para que se sinta culpada. A vida dos objectos é assim mesmo, eles não foram criados por deus.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Rima

     Não sei bem qual aquele filósofo ou ramo da Filosofia que propõe a ideia de que vivemos uma ilusão, que somos parte do sonho de alguém (melhor, de alguma coisa), que, de facto, a existência de seja o que for não é mais do que nada. Se calhar ninguém propõe nada disto e fui eu que o sonhei.

    Por vezes sinto-me muito assim ou sinto-me muito assado; umas vezes estou a sonhar, outras a ser sonhado.

terça-feira, janeiro 31, 2023

Regabofe

    Cada dia que passa parece trazer consigo uma nova polémica. Agora anda tudo às voltas com as Jornadas Mundiais da Juventude. Os custos astronómicos associados ao acontecimento põem o país inteiro a chiar de ressentimento. E com razão. Se fosse a igreja católica a investir o guito não havia grande problema, a não ser o da incongruência de uma instituição que diz viver para amparar os pobres e os necessitados. Mas é o Estado quem mete parte de leão. Um Estado laico, note-se.

    É, de facto, um fartar vilanagem sem medida nem justificação. Tantos milhões investidos em misticismo e ilusões quando o país inteiro anda às voltas com falta de financiamento para coisas concretas e reais. Enfim, com um investimento desta monta pode ser que a Virgem resolva aparecer outra vez. Se a Virgem aparecesse no topo da pala sempre se justificava o regabofe.

sexta-feira, janeiro 27, 2023

Confuso é pouco!

     É um dos casos do momento. A questão da invasão do palco do São Luiz pela Keyla Brasil. Não vou estar aqui a explicar o que se passou, não é sobre isso que estou a reflectir neste momento. Reflicto sobre a quantidade e variedade de textos e opiniões que têm enxameado o espaço público desde que aconteceu a cena acima referida.

    Tenho lido, tenho ouvido. São opiniões de sentido contrário, geralmente bem expostas e sustentadas com argumentos que me parecem válidos e compreensíveis. Apesar de defenderem visões diametralmente opostas vejo-me a concordar com uns e com outros. Como é isto possível!?

    Não sei bem, não consigo ainda explicar com clareza de espírito este estranho fenómeno que me vai fazendo recuar nas certezas que imaginava ter sobre a "verdade" e a "realidade".

quarta-feira, janeiro 25, 2023

Passo!

     Há dias em que sinto uma certa pressão para que forme opiniões. A raiz do problema poderá estar relacionada com a leitura diária de um jornal e a consulta esporádica a canais televisivos de notícias que funcionam 24 horas todos os santos dias. Exponho-me assim a verdadeiros ciclones de informação que me despenteiam as ideias.

    A título de exemplo: hoje, após a leitura do Público, vi-me confrontado com a questão do activismo trans, com a questão do envio de tanques de guerra sofisticados da Europa para a Ucrânia, a falta de sinceridade e honestidade duvidosa de autarcas e governantes, problemas graves na hierarquia da igreja católica, enfim, um manancial de situações diversas e pouco claras, expostas em textos de opinião ou notícias lavradas por jornalistas. 

    Será suposto que eu construa visões personalizadas que me permitam emitir opinião informada sobra cada uma destas situações? Não tenho essa pretensão! Sinto-me confuso e pouco seguro. Talvez seja melhor passar, não ir a jogo. Reflicto um pouco mais... passo!

domingo, janeiro 22, 2023

Avaliações objectivas

    Veja-se o acto de avaliar o teste de Português de um aluno em situação de exame nacional: pega-se nas suas respostas e comparam-se com descritores de desempenho previamente elaborados para o efeito de peneirar o conhecimento ali depositado. Cada resposta corresponderá a um nível com determinada pontuação. Os dados vão sendo introduzidos numa folha de Excel que os vai somando até que, voilá!: temos o resultado final. Naquele número fica sinteticamente representado o valor do examinando. É uma espécie de magia, uma Pedra Filosofal que transmuta conhecimento em números. O aluno já foi avaliado de forma semelhante ao longo de toda a sua vida escolar. Números que vão marcando o seu percurso académico como as migalinhas de pão de Hansel e Gretel marcaram o seu caminho no chão da floresta.

    A avaliação, aplicada de modo científico, garantirá que no fim do percurso obrigatório de 12 anos de escolaridade todo o esforço será recompensado, toda a preguiça será castigada. É assim que imaginamos que as coisas se passam, que há uma espécie de justiça divina no resultado do processo. A prová-lo exibimos pautas com listas de nomes, a cada nome correspondendo um número, a cada número correspondendo uma certa imagem de uma pessoa real. Não se nota nas pautas mas há boas pessoas, há espertalhões, uns que são solidários outros que são egoístas. Uns quantos entram para as juventudes partidárias ou já por lá andavam. Passados alguns anos temos ministros, secretários de estado, elites dirigentes.

