terça-feira, novembro 30, 2021

Mundo tolo

     Ando de mal com a realidade. Prefiro o sonho absurdo, a coisa impossível. Não tenho bem a certeza mas penso que foi sempre assim. O problema é meu, sei bem que o problema é meu. Isso sossega-me porque, apesar da má relação, dá-me algum conforto perceber que fora de mim as coisas fazem sentido. Se o mundo circundante fosse como aquele que invento e habito, todo impulso, todo improviso, preguiçoso e demasiadas vezes monstruoso, se o mundo à minha volta fosse como aquele que trago dentro de mim, não sei o que aconteceria. Talvez não acontecesse nada de extraordinário. Talvez o mundo monstruoso não seja o meu.

    

segunda-feira, novembro 29, 2021

Adeus

    Há momentos que te saltam para a frente da memória como se fossem um Pã silencioso, como se fossem sombras poderosas, momentos disparados com uma violência desarmante por uma recordação dolorosa que ficou escondida dentro de ti, à espera. E sentes dor. Soltas uma lágrima, os teus dentes estão cerrados, deixas esgueirar-se um gemido. 

    Pouco depois recuperas a compostura. Os teus sentidos regressam ao momento presente, a fulgurante recordação perde solidez, Pã recupera a sua estridente flauta e as sombras voltam a ser inconsistentes. Tudo está outra vez no seu lugar.

    

quinta-feira, novembro 25, 2021

Universos

     Espanta-nos a desfaçatez dos ricaços que se consideram acima da Lei? Não devia espantar, ou melhor, espanta-nos porque não fazemos ideia do que significa ter tanto dinheiro, ser tão ricaço. Somos uns ignorantes das coisas do poder. Pobres pobretanas.

    Já por várias vezes aqui declarei a minha incapacidade para lidar com números. A partir da ordem das centenas começo a perder o sentido à coisa, ultrapassando os milhares fico deveras aflito e, chegado aos milhões, é como se fosse teologia avançada. Transpondo esses números para dinheiro, euros ou outra materialização da divindade, então é que nada faz nem o mais pequeno dos sentidos.

    Confunde-me a necessidade de acumulação infinita que parece ser o mantra da nossa sociedade capitalista. Agimos como se nada tivesse um limite, banalizámos perigosamente o conceito de Universo. A Economia tem de crescer em flecha, ano após ano, a capacidade tecnológica não admite fronteiras para as possibilidades que nos oferece, criando um Universo paralelo no qual todos podemos ser felizes embora nem todos lá tenhamos um lugar à nossa espera. 

    Tudo é infinito, desde a felicidade que nos é prometida pelas campanhas publicitárias até à capacidade de enriquecimento dos ricaços, passando pela capacidade de ser miserável que caracteriza aquilo a que designamos por "franjas" da sociedade. Tudo constitui um universo separado e particular, movemo-nos entre o universo mediático e o universo económico e o universo da Marvel e da DC Comics e o universo do desporto de alta competição; universo, universo, universo, tantos universos! Todos eles infinitos e em expansão. 

    Quem conseguir compreender este fenómeno improvável (infinito em expansão) por favor: EXPLIQUE-ME! Mas de forma a que eu seja capaz de compreender. Acho que vou incluir este pedido na minha carta deste ano para o Pai Natal.

quarta-feira, novembro 24, 2021

That's life!

  https://youtu.be/HUgZ7kztPBs

     Cada novo dia soa a velho. Há qualquer coisa de arrogante nesta minha perspectiva, um convencimento tácito trazido pela acumulação de anos de vida. Será que o tempo que vivemos nos permite olhar para a frente com o desencanto de quem experimentou tantas coisas que já nada o poderá surpreender? Isso é que era doce!

    Cada novo dia atemoriza por ser novo. 360º, ângulo giro, uma volta inteira na perspectiva do parágrafo anterior. Lembro a fábula da raposa e das uvas; a novidade, o desconhecido, recusados mas desejados: oxalá caíssem e pudesse eu abocanhá-los sem ter de me pôr em bicos dos pés! E, mesmo nos bicos dos pés, correr o risco de os não alcançar. A idade a tornar-me incapaz, a incapacidade confundida com sabedoria...

