domingo, fevereiro 26, 2023

Negócio

     Tenho a impressão de que tudo pode ser reduzido à dimensão do negócio. A guerra? Negócio. A linguagem? Negócio. O lixo? Negócio. A saúde? Negócio. E por aí fora: negócio, negócio e mais negócio. Vida e morte? Negócios. Como chegámos nós a isto? Tudo se compra, tudo se vende, tudo se negoceia. Nesta lógica global quem tem o poder? Os gajos do guito, é óbvio.

    Curiosamente os gajos do guito nunca estão satisfeitos com aquilo que têm e procuram sempre o melhor negócio. E nós, o pessoalzinho, qual é o nosso papel no meio disto tudo? Somos coisas negociáveis. Temos mais ou menos valor de acordo com aquilo que podemos oferecer ou que nos pode ser tirado. 

    Não me parece que Deus tenha previsto uma coisa assim. Mais uma vez fico convencido que o plano Dele falhou. Ou então Ele não tinha plano nenhum e limitou-se a improvisar quando criou o mundo.

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Como se fora um calhau

     É a guerra, é a guerra! Na Ucrânia disputa-se mais uma guerra (quantas guerras estão activas neste preciso momento em todo o mundo?), faz depois de amanhã um ano que começou na forma que agora lhe conhecemos. Uns dizem que a culpa é dos russos, outros que foram os ucranianos a provocá-la, outros ainda garantem ser da responsabilidade dos EUA, da NATO ou da União Europeia. Há opiniões divergentes conforme o espaço habitado, físico ou ideológico. A única certeza que fica é de que está uma guerra em curso no território ucraniano.

    De certeza? Bom, há ainda quem pense que aquilo é uma "operação especial" o que não configurará bem uma situação de "guerra-guerra" mas sim algo diferente. Patético, não é? Parece que não, não para todos. 

    No meio de todas as declarações de amor à paz, de consternação, de empatia para com os que sofrem na pele a crueza da guerra, de júbilo pela coragem dos bravos ucranianos, de asco para com a brutalidade criminosa dos russos, de enaltecimento dos valores democráticos e de defesa da liberdade dos povos, fico confuso, zonzo, embrutecido, sinto-me uma espécie de calhau.

    Feitas as contas desconfio de tudo, desconfio de todos. Até de mim próprio.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Sem título

É curioso verificar que na polémica ateada pelo plano do governo para a habitação lemos nesta secção do Público principalmente as opiniões daqueles que discordam. Pelo teor das missivas sou levado a pensar que uns são proprietários (ou “privados”), outros aproveitam a oportunidade para dar mais umas porradas no ceguinho e outros, muito simplesmente, não terão muito mais que fazer e, vai daí, segue mais uma carta ao Director. Pessoalmente não sou capaz de formar uma opinião com capacidade de resistência argumentativa mas a minha simpatia vai toda para aqueles que não vêem cumprido o seu direito constitucional à habitação. Vivemos num país de salários baixos (ou miseráveis) onde o preço da habitação em certas zonas compete com o de cidades capitais de países com níveis de vida muitíssimo superiores.

Terminaria fazendo notar ao leitor Bernardo Barahona Corrêa que o camelo, da história da Bíblia, não é um mamífero mas sim um cordame, daí a metáfora com o buraco da agulha. A compreensão deste mundo não está ao alcance de todos os animais; confesso a minha impotência.

 

Rui Silvares

Carta enviada ao director do jornal Público

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

Desprezo

     Os "vistos gold" por um lado, os trabalhadores imigrantes estrangeiros, pelo outro. A grande diferença? Uns têm sonhos, os outros não. Uns lutam pelo direito a sonhar, outros limitam-se a comprá-lo. Uns são pobres e desprezados, outros são ricos e anda por aí muita gente de fato a lamber-lhes as botas e a cheirar-lhes o cu. Como fazem os cães.

domingo, fevereiro 19, 2023

Está tudo bem

     Eu queria estar alegre, mas não estou. Não queria de forma nenhuma estar triste. Também não acontece. Situo-me ali assim, entre uma coisa e outra, exactamente aqui, neste lugar anónimo, nem feliz nem macambúzio; a fluir, simplesmente. É Domingo, vai passando a manhã.

    O céu está nublado mas a aplicação no telemóvel já me informou que daqui por um par de horas o sol vai despontar. Lá fora um pássaro vai chilreando. Tenho a impressão de ouvir martelar do outro lado da rua... talvez não, ainda o dia é criança pequena, quem haveria de o importunar com um  martelo a esta hora? Tudo parece estar bem, se "estar bem" for isto: a ausência de coisa alguma que possa constituir espanto.

    É Domingo, a manhã vai passando.

sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Pergunta estúpida

     Pois, olhar para dentro de nós, não é? Como se a alma fosse um espelho, como se pudéssemos contemplar o interior difuso de que somos feitos. Sentimentos, sensações, memórias. Ah, sim, dissecar a alma com o bisturi da sinceridade. Havia de ser bonito. 