    Pretende-se, agora, que, antes de poderem jurar defender a res publica em cerimónia tutelada pelo Presidente da nação, os escolhidos preencham um inquérito que avalie de modo objectivo a sua idoneidade, embora não a sua competência, para o desempenho do cargo. Tudo isto de modo a descansar o pessoal quanto à lisura do resultado do processo. Mas, temo bem, a objectividade da avaliação não passa de um mito.

 

Carta enviada ao director do jornal Público

 

sábado, janeiro 21, 2023

Latinório

    Já reparaste bem no latinório escrito nas notas de um dólar? Fiz uma daquelas traduções farsolas que o google nos oferece e deu o que a seguir registo: "anuit coeptis" (ali de um lado e do outro do triângulo metediço) significa "ele acenou com a cabeça quando começou" e o "novus ordo seclorum" da faixa que esvoaça ordeiramente junto à base da pirâmide será "nova ordem dos tempos". Tudo isto rematado com a celebérrima máxima "in god we trust", já em inglês, não vá o diabo tecê-las.

    Para princípio básico de um estado fundamentalista religioso não está nada mal.



sexta-feira, janeiro 20, 2023

A espera

     Sim, já me apercebi, ando melancólico, sinto-me triste. Sim, tenho vindo a perder algum brilho, nem sempre encontro um sorriso mordaz dentro de mim. Espero não ficar assim, macambúzio. Que seja coisa passageira.

    Penso que esta sensação de aperto no estômago, este nó que se vai enrolando mais a cada dia, penso que tenha a ver com o facto de o meu pai estar a passar deste mundo em direcção a um outro. 

     Sinto-o a vaguear, hesitante, na fronteira. Sinto-o perdido, confuso, e não há quase nada que eu possa fazer. Esta sensação de impotência arruína-me o peito, enegrece-me os pensamentos.

    Mas o que é esta minha tristeza comparada com a jornada do meu pai? Nada! Não é nada; mera lamentação. Olho para ele, magro, recurvado, olhar ausente e vejo uma criança. Pego-lhe na mão fria e somos ambos crianças, crianças perdidas, órfãos de mãe à espera que o tempo passe. De mãos dadas.

quarta-feira, janeiro 18, 2023

Criação dos animais


     Era negro, o fundo. Era negro. Eram mais ou menos brancas, as formas, queriam ser brancas mas não o conseguiam. Completamente. As linhas criadas no contraste encerravam seres que pareciam monstros. Mas não. Não há monstros de papel.

    O triângulo com um olho ao centro é imagem de deus. O que criou os animais. E inventou a fome. E carne, dentes, tripas e músculos. Deus inventou essas coisas todas. Deu vida aos bichos e, aos que não foram devorados, deixou-os morrer.

segunda-feira, janeiro 16, 2023

Querer

     Queria ser um génio, ser magnífico, incontestável e reconhecido pelos olhos dos que olham a sublime grandeza. Queria partilhar a Luz com os semi-deuses, saltitar na escadaria do Olimpo como criança que brinca defronte à catedral no final de uma manhã de Domingo (o Padre ainda lá dentro a passar a mão pelo lombo das matronas com os pescoços enrolados em peles de bicheza morta). Queria sei lá o quê! Queria tudo, queria poder tudo, poder salvar a vida dos que morrem para não me morrer (também) o meu pai. Queria não sentir saudade, não chorar quando recordo, queria ser meio de pau, como o Pinóquio. Eu que tento não mentir a comparar-me com o Pinóquio... se me crescesse o nariz a cada mentira não havia de ser maior que um lápis de grafite, digo eu; mas eu sei lá o que é mentir ou a mentira! Queria compreender que raio de merda é a vida e que raio de merda fazer com ela. Queria tanta coisa que sei ser impossível que não terei nunca o descanso desejado (queria também descansar como se fosse um penedo). No fim e no limite o que eu queria realmente era não querer absolutamente nada.

domingo, janeiro 15, 2023

Da melancolia

     Assistir à desistência da vida é uma coisa muito triste. Perceber o esvaziamento, a energia vital a diluir-se no sopro frágil da respiração, cada movimento do peito mais próximo de ser o último que haverá de ser feito. É assim com todos nós, cada momento mais longe do início, mais próximo do fim. Mas não costumamos pensar nisso, não costumamos assistir a isso. Vê-lo é ver o lamento da existência, ver a vida a enrodilhar-se na morte. Não é belo, não é feio, apenas profundamente melancólico.

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Vulgaridade

     Reflectir sobre coisas sem sentido, eis algo que perdera o interesse, algo que já não provocava nele o habitual entusiasmo do mergulho nas ondas de um pensamento puramente especulativo; fosse na questão da pertinência da letra do hino nacional, fosse nas razões que provocam a incompreensível desigualdade social entre ricos e pobres. O mesmo não se poderia dizer sobre as diferenças entre os vivos e os mortos.

