quinta-feira, julho 25, 2024

Impasse

    Contar uma história não é tarefa fácil, principalmente quando não temos a mínima ideia da história que queremos contar. Sim, porque uma coisa é querer contar uma história e outra coisa, bastante diferente, é sabermos que história é essa. Nesta situação encontramo-nos num impasse.

    No entanto, um impasse, este impasse, pode constituir um ponto de partida razoável para contarmos uma história. Imaginemos um início, uma primeira frase: "Ela queria contar uma história mas não sabia que história contar."

    Partindo daqui quem sabe onde poderemos nós ir parar!?

terça-feira, julho 23, 2024

Questão de perspectiva

     O espelho insistia em manter-se discreto; não reflectia, não especulava. Olhava-o com disfarçada insistência, de soslaio, tentando passar despercebido mas ele, o espelho, não reflectia. Nem especulava. Era como se eu não existisse apesar da consciência que me habitava (e ainda habita) e me fazia acreditar estar aqui.

    O problema prendia-se, exactamente, com esse tal "aqui". Aqui no mundo físico? Aqui, no mundo virtual? Ou aqui, reflectido no espelho?

    Uma vez que o espelho se recusava a devolver-me o olhar que lhe oferecia duvidei do meu ser. Imaginei-me vampiro, fantasma, imaginei ter passado para um qualquer estado de existência desconhecido e sem expressão física. Senti já ali não estar.

    Foi então que decidi avançar na direcção do espelho, interpelá-lo frontalmente, oferecer-me sem receio à prospecção que ele faria do meu rosto, do meu corpo, do meu ser. Desse por onde desse, fossem quais fossem as consequências, enfrentei-o.

    Ali estava o meu eu reflectido. Afinal não era um fantasma, nem nada daquelas coisas mirabolantes que imaginei; era eu mesmo, o ser habitual e imperfeito, o bicho, o homem, as mesmas dúvidas, as mesmas rugas, os olhos no lugar devido. O espelho não me reflectira por mera questão de perspectiva.

sábado, julho 20, 2024

Uma igreja na floresta

     Era uma vez um Pato casado com um Gato, juntos tiveram um filho a quem chamaram Cão. Viviam junto ao mar, numa floresta de árvores azuladas atapetada de estranhas flores. Viviam felizes a ladrar, a miar, a grasnar, a floresta ecoava alegria e boa disposição, o mar trazia nas ondas coisas agradáveis.

    Um dia o Cão conheceu o Tubarão e ficaram amigos. De quem eles não gostavam era do Pinguim, não simpatizavam com ele nem um bocadinho. Apesar de todos os esforços que fazia para soar bem educado, o Cão e o Tubarão achavam que o Pinguim era um convencido de merda por andar sempre de fraque; fizesse frio ou calor, nunca tirava a fatiota de cerimónia. Palonço!

    Fosse como fosse, tudo corria bem na floresta: vida fácil, alimento abundante, sol ou sombra, secura ou humidade, tudo consoante as necessidades de cada um e ninguém metia o nariz onde não era chamado. Um paraíso. Até que um dia Deus reparou na floresta e lembrou-se que a tinha esquecido. Como é apanágio de um Ser tão perfeito e completo, decidiu agir visto que tinha ideias muito específicas sobre o que era bom e o que era mau e, ao contrário dos habitantes da floresta, Deus não se estava a cagar.

    O Pato, o Gato, o Cão e o Tubarão não percebiam nada do que Deus lhes impunha. O Pinguim percebia mais ou menos. Farto de tentar explicar-se e não ter sucesso, Deus nomeou o Pinguim como seu sacerdote e incumbiu-o de zelar pela ordem e desenvolvimento das coisas divinas na circunscrição daquela floresta (onde nunca nada havia faltado). Nem alimento, nem comodidade, nem boa disposição. Ali o que mais faltava era tristeza, era violência ou falsidade absoluta.

    Deus nomeou o Pinguim seu sacerdote e lá foi, regular as vidas de outros animais, noutras florestas. A floresta de árvores azuis ganhou uma igreja que era coisa que nunca antes ali existira e da qual nunca ninguém tinha sentido falta nenhuma. Nem Deus.

    A partir daquela aquisição supérflua, a influência do Pinguim cresceu de tal maneira que o Gato, o Pato e o Cão, seu filho, fartos de tanta regra, tanta admoestação e castigos imbecis, se mudaram para perto da fronteira com o deserto. O Tubarão foi perseguir focas para outras paragens. O Pinguim inchou, inchou e ficou tão gordo que deixou de pôr uma pata que fosse fora da igreja. Mas isso já é uma outra história. A Girafa que a conte.

terça-feira, julho 16, 2024

Coisas que acontecem

     Não sei se também te acontece, há dias em que nada me convence e quase nada me comove. Dias em que não acredito em ninguém, em que não suporto a grandeza de gestos magnânimos e nem sequer chego a indignar-me com a baixeza de espírito que caracteriza certos estúpidos e a maior parte dos filhos da puta. Dias como este, em que escrevo as palavras que agora lês.