    Cada novo dia é uma aventura inesperada. Poesia barata, discurso motivacional, conversa banal sem significado nem objectivo palpável. Talvez seja esta a formulação mais justa. 

    Talvez a vida, a minha vida, a nossa vidinha, caríssimo leitor, a vida de um cidadão ocidental, num sistema democrático, um cidadão comum, com direitos, num estado de direito, seja assim mesmo. Cada novo dia não tem de soar a velho, embora possa acontecer, nem atemorizar, embora isso seja possível, nem tem de ser propriamente uma aventura ou o seu contrário. Cada novo dia é mais um dia de vida. 

    Acabamos sempre a enfiar La Palice pelas orelhas abaixo.

sexta-feira, novembro 19, 2021

É a vida

    Antes de continuar a avançar pensou que seria aconselhável verificar com rigor onde colocar o pé direito. Assim fez. Pisou com segurança o degrau seguinte. Pé ante pé foi subindo, sempre com absoluta certeza de que não pisaria em falso, que cada novo passo o conduziria um pouco mais acima, um pouco mais perto do seu objectivo.

    Chegado ao topo olhou para trás. A escadaria perdia-se numa escuridão profunda e assustadora. Ali estava num patamar que não conduzia a lugar algum. O espaço esgotava-se no plano onde assentava os pés. Andou de um lado para o outro tentando perceber a razão que o levara a subir até ali mas não foi capaz de recordar o objectivo da sua cuidadosa viagem.

    Sentou-se, cruzou as pernas numa posição que sugeria meditação mas, na verdade, tinha o espírito vazio. Que fazer, agora que estava ali? Quando iniciou a subida não sabia o que iria encontrar. Imaginou muitas coisas diferentes, sentira uma espécie de promessa surda, uma esperança qualquer mas não estava preparado para algo tão cruel como aquele patamar vazio no topo da escuridão.  

    O que fazer? Esperar que a fome e a sede se tornassem insuportáveis? Descer a escadaria regressando ao ponto de partida? Não concebia nada que lhe parecesse lógico nem correcto. Levantou-se, apoiou as mãos no resguardo metálico e enferrujado que circundava o patamar. Olhou para o vazio negro e...

quinta-feira, novembro 11, 2021

Irritação

     Somos mesmo uns animais um bocadinho irritantes. Não sei se sentes o mesmo, amigo leitor, irritam-me profundamente aqueles que insistem em ter sempre razão. É uma casmurrice imbecil, uma necessidade de afirmação digna de um macaco narigudo: ter razão.

     Termos razão quando asseguramos que café sem açúcar é melhor do que com, que o nosso mecânico não só é justo nos preços que cobra como também revela capacidades técnicas e conhecimentos incomparáveis, que o Doutor que nos trata da cabeça tem um dom que só pode ser oferta divina, termos sempre razão equivale a dizer que fazemos sempre a melhor escolha. Sempre, sem margem de erro nem espaço para arrependimentos. Ter sempre razão é ser, sem dúvida, o maior.

    Apesar da irritação que me provocam costumo deixar passar sem remoque estas exibições egoístas mais ou menos inofensivas. É como ter uma comichão e evitar coçá-la para não agravar o desconforto. Mesmo quando a nossa ausência de resposta provoca no irritante aquela expressão pouco subtil de superioridade, aquele repuxar discreto do canto do lábio, aquele sobrancelha ligeiramente erguida, o ajeitar do cabelo como se a afirmação de excelência fosse tão forte que tivesse despenteado o soberbo.

    Não quero reclamar qualquer tipo de sabedoria especial que me leva a evitar confrontar um ego desmesurado; seria mostrar semelhança com o irritante. Tenho uma vaga esperança de que a minha ausência de reacção o incomode, lhe faça cair o cantinho do lábio, lhe amanse a sobrancelha e o despenteie de facto. 

    Acho que isto é ficar próximo de estar velho.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Mudar o futuro

 

Precisamos de acreditar que a vida pode ser outra coisa, que não é só isto, que a realidade não se esgota nos factos comprovados, que a verdade pode estar escondida à vista de toda a gente. Precisamos de não baixar os braços e não desistir. Não somos números nem são os números que definem quem somos. Lutar contra a estupidez é um desígnio, combater a ignorância é o processo. Precisamos de quem exija o impossível, quem imagine o que nem conseguimos sonhar. Tem de haver alternativa! Precisamos de mudar o futuro. 

