segunda-feira, março 20, 2023

Águas mornas

     

    A conversa não é fácil nem sequer muito clara. Discute-se uma eventual diluição da fronteira entre territórios políticos, uma terra de ninguém entre "esquerda" e "direita". Para João Miguel Tavares será uma espécie de "terra prometida" que o Deus do Bom Senso reservou aos liberais, o povo eleito. É aí que se vai construindo o discurso equilibrado merecedor de constituir o evangelho socioeconómico que nos levará à redenção enquanto projecto de sociedade. Apesar de normalmente tomar banho com água muito quente até posso concordar com parte substancial do discurso de JMT.

    O problema é quando a nossa reflexão é feita em abstracto, principalmente se formos pessoas com uma vida razoavelmente confortável que, apesar da inflacção e dos salários baixos, ainda conseguimos pagar as contas e ter dinheiro de sobra ao fim do mês para comprar um livro ou ir a uma sala de teatro. É que há uma multidão que não se pode dar a estes "luxos”. São os tais deserdados que nunca tiveram herança que não fosse fome e miséria. São os tais que, apesar de trabalharem, não conseguem ganhar dinheiro suficiente para pagar a renda de casa e poder comer decentemente uma vez por outra. E o tempo é curto.

    A morte de Rui Nabeiro veio lembrar a todos nós que a solução se encontra na redistribuição da riqueza. Não há que abominar o capitalismo. Há que abominar os abutres, as sanguessugas e os vampiros que se aproveitam da nossa incapacidade para encontrarmos o tal lugar sem fronteiras onde todos seremos (mais ou menos) felizes.

   carta enviada ao Director do jornal Público

domingo, março 19, 2023

17 horas

     Apercebeu-se de que nunca mais haveria aquela pessoa do outro lado da chamada telefónica. Tudo porque passavam as 17 horas no mostradorzeco do telemóvel. Sentiu um aperto na garganta que desceu ao peito, um desconforto, uma ausência. As lágrimas voltaram. Nos últimos dias as lágrimas iam e vinham como se fossem um mar. Foi então que constatou o facto de não ter visto o corpo. Um calor inesperado ruborizou-lhe o rosto. Poupara-se ao cadáver?

    Reflectiu sobre a questão. Quem poupara ele ou o que poupara? No deve e haver dos afectos nunca houvera qualquer tipo de poupança. Concluiu que não poupara nada, pelo menos conscientemente, não houvera poupança. Apenas entrega, amor e, agora, instalava-se a saudade. Todos os dias, quando as 17 horas passearem em direcção ao fim da tarde. Para sempre.

domingo, março 12, 2023

Oxalá

     Pergunto-me se a crueldade nasce do ponto máximo da capacidade humana em suportar a dor e a angústia, aquele momento extremo em que alguém pensa: "que se foda!" e a partir do qual tudo perde o sentido e tudo passa a ser possível. Deixa de haver amor, deixa de haver ódio, tudo se transforma em indiferença paranóica.

    A pessoa cruel não terá de ser necessariamente monstruosa, muito provavelmente será triste e angustiada: tristeza e angústia, instrumentos terríveis das forças obscuras que teimam em manter viva a nossa crença na existência do Inferno. 

    A crueldade é uma doença do espírito? Para que isso fosse verdadeiro a nossa condição natural teria de ser a da bondade. Oxalá.

sexta-feira, março 10, 2023

TINA

     Não há volta a dar-lhe, dizem que vivemos sob o patrocínio da TINA (a tal que diz "there's no alternative) mas, está na cara, é uma conversa da treta. Alternativa há sempre, o problema consiste em percepcioná-la e, mais complicado ainda, conseguir criar sinergias capazes de pôr a coisa em marcha. 

    O nosso modo de vida fomenta a fragmentação do grupo. Metemo-nos em casa a olhar para rectângulos com imagens (televisores, computadores, telemóveis) acreditando que através dessas janelas virtuais comunicamos com o Mundo. Talvez até seja verdade, talvez haja comunicação (olha para nós, aqui, a "conversarmos"), mas acaba por ser uma comunicação estéril em termos sociais. A haver algum benefício no processo será tendencialmente individual.

    E é esse o nosso fado: sermos indivíduos com barrigas salientes e um umbigo na ponta, o qual contemplamos embevecidos, convencidos de que o Mundo não nos merece ou, nos casos mais desesperados, que não merecemos o Mundo.

    Quando saímos à rua em grandes grupos e manifestamos desacordo com algum aspecto menos atraente da TINA ficamos com a sensação de que fizemos algo socialmente radical mas, no fim das contas, a TINA acaba sempre a rir-se. A puta!

carta enviada ao Director do jornal Público

quarta-feira, março 08, 2023

Reflexos do passado (e do futuro)

     Não sou gajo de perder muito tempo defronte ao espelho. Com o andar da carruagem tenho-me tornado numa espécie de burro velho e grisalho, não sinto grande atracção pelo meu próprio reflexo. Isso não quer dizer que me estou absolutamente nas tintas para o meu aspecto. Nada disso. Apenas não perco muito tempo a pensar no que me transformei nem sinto particular saudade por aquilo que fui outrora. A barriga teima em ficar como está.

    Ainda assim, quando dou por ela, estico a nuca e tento manter uma certa postura ao caminhar na rua. Depressa esqueço e volto ao andar marreco. Estica, marreco, marreco, estica, sempre dá um certo colorido ao acto banal de pisar o passeio.

    Gosto de me imaginar como sendo jovial e bem-disposto. Daí que me ria bastante comigo próprio quando vejo o tal gajo grisalho, com a sua barriguita e meio marrequito a olhar-se no espelho depois de uma bela banhoca matinal. Sei que não sente grande tristeza por ser assim. Sei também que se vai tentando convencer de que a beleza é algo interior, uma confusão qualquer entre Ética e Estética, mas, lá no fundo, pensa que a beleza e a perfeição não precisam dele para nada. E ficamos bem assim.

terça-feira, março 07, 2023

Frutos do futuro

     A mulher já teria tido a ilusão de ser bela. Agora ajeitava timidamente o cabelo e caminhava rente à parede da clínica. Lá mais prá frente todos nos transformaremos em coisas que antes não conhecíamos.

segunda-feira, março 06, 2023

Coisas sem sentido

     Deuses que viajam de barco. Anjos que vislumbramos na berma da estrada. Personagens de fábulas nas quais somos os animais que falam. 

    É como quando te proteges de um frio que não sentes.

    Queremos do mundo coisas que não tem para nos oferecer e o corpo revela-se: é uma atrapalhação do espírito.

    Vivemos os nossos últimos dias.