    Sinto uma espécie de vazio chato, um vazio mau. É mais um bicho que se me alojou ali entre o peito e o estômago e não me deixa sossegar, um bicho que me aperta o coração a ponto de eu soltar suspiros que há muito mantinha prisioneiros da minha boa disposição que entretanto vai tendo dificuldade em se manter equilibrada na única perna que lhe resta.

    Apetece-me fazer alguma coisa, seja o que for? Não. Não me apetece fazer nada mas ainda vou ter que me levantar, vestir uma roupa mais decente, sair de casa e ir ao teatro ver uma peça cuja perspectiva não me entusiasma por aí além. 

    A esperança é que esta aparente valente seca tenha um efeito regenerador, que a deslocação me desperte um pouco, que o teatro me anime, enfim, a esperança é que a vida aconteça e que o tal bicho vá chatear outro. Não sei se já te aconteceu.

sábado, julho 13, 2024

Ser (o fantasma)

     Pode a invisibilidade crítica provocar azedume ao ponto de causar forte azia e levar o invisível (o fantasma) a vociferar que nem um porco? Pode. Pode o anonimato levar o anónimo (o fantasma) a desesperar ao ponto de pensar em largar os pincéis e dedicar-se à pesca com cana e anzol? Pode. Pode a falta de reconhecimento público fazer crescer dentro do ignorado (o fantasma) uma inveja biliosa que ele confunde com injustiça? Claro que sim, pode.

    Pode um gajo persistir em fazer pintura, desenhar, imaginar e sonhar, década após década sem que nada de relevante aconteça e ele (o fantasma) se vá esquecendo de quem foi, fique confuso com aquilo que é e, apesar de tudo, deseje ser algo diferente (do fantasma) um dia que ainda está para vir. Sim, pode (que aborrecido). "Pode alguém ser quem não é?" Isso, agora...

quinta-feira, julho 11, 2024

Reflexão indolente

     O discurso da crítica, estou a pensar na crítica das artes plásticas mas penso que a coisa se pode estender a outros géneros de expressão artística, vive muito do gosto pessoal de quem critica. É pouco justo? É. É potencialmente faccioso? Sem dúvida. Parcial? Vale a pena continuar a desfiar as contas deste rosário? É tudo isso e um par de botas. 

    Mas, outro aspecto interessante deste, chamesmo-lhe: universo; é o facto de haver muita arte produzida por muitos artistas que, simplesmente, não existe (nem a arte nem o artista). Ou melhor, existe num limbo muito particular que é o da invisibilidade crítica. Como se rompe este véu que impede o público de ver o que está em causa? Também não sei.

    Na verdade tenho cá a impressão de que as coisas poderiam ser de outro modo, poderiam ser diferentes, poderiam... mas não são. São assim mesmo e eu, continuo a dizer a minha (já velha) frase: eu sei que não existo, no entanto estou aqui.

quarta-feira, julho 10, 2024

Amizade genuína

     Será a solidão o mais assustador dos problemas que um ser humano pode encontrar ao longo da vida? Há quem diga que não tem medo da morte mas que a perspectiva de viver uma vida solitária sim, é coisa que lhe provoca desarranjo intestinal. 

    Nos tempos que correm não sei bem o que possa ser considerado "solidão". Todos nós temos dezenas, senão mesmo centenas, de amigos no Facebook. Eles nunca irão abandonar-nos, nunca ficaremos sós. Logo, a solidão parece-me um falso problema (há ainda o Instagram,o TikTok, eu sei lá que mais!).

    A menos que a ausência de toque, de calor humano, a ausência efectiva de um corpo real na nossa zona de acção seja considerado "solidão", o mundo virtual encarrega-se de nos preencher o dia-a-dia, encarrega-se de nos oferecer um objectivo de vida (ou vários). 

    O computador, o objecto em si, é um amigo (tocamos-lhe, sentimos o seu calor, ouvimo-lo, falamos com ele e através dele...), o computador é um amigo e um amigo fiel, diria eu!

    Fico já por aqui, não te chateio mais: se pretendes uma amizade efectiva e genuína olha bem para o objecto que tens à tua frente (se estiveres a utilizar um telemóvel também serve) e sorri-lhe. Ele merece-te e tu merece-lo a ele. Sejam felizes!