Carta enviada ao Director do jornal Público

Esperança

    Nem sempre é fácil, diria mesmo que é frequentemente difícil. No entanto isso não é razão para desistir, antes pelo contrário; a ideia é insistir. Uma, duas, três, as vezes todas que forem necessárias, insistir sempre. Desistir não é opção.

    Mesmo após o golpe de misericórdia que nos atira ao tapete, mesmo com dificuldade em levantar a cabeça, estancar o sangue, recordar o nome ou o local onde estamos, desistir não é opção. A ideia é içar o corpo com o guindaste da vontade, acreditar em coisas impossíveis, invocar o auxílio das fadas e dos duendes e continuar a lutar.

    Quem não desiste nunca morre.

sexta-feira, novembro 05, 2021

A Lei

    O fim de uma coisa significa o início de outra? Haverá um encadeamento de situações mais ou menos catastróficas que se estenda infinitamente? O mundo a desenrolar-se diante de si próprio, magnífico e sem fim, indiferente aos deuses e à sua mútua destruição?  

    A Lei de Lavoisier é a única verdade comprovada. Teremos apenas que extrapolar da Natureza para o Universo: "No Universo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma". Transforma-se a matéria, transforma-se o sonho, transforma-se a realidade, nunca nada é como é eternamente.

segunda-feira, novembro 01, 2021

Yupi

    Hoje é aquele dia confuso. Os mais velhos chamam-lhe "de todos os santos" ou "de finados", é o dia dos mortos. Ontem foi o "halloween", para a pequenada. Há aqui uma quase sobreposição nas datas e uma certa confusão nas celebrações. 

    O "halloween" é uma importação um bocado forçada que confunde os mortos com monstros e a putalhada confunde monstros com gulodices. A celebração da memória dos antepassados acaba por misturar-se com uma parada de monstrecos estapafúrdios, numa espécie de Entrudo meio imbecil e fora de tempo. 

    O 31 de Outubro acaba por ser um dia um bocado tolo. Não é nosso, nem sequer pode ser ainda considerado uma tradição. É como substituir as touradas por rodeos e fazer de contas que foi sempre assim, tudo com chapéus de caubói a gritar "yahoo" nas bancadas e a comer "hot dogs" enquanto na arena os touros são montados e não espetados com farpas nem pegados por tipos com calças demasiado apertadas nos tomates.

    Mas pronto, é o tal mundo global onde tudo era de plástico mas agora vai passar a ser de algum material alternativo que permita cores berrantes e brilhos despropositados. Um dia seremos todos americanos e gordos como bisontes pelados. 

    Yupi.

Luta desesperada

    É muita hipocrisia. Dizemos que queremos salvar o Planeta, como se o Planeta dependesse de nós. Deveríamos dizer que queremos salvar a nossa Civilização, nem sequer a Espécie Humana mas sim o regime capitalista que nos devora.

    Pessoalmente não estaria muito para aí virado, salvar o capitalismo, mas a verdade é que estou viciado no modo de vida que este regime me permite. Não imagino outro modo de vida. Temo o desaparecimento de certos luxos, uns maiores outros menores; impressionam-me o desaparecimento de outras espécies animais, o aquecimento global, os continentes de lixo flutuante mas continuo a viajar no meu carro a gasóleo e a utilizar os meus sacos de plástico. 

    Sei que as grandes empresas e aqueles que delas beneficiam a um nível que nem sou capaz de imaginar, vão fazendo com que me sinta culpado por ser um dos milhares de milhões de Seres Humanos que poluem o planeta. São capazes de me tornar inimigo de mim próprio. 

    E eu luto contra mim. Umas vezes ganho, outras vezes perco a luta. Luto todos os dias, desde que acordo até que fecho os olhos e mergulho no universo dos sonhos. Sou um lutador incansável. Umas vezes ganho, outra vezes perco. Luto comigo próprio, sinto cada golpe e respondo na mesma moeda. É uma luta desesperada.