    Tudo era confuso, as formas das coisas pareciam diluir-se no espaço em volta.

    Levantara-se inquieto, o cérebro como uma colmeia em intensa actividade. Deslocou-se pela casa sem perceber muito bem o que fazia, muito menos o que pretendia fazer. Parecia-lhe que esbarrava em coisas invisíveis, coisas que o atravessavam ou ele atravessava, o mundo, naquela manhã, apresentava-se inconsistente. Talvez fosse apenas viver mais um dia igual aos outros.

    Aí pelas quatro da tarde sentiu um certo cansaço. Ainda faltavam oito horas para que as vinte e quatro marcadas pelo relógio atingissem o limite e já tinha vivido tantas coisas extraordinárias! Aquele dia era, definitivamente, igual a tantos outros, mais um dia de vulgaridade absoluta.

quinta-feira, janeiro 12, 2023

Visão abjecta

     A Estupidez e a Ignorância passeiam sempre de mãos dadas. Quando encontram a Crueldade (nefastas ocasiões!) organizam orgias sangrentas.

segunda-feira, janeiro 09, 2023

Acreditar

     Sim, a arte, por vezes, faz-me acreditar em coisas impossíveis. Quando disso me apercebo instala-se a dúvida: se penso uma coisa ela será impossível? A imaginação resulta numa possibilidade. Esta afirmação parece-me sólida, indiscutível. 

    São tantas as vezes em que sinto as fronteiras da realidade tremendo perante coisas impossíveis que ganham consistência, são tantas as vezes em que sinto o sonho irrompendo neste quotidiano delirante em que me movo, isto acontece tantas vezes que desisti de duvidar. Agora acredito que o impossível pode muito bem acontecer. Ou não.

    Apesar de tudo há uma coisa na qual não sou capaz de acreditar por muito que me esforce (o esforço raramente resulta quando se trata de acreditar em alguma coisa): não consigo acreditar em Deus. E Ele sabe bem que tenho tentado.

quinta-feira, janeiro 05, 2023

Parvo

     Quanto tempo é necessário para que uma coisa nova se transforme em tradição? Sim, porque todas as tradições, por mais antigas que sejam, tiveram o seu momento primordial. É como o Universo? Talvez o conceito de Universo seja, também ele, uma tradição, nada mais do que isso. Talvez nós sejamos ilusões.

    É assim, não consigo evitá-lo (não sei se também te acontece), dá-me para o devaneio ou para a parvoíce e fico imparável até que me apercebo de que posso estar a escrever coisas ridículas. Nesse momento... alto, parou! E fico-me imediatamente por ali (por aqui). Calo-me.

    Silêncio e quietude.

quarta-feira, janeiro 04, 2023

Alegoria

         Por vezes penso: a Caverna da alegoria platónica é a caverna do meu crânio. O gajo especado defronte à parede é o meu cérebro e as sombras projectadas são as imagens recebidas pela minha retina. E concluo: cada um de nós é, ele próprio, a Alegoria da Caverna.

terça-feira, janeiro 03, 2023

Mentiras

     Demasiados espaços em branco, memória esburacada (se comparasse a minha memória com um queijo suíço estaria a derrapar no lugar comum). Não sei se deva preocupar-me com tamanhas falhas de memória, na verdade consigo recordar certos pormenores de coisas há muito passadas mas isso sabe-me a pouco. Tenho fome de recordações.

    Diz o outro que "recordar é viver". E não ser capaz de o fazer, será o quê? O contrário de viver é morrer? Não me parece, seria demasiado óbvio. O contrário de viver é andar para aí a fornicar a existência de quem nem sequer conhecemos, o contrário de viver é matar não é morrer.

    Não ter memória obriga a uma grande concentração no momento imediato, obriga a vasculhar no presente sinais que nos orientem num possível regresso ao passado. Sim, porque há sempre um vislumbre, uma cortina translúcida a esvoaçar, uma forma que se destaca do nevoeiro até fazer sentido. A mente é uma coisa traiçoeira. A mente mente.

segunda-feira, janeiro 02, 2023

Morbidez evitável

     Podes viver sem pensar na morte? Claro que sim! Seria impossível caminhar, rir, saltar ao eixo, conduzir o automóvel, impossível passeares o cão (apanhar-lhe a merda) ou imaginar alimentar o periquito. Se pensasses na morte terias uma vida menos preenchida por possibilidades de alegria genuína? Pensas na morte? Eu tenho pensado.

    Tenho pensado na morte e não adianta nada. Para mim não adianta nada. Pensar na morte faz-me compreender que é muito mais nítido viver cada dia e celebrar a vida. Quando a morte chegar logo se vê.

domingo, janeiro 01, 2023

23

     Começa o ano com o céu repleto de nuvens sombrias. Algumas dessas nuvens escurecem de forma ameaçadora, imagino-as de um negro tão profundo que choverão lamentos. Tenho, no entanto, esperança de que haja espaços azuis entre elas.