sexta-feira, novembro 25, 2022

Fábula comigo dentro

     Não tenho bem a certeza se gostaria de ser recordado lá mais para a frente, quando já cá não estiver. Convenhamos que se trata de um falso problema ou, pelo menos, de uma falsa questão; que incómodo me poderá causar o que alguém possa pensar de mim depois de estar morto e enterrado? Talvez por isso, não me tira o sono imaginar a forma como preferiria ser recordado.

    Quando era jovem ambicionava um lugar na História (ah, a vaidade humana!), imaginava a Humanidade como coisa eterna. Agora que se me embutiu no espírito a certeza de que a humanidade é, afinal, coisa breve, um piscar de olhos de algum deus distraído, nem essa ambição merdosa me atormenta. É um pouco como a fábula da raposa e das uvas.

segunda-feira, novembro 14, 2022

O ponto não está à janela

Notas introdutórias à minha intervenção na conversa/debate "O ponto não está à janela" a realizar no próximo dia 16 deste mês e deste ano

 

Vou basear o meu discurso em algumas coisas nas quais acredito mas que não tenho como provar. Serão ideias discutíveis e talvez, por isso mesmo, possamos trocar umas ideias sobre o assunto.

Vou partir do princípio de que toda a representação simbólica do mundo que nos rodeia tem, na sua génese, um impulso mágico que é, como quem diz, um impulso poético.

Estou convencido que o impulso que origina o discurso poético é diverso do que origina o pensamento científico, embora possam existir momentos em que estes discursos, aparentemente antagónicos, se aproximam e se completam.

Afinal de contas, poesia e ciência, magia e matemática, teatro e astrofísica, são formas de representação do mundo, tentativas de nos aproximar um pouco mais dos mistérios da existência humana. Mistérios esses que, no limite, podem nem sequer existir (ou podem ser representados como na simbologia de Almada Negreiros, 1+1=1).

Acredito que a criação da representação simbólica é muito semelhante às brincadeiras de criança, quando sentimos o impulso incontrolável de tentamos encontrar uma narrativa que faça sentido e a moldamos de acordo com os nossos anseios.

Os adultos informam-nos de que existe uma grande distância entre “real” e “imaginário” e que a “realidade” tem um valor muito superior ao “faz-de-contas” mas não nos convencem. Só deixamos de acreditar no mundo que inventamos quando entramos definitivamente no universo dos adultos e corremos o risco de nos perdermos para sempre.

Quando somos crianças imaginamos a vida como um teatro contínuo. E é assim que eu imagino o teatro: a representação incessante da infância inultrapassável e infinita que é a principal e única característica do Ser Humano.

(claro que continua!)

 

quarta-feira, novembro 09, 2022

Como uma barata (tonta)

     Ai as alterações climáticas, valha-me Nossa Senhora! E a guerra? Benza-me Deus!!! Os aumentos de preços dos combustíveis, das rendas de casa, do chá, do café, da laranjada, dos livros (ai, o preço dos livros...), da inflacção, dos juros da dívida, o aumento da ansiedade generalizada, a deterioração da saúde mental dos jovens (como se os adultos fossem impunes à loucura); estamos fodidos? Um gajo quer  perguntar mas não sabe bem a quem dirigir a questão. Alguém que me ouça? Alguém que me responda?

    Acordar e regressar ao mundo dos vivos é todo um processo de aceitação. Enquanto o mundo circundante não ganha consistência absoluta, o cidadão comum pode imaginar que vive num lugar justo e equilibrado. É como viver a infância toda nos primeiros 10 minutos de cada novo dia. Passada a magia do despertar eis-nos de regresso a este "awful place", como na canção dos Clash. A angústia é normalmente pouco, ou mesmo nada, dispendiosa e encontra-se em qualquer recanto do planeta.

    Viver cada dia como se o objectivo fosse mais ser feliz do que apenas chegar ao outro lado do fim da tarde. Caso contrário corremos o risco de nos tornarmos baratas, baratas daquelas que são tontas.

terça-feira, novembro 08, 2022

O urso

     E é assim, a Memória é como um urso, mas com períodos de hibernação imprevisíveis. Pode acomodar-se na caverna do crânio humano e dormitar para sempre ou deixar-se apaixonar pela luz de cada despertar e não parar de atormentar a quem de direito. A Memória como urso... até poderia funcionar mas parece-me uma metáfora entre o perigoso e o merdoso (rima fácil e evidente).

