sexta-feira, fevereiro 26, 2021

Palavras vazias

É diário, já se sabe, bate como um martelinho de São João, poing, poing, poing, nas nossas cabeças, no nosso juízo, no que resta do nosso espaço comum, poing, poing, poing, o martelinho a martelar os números da pandemia. 

O pivô do noticiário debita os números de novos infectados, poing, internados, poing, recuperados, poing, poing, poing, e, raramente sinto as palavras tão vazias, o pivô afirma que "lamenta" os falecimentos da ordem. Diz aquilo com a mesma entoação que aplicaria se falasse da qualidade dos sapatos que tem calçados ou do arroz de pato que  encomendou na tasca da esquina (talvez o arroz de pato o levasse a colocar alguma alma na fala). A banalização do discurso que relata a catástrofe em curso tem este efeito narcótico, este amerdalhamento emocional, deixa-nos à beira da desumanização.

Quando era miúdo sempre me impressionaram as palavras de circunstância. Não sei se sentias o mesmo, amável leitor, mas lembro-me de perceber o vazio do discurso quando o discurso era vazio e de ficar estúpido por não ser capaz de encaixar as coisas. Porque havia uma pessoa de dizer algo que não sentia de forma nenhuma? Porque havia alguma pessoa de fingir ser o que, obviamente, não era? Ah, santa inocência!

Regressado ao tempo presente ressoa na minha mona o poing-poing-poing acima descrito. As questões sobre a motivação de tanta palavra vazia obtêm respostas infelizes. A inocência perdida faz-me perceber que tudo roda à volta de interesses mesquinhos, manipulações mais ou menos evidentes, agendas políticas, campanhas comerciais em curso, dinheiro, dinheiro, dinheiro e poder... um buraco sem fundo, um vazio impossível de preencher.


segunda-feira, fevereiro 22, 2021

Pedagogia do cócó

Andamos todos tão enfronhados nesta coisa da pandemia do Covid que certas notícias de assinalável gravidade nos passam ao lado como bêémedablius a assapar na autoestrada. É ou não inquietante que, segundo estudo recente "cujos dados são relativos a 2020, 67% dos jovens consideram legítima a violência no namoro, dos quais 26% acham legítimo o controlo, 23% a perseguição, 19% a violência sexual, 15% a violência psicológica, 14% a violência através das redes sociais e 5% a violência física."? Caramba, quem é esta gente? São os miúdos que se sentam à minha frente na sala de aula?

Como é isto possível, com tantas campanhas de várias instituições estatais, com aulas de educação sexual, com a proibição de cantar o "atirei o pau ao gato" nos infantários, com vigilância constante sobre os conteúdos dos programas infantis nos canais televisivos, com psicólogos trabalhando em permanência  nas escolas, como é isto possível? Como é possível que tantas crianças que fazem cócó em vez de cagarem sejam tão permissivas à sordidez da violência no namoro?

Fico a pensar que algo tem corrido mal, que talvez estejamos a errar na forma como encaramos a infância. Fico a pensar nos resultados que um estudo deste género teria obtido se tivesse sido feito quando eu era miúdo. Na verdade, fico a pensar que, tal como o outro, "quanto mais conheço os homens (e as mulheres) mais gosto do meu cão". E eu não tenho cão.


terça-feira, fevereiro 16, 2021

Há dias assim

Há dias assim. Acordo com a sensação de que estou a viver uma ficção. O meu dia será o episódio seguinte de uma história inventada, não por alguém, por alguma coisa que desconheço, uma entidade incompreensível que pressinto mas que não consigo abarcar com os meus sentidos limitados.

Ao rememorar os acontecimentos do dia anterior encontro estranhas conexões, coincidências aparentemente impossíveis, como se tudo se encaixasse de forma demasiado premeditada. Sinto isto mas não sou capaz de concluir inequivocamente as razões que levantam as minhas suspeitas. É tudo demasiado vago mas, por vezes, quase palpável. 

Encaro o resto do dia com morna resignação: irei vivê-lo representando este papel para o qual não estou completamente preparado por não ter consciência absoluta do enredo, sabendo de antemão que irei enganar-me várias vezes nas falas, errar algumas marcações, desiludindo o argumentista e o encenador. Lamento, sou fraco actor.

sábado, fevereiro 13, 2021

A vida prolonga-se

Olhar os nossos mais velhos como se nos víssemos ao espelho é uma atitude que carrega uma certa dose de melancolia. Vê-los envelhecer perdendo faculdades físicas e mentais, rever-nos nessas personagens em constante mutação em direcção a um final inevitável, provoca uma angústia adocicada difícil de digerir por completo.

Sabemos que a vida é um ciclo. Mas não estamos preparados para aquilo que ela inevitavelmente nos oferece quando se aproxima do seu termo. No entanto, a nossa capacidade de adaptação permite-nos encarar a coisa com progressiva coragem e, não encontro outra palavra, resignação.

Seja como for, embora gostasse de ser capaz, continuo a não acreditar em Deus mas começo a perceber que a vida se prolonga para lá da morte. A nossa vida prolonga-se naqueles que nos amam e que irão recordar-nos herdando de nós algo que irão transportar consigo e legar aos que vierem depois deles. Nisto acredito porque sei, porque o sinto.