    Suportar a densa banalidade que a solidão ajuda a fabricar e, ainda assim, manter uma humanidade à prova de bala. Ser capaz de ignorar a vontade de atirar boca fora um ou outro impropério, manter a calma olímpica própria de uma divindade amestrada. Possível, sim, mas desejável?

    Queremos ser ovelhas ou preferimos vestir a pele do lobo? Estúpida pergunta que não merece resposta. Cada um de nós é herói no seu próprio filme. Uns dias come-se, outros dias é-se comido. Diria que é assim a lei da vida mas estaria apenas a debitar mais uma frase vazia de sentido.

terça-feira, fevereiro 14, 2023

Preguiçar

     E se não te apetece fazer nada, sentes-te culpado? Não estás no teu direito? Que raio de espeto te enfiaram na consciência que te põe a rodar enquanto te assa o juízo no fogo lento da culpa? E que culpa é esta, é censura social; talvez religiosa? 

    De alguma forma criaram em ti a sensação de que há alguém ou alguma coisa que vigia dia e noite o que fazes e o que trazes contigo. Queres preguiçar, não fazer nada? Então não faças! O vigia que se indigne, que vá fazer queixinhas aos seus superiores. Sejam eles quem forem não serão nunca superiores a ti nem à tua vontade.

domingo, fevereiro 12, 2023

Enquanto Caronte não vem

     Enquanto Caronte não chega contemplamos memórias difusas, inventamos pretextos que preencham as conversas. As memórias vêm e vão, trazidas e levadas pela corrente eterna e lenta do escuro rio. Sob o negrume das águas adivinham-se almas errantes que nadam como se fossem peixes esquecidos do que são. Enquanto Caronte não vem.

    Enquanto Caronte não chega tentamos encontrar motivos que façam do tempo uma coisa viva, uma coisa que possamos viver juntos. Prolongamos a espera. Sabemos que Caronte vem a caminho. Não sabemos se rema ou deixa a sua nave negra simplesmente vogar por sobre as águas quietas. Aguardamos. Sabemos que Caronte lá vem.

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Sabedoria mais ou menos popular

  Quando a esmola é grande o pobre desconfia, o rico pede mais. O pobre pensa que talvez não mereça tanto ou que alguém o pretenda enganar com tamanha generosidade; já o rico, ciente do seu brilho e da forma como funciona o direito divino, acha pouco o que lhe oferecem. Tudo o que possa ganhar e acumular será sempre pouco. É tudo uma questão de hábito.

domingo, fevereiro 05, 2023

Boa tarde

     Bom, passei por aqui só para te dizer "olá, boa tarde", vou para ali fazer outra coisa. Pareceu-me de elementar boa educação cumprimentar-te, sorrir um pouco, acenar-te como se estivesse a zarpar rio acima numa barcaça atulhada de pinguins. Até amanhã. Fica bem.

sábado, fevereiro 04, 2023

Felicidade

     Por vezes sinto que a busca de uma forma de expressão artística vive mais de felizes acasos do que de buscas concretas e objectivas. Ensinaram-me que a transpiração vale mais do que a inspiração. Fingi acreditar. Na verdade não ensino isso a ninguém o que não significa que não valorize o trabalho esforçado. De maneira nenhuma!

    No parágrafo anterior falei em "busca de uma forma de expressão artística" e agora duvido dessa formulação. Fico a matutar se uma coisa assim se procura ou é ela que se revela e dá a conhecer. Terão as ideias (e as formas artísticas) algo que se possa assemelhar àquilo a que chamamos "vida"? Haverá algum universo paralelo habitado por esse género de entidades?

    Seja como for, regressando (penso eu) ao início desta reflexão, diria que a transpiração não garante a felicidade do encontro com a forma artística; que dependerá mais da inspiração, do jogo que jogamos quando lidamos com materiais e conceitos, misturando algures aquilo que trazemos na alma com aquilo que temos nas mãos. É uma alquimia, algo da ordem do maravilhoso. O resultado nem sempre ultrapassa níveis rasteiros mas, sabemos bem, há ainda dias felizes que poderemos viver!

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

Da explicação do mundo aos mais jovens

     A tinta encolhe-se na caneta. Tem frio. A caneta sente necessidade de raspar no papel mais do que desejava mas não há razão para que se sinta culpada. A vida dos objectos é assim mesmo, eles não foram criados por deus.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Rima

     Não sei bem qual aquele filósofo ou ramo da Filosofia que propõe a ideia de que vivemos uma ilusão, que somos parte do sonho de alguém (melhor, de alguma coisa), que, de facto, a existência de seja o que for não é mais do que nada. Se calhar ninguém propõe nada disto e fui eu que o sonhei.

    Por vezes sinto-me muito assim ou sinto-me muito assado; umas vezes estou a sonhar, outras a ser sonhado.