    A sucessão do Secretário Geral do Partido Comunista Português gerou um pequeno sururu entre alguns comunistas frequentadores do Facebook. Li com razoável atenção certa troca de ideias entre eles e o meu urso rolou sobre a barriga, deitando-se para o outro lado, levantando uma pequena nuvem de memórias na minha caverna craniana (não consigo libertar-me desta metáfora!?).

    Aqui estava eu nos meus 14/15 anos, pleno de confiança em mim próprio, confiança essa gerada por uma ignorância quase absoluta em relação a tudo o que fosse coisa, mas irradiando uma aura de energia positiva capaz de atrair outras pessoas para o meu mundo indefinido, onde ainda não houvera tempo para a criação de pântanos. Foi assim que me vi a frequentar a sede do PCP lá em Viseu sem perceber muito bem onde me estava a meter.

    À época havia a UEC, dos estudantes, e a UJC, dos jovens trabalhadores. A JCP seria fundada mais tarde. Se, por um lado, consegui a atenção dos estudantes, muitos deles, tal como eu, oriundos da pequeníssima burguesia, já do lado dos operários e camponeses apenas recebi desconfiança. A minha militância era errática e frágil e o camarada controleiro, montado numa motoreta e com um aspecto grave e concentrado, demasiado grave e demasiado concentrado para alguém pouco mais velho do que eu, olhava-me com vago desprezo. E tinha toda a razão.

    Nunca tive consciência de classe pois nunca percebi muito bem a que classe pertencia (pertenço) embora reconheça e esteja convencido de que a luta de classes é, sem sombra para dúvidas, a seiva das sociedades humanas. Mas o camarada da motoreta sabia (soube-o antes de mim) que eu não estava pronto a abdicar dos meus anseios em favor da Causa. Afinal de contas eu vivia no universo de Ian Dury e do seu Sex and drugs and rock'n'roll. Estava apanhado, a minha luta era outra: a luta pela sanidade mental.

segunda-feira, novembro 07, 2022

Memorabilia

     Não sei se também te acontece, leitor amigo, olhares para trás (olhares o teu passado) e pensares: não vejo nada! A mim acontece-me quase sempre que olho com a vista desarmada. Não alcanço o que vivi e se sinto uma ligeira brisa a agitar-me a memória, rapidamente a janela se fecha e tudo volta à sua habitual quietude de recanto e sombra. Em matéria de memória sou aparentado ao granito.

    Vivo, no entanto, experiências transcendentais quando coloco na mente o potente telescópio da literatura (ia dizer "os óculos da literatura" mas pareceu-me tão fraquinho...) e o meu corpo é trespassado por memórias de toda a índole. É uma experiência com o seu quê de estranheza mas decerto tudo se explicaria com a maior das naturalidades, fosse eu capaz de compreender os contornos do fenómeno.

    Estou a ler "Lições", o mais recente romance de Ian McEwan, e tem sido uma girândola de sensações perdidas e sensações reencontradas; outras, apesar da sua provecta idade, são sensações que me surgem desvendadas como se regressasse momentaneamente à minha infância, à adolescência. 

    Eu sei que as minhas experiências de vida hão-de estar gravadas no meu cérebro: arrumadinhas, sempre disponíveis caso eu possa chegar-lhes, estão à minha espera. Mas, sem ajuda, sem a prótese poderosa da literatura. as prateleiras onde se alinham as memórias são sempre demasiado altas, demasiado confusas e desarrumadas, afundando o passado no caldo tépido do esquecimento.

terça-feira, novembro 01, 2022

O cavaleiro do Apocalipse

     Com o fim do mundo humano a ganhar forma (sim à guerra, as alterações climáticas que se lixem) Deus vencerá a disputa eleitoral com a Democracia, derrotando-a por larga margem. Em momentos de desespero provocados pela iminência do fim até o mais empedernido dos ateus sente um frémitozinho que o leva a ponderar a possibilidade de haver algo mais do que a morte. Perante a morte a Ciência tende a perder razão; Deus não.

    As narrativas do ano mil informam-nos de uma loucura suplementar que tomou as mentes dos seres humanos perante a aparente inevitabilidade do fim dos tempos. O desvario transforma-se em norma quando a racionalidade é engolida pelo medo. O medo é o grande lobista de Deus e parece trabalhar a troco de nada, como trabalham os demónios, apenas pelo prazer de mostrar a sua força, a sua razão, a sua omnipotência.

    Virão em breve tempos de desespero absoluto com Deus montado na sua terrível sede de vingança, capaz de julgar-nos a todos culpados da sua inépcia criadora? O Apocalipse tem um cavaleiro, apenas um.