segunda-feira, março 18, 2024

Evangelista

     A desordem do mundo é paralisante. Animado por sentimentos cristãos, gostaria de poder contribuir decisivamente para reparar algumas malfeitorias, corrigir este erro ou  aquele, aproximar dali o Paraíso, nem que fosse mero meio milímetro. Mas, népias! Querer parar as injustiças é como esticar as mãos na esperança de com elas estancar a ventania. 

    Sente-se coisa inútil.

    Desanimado (pedindo desculpa a Deus) vira-se para o outro lado e volta a fechar os olhos. O sono cai sobre ele como uma carga da Brigada Ligeira. É, agora, um penedo no silêncio absoluto do pinhal. Coisas informes, nacos de carne sanguinolenta, esvoaçam em redor da uma única flor carnívora, batendo asinhas de colibri disparam pingos de sangue a toda a volta, metralham as paredes. 

    Sorri no sono.

    Lê o jornal no écran do telemóvel, bebe um café (horrível, amarguíssimo) enquanto guarda o pacotinho de açúcar no bolso das calças. Olha sobre o ombro, imagina nazis em todo o lado. Regressa ao écran e já não presta atenção a nada do que lê. As palavras têm forma mas perderam significado. A mente  vagabundeia e é assim que abandona o Café da Esquina: pés no chão, cabeça  bem no ar. É preciso viver mais aquele dia e a morte não lhe faz falta.

    Lá do outro lado do mar morrem pessoas inocentes, homens ímpios comandam as nações. O abismo abre-se como um inferno pior do que este mundo, milhões de seres vivos precipitam-se naquela ravina infinita. Aves, homens, peixes, a catástrofe é indescritível e a morte sempre insaciável. Um evangelho do desespero vai-lhe crescendo dentro da cabeça.

    Chegado ao local de trabalho veste a farda, coloca no peito a plaquinha com o nome, olha-se ao espelho e alisa para a nuca os cabelos que lhe restam. Dirige-se ao balcão. Por entre um sorriso elástico que lhe arreganha a taxa solta o seu gritinho de guerra: Bom dia, em que posso ajudar?  

domingo, março 17, 2024

Quase

     Rio-me de tudo! Tudo me provoca espasmos descontrolados na musculatura, por todo o corpo. Contraio-me, ondulo, abro a boca em busca de uma golfada de ar e liberto um riso talvez nervoso. Não sei. Não sou um estudioso. Rio e pronto! Sabe bem.

    Por vezes caio num torpor incompreensível (pode acontecer após uma sessão de riso). Talvez seja uma paralisia provocada pela estranha sensação de estar quase a compreender uma certa coisa sem que seja capaz de alcançar que coisa é essa. Incomoda. 

    E, então, é assim. O meu corpo comporta-se como o de uma leão marinho, a ondular gorduras, a largar sons guturais e, de súbito, tudo pára, atravessa-me um último estertor antes de se instalar uma acalmia violenta. Paraducho.

    E é muito isto, do riso ao estupor vai a curtíssima distância de um pensamento incompreendido. Afinal não passo de um ser humano (ou perto disso).

quinta-feira, março 14, 2024

O pior inimigo

     Todos os dias me espanto mais um pouco com a nossa capacidade para sermos estúpidos. Quando escrevo "nossa" quero referir-me à sociedade que vamos construindo, refiro-me àquilo que somos como um todo. 

    Vivemos o quotidiano como se fôssemos zombies, mortos-vivos sociais. Sentimos extrema dificuldade em soletrar correctamente a palavra "so-li-da-ri-e-da-de" quanto mais em compreender o seu significado.

    Todos os dias me espanto com a forma decidida como a nossa espécie marcha em direcção a um abismo que cava cada vez mais fundo; um buraco imenso, misto de falésia e sepultura, que vamos abrindo, abrindo, abrindo, enquanto desejamos não o fazer. Temos (temos?) consciência plena de estarmos a contribuir inexoravelmente para o nosso próprio fim. Mas nada nos detém.

    O discurso não reflecte o pensamento, a acção é contrária ao desejo que a impele. Somos animais impossíveis de compreender. Deus deixou de nos proteger daquilo que desejamos. Esse era o Seu papel. Agora estamos entregues a nós próprios, entregues ao nosso pior inimigo.

    Enquanto a Estupidez for rainha absoluta não haverá ministério que nos valha.

quarta-feira, março 13, 2024

Silencioso

     Faz hoje exactamente um ano. Caronte vinha já deslizando, silencioso como ele só. Terá por mim passado no caminho, não me apercebi, não o vi, não o senti. Faz hoje exactamente um ano que chegou Caronte.

    Chegou cedo, encontrou-o a dormir. Não sei se falaram, se olharam nos olhos um do outro. Caronte levou-mo. Não mais voltei a ver o meu pai. Fica a saudade, enquanto Caronte não voltar, dessa vez para me levar.

segunda-feira, março 11, 2024

O bestunto

     A ascensão da extrema-direita nas eleições legislativas de ontem deixou-me a pensar no modo como nascem os monstros. Nascem como todos os seres, aparentemente frágeis e desprotegidos até que ganham dentuça, garras nas patas e passam a cheirar mesmo mal. Ontem o fedor entrou-me de rompante pela janela entreaberta.

    O mundo não acabou, apenas ficou ficou bastante mais feio e mais perigoso.

sexta-feira, março 08, 2024

Visão e premonição na vida de um cão

    A sensação reconfortante de que a nossa sociedade evolui continuamente é uma ilusão poderosa. Imaginamos uma espécie de Nirvana ao virar da esquina sem olharmos para trás, sem verificarmos se as coisas vão ficando nos lugares onde as deixámos.

    As conquistas alcançadas não são eternas. Os impérios, afinal, acabam sempre por cair, aquilo que foi grandioso degrada-se, definha e perece. O poder está muito longe da solidez que aparenta ter de cada vez que se impõe e determina uma certa linha da realidade.

    A felicidade alterna com momentos de tristeza, à euforia sucede o marasmo, a depressão. Um dia tudo acabará. Imagino que fique o silêncio e que o silêncio permaneça.

domingo, março 03, 2024

Projectos

     Apercebeu-se de que nunca tivera aquilo a que se pode chamar "um projecto de vida". O que tivera sempre, o que continuava a enquadrar as suas acções, a sua vida, fora uma organização quotidiana orientada em função de projectos pontuais. Esses projectos permitiam-lhe planear o futuro doseadamente; por vezes chegava quase a perceber o que andava a fazer neste mundo.

    Na ausência de um "projecto de vida" limitava-se a viver uma vida feita de projectos. Até aquele dia não se pode dizer que se tenha dado mal. Se descontarmos uma ou outra fase menos feliz, tivera (e continua a ter) uma vida razoavelmente descansada.