A vida não é eterna mas prolonga-se.

terça-feira, fevereiro 09, 2021

O mundo fede

Por vezes imagino um mundo sem catástrofes: borboletas, céu azul, prados imensos com ovelinhas tosando no remanso de um dia ameno e bem educado. Um mundo lindo: crianças sorridentes, os velhinhos todos com dentadura, um ou outro unicórnio e casas com ar condicionado.Um mundo limpo: baleias azuis, verdes e vermelhas nadando num mar límpido, sem continentes de dejectos plásticos, abelhinhas trabalhando sem parar, zzzz, zzzzzz, zzzzzzz.

Poderia continuar a efabular esse mundo de sonho mas acho que não vale a pena. Cada um pode acrescentar o parágrafo que mais lhe convier que a coisa só pode ficar mais e mais bonita até rebentar de tanta beleza.

Depois caio em mim, olho a TV; arrasta-se o noticiário. Coisa tão feia! Desgraça sobre desgraça. Mortes, desastres, vigarices. Não há notícia que se aproveite. O mundo fede.

domingo, fevereiro 07, 2021

La Strada

Ontem revi La Strada, o filme de Fellini com Giulietta Masina e Anthony Quinn. Tinha dele uma muitíssimo vaga memória, resumida à imagem de Massina com cara pintada de palhaço e um chapéu preto empoleirado na cabeça.

Quando tinha visto o filme? Não consigo recordar. Decerto o vi na televisão, durante a minha infância ou na adolescência, o mais tardar, quando tudo era a preto e branco. Ontem revi-o como se fosse a primeira vez. É isto que o tempo faz às memórias, funde e confunde tudo.

Fiquei a matutar como teria interpretado aquela história triste e sórdida no meu primeiro visionamento. A pobreza de uma Itália meio destruída não me terá espantado pois o Portugal em que eu vivia não era muito diferente, talvez mais pobre ainda. 

Havia saltimbancos também na minha aldeia, embora com menos glamour que Zampanó e Gelsomina. Os "meus" saltimbancos eram Estrela e Delfinzito, um casal improvável de uma mulher gorda e enorme e um homem franzino e magro mas rijo como um varapau. Tinham um filho (não me recordo do nome) que hoje terá aproximadamente a minha idade e também participava nas momices e acrobacias daquela trupe miserável.

O filme tem uma estranha sonoridade, com as vozes desajustadas dos movimentos labiais (Quinn falava italiano?), característica das "italianadas" que tantas tardes e noites preencheram no meu passado. Assim funcionam as memórias, com os acontecimentos correndo desajustados da realidade.

Ontem revisitei esse passado para verificar que está definitivamente esquecido mas não completamente perdido.

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Memória do mundo

Tenho uma vaga recordação de ser criança e brincar. Brinquei muitas vezes sozinho, outras vezes brinquei acompanhado, mas aquilo que recordo é a sensação de plenitude que por vezes alcançava, a sensação de que tudo se encaixava, que todas as coisas encontravam o seu devido lugar tornando o momento uma coisa perfeita. Era a felicidade.

Agora que sou aquilo que designamos por adulto tenho a vaga percepção de que continuo a perseguir aquela sensação que me era proporcionada pelas minhas brincadeirinhas de criança. O patamar é diferente, os meios que tento convocar e organizar são outros, mas o objectivo é o mesmo: alcançar a sensação de plenitude, a sensação de que tudo está no seu devido lugar e que o universo faz sentido. E eu com ele.

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Opinar

Ter opinião não me parece coisa fácil. Para construir uma opinião precisamos de muito mais que mero instinto ou impulso incontrolado, precisamos de informação. E tendo acesso a informação precisamos de a validar, comparar dados, reflectir... ter opinião não é coisa fácil.

Mais difícil ainda é quando, depois de uma trabalheira dos diabos para construirmos a nossa opinião, nos vemos confrontados com a possibilidade de estarmos enganados. É lixado. Aceitar o erro pessoal, deitar para o lixo o resultado do trabalho desenvolvido na construção da nossa opinião... é coisa com alto grau de exigência ética e estética. Mas, como diz o povo, "o que tem de ser tem muita força".

Reconhecer e aceitar o erro não deveria ser assim tão complicado por ser coisa tão natural como água da chuva (mesmo quando dizemos que, pronto, estávamos enganados e assumimos o engano com ar de quem não dá grande importância à situação, é complicado). Será o nosso ímpeto competitivo, a nossa ânsia de sermos melhores que os outros o que nos enrola a língua e faz arder a testa quando chega a hora de darmos o braço a torcer?

Voltando um pouco atrás: ter opinião não é fácil e mais difícil será quando nos pagam para a emitirmos publicamente a espaços regulares. Ser comentador, escrever artigos de opinião em jornais e revistas, perorar sobre tudo e mais alguma coisa em debates televisivos, dia após dia, a um ritmo de atleta olímpico, parecem-me actividades ao nível da de um acrobata voador que actua sem rede. A diferença é que o acrobata, falhando o salto, se esborracha no chão; já o comentador, enfiado o pé na argola, faz de conta que não se passou nada e avança decidido, direitinho à próxima opinião.

Há no entanto milhares de pessoas com opinião fácil e imediata. Os opinadores infalíveis parecem incapazes de imaginar que estão errados mesmo quando sustentam que a Terra é plana ou que o Inferno é um lugar verdadeiro. Para estes não há ética nem estética nem nada que os faça duvidar daquilo que lhes atafulha a mente como massa a fermentar. E são tantos!