quinta-feira, novembro 13, 2025

Sonhar

     Sonho. Sonho com o passado, imagino futuros, o presente esgueira-se, desliza como uma enguia... talvez mais como moreia ou tubarão martelo. Foge-me com uma facilidade aterradora mas não me tira o sono; e eu sonho. Sempre que acordo sei que sonhei mas não consigo recordar nada, não recordo nadinha. Népias. São assim os meus sonhos: recordações absolutamente vazias, coisas que sei que aconteceram mas que não faço a mínima ideia de qual foi o seu aspecto. Não é doença mas também, sempre te digo, não contribui grandemente para melhorar a minha saúde. No entanto eu sonho.

segunda-feira, novembro 10, 2025

Sombras frias mais adiante

     A questão não é "se", a questão é "quando"? Quando acabará o "mundo" tal como o conhecemos. A nossa civilização é insustentável, o colapso acontecerá. Inevitavelmente. Posto isto, Deus não me parece assim tão grande.

    Todos os grunhos, todos os vilões, os ditadores, os exploradores, os maiores cabrões, todos perecerão lado a lado com os tótós, os bonzinhos, os torturados e os explorados. É tudo farinha do mesmo saco!

    Por vezes ponho-me a pensar no que fariam os habitantes de Pompeia no minuto anterior ao início da fatal erupção vulcânica. Grandiosidade, banalidade, alegria, tristeza, honestidade e roubalheira, tudo levado, tudo queimado, ultrajado e soterrado por toneladas de calhaus e lava ardente. Ainda hoje andamos a desenterrar memórias então perdidas. 

    A questão não é "se", a questão é "como". Como irá acontecer? 

sábado, novembro 08, 2025

Turbulência

     Eram apenas bonecos mas existiam no caderno, no mundo do caderno eram coisas reais. Os bonecos existiam realmente no interior do caderno embora estivessem limitados à página onde foram desenhados. Mas existiam. Os bonecos. Eram verdadeiros, dentro do caderno, existiam. Eram coisas reais.

quinta-feira, novembro 06, 2025

Construtor

     Olhar para trás pode causar um torcicolo. Quando tentamos recordar o passado estamos a arriscar um torcicolo na memória (ia escrever "na alma" mas mudei de ideias quando martelei as teclas). Talvez seja por isso que costumamos ajeitar as memórias à imagem que fazemos de nós próprios, pintamos um passado bem mais bonitinho do que ele terá sido. 

    Será que essa atitude auto-complacente altera, de facto, o  tempo que ficou para trás? Ou, se ficou para trás, o tempo é imutável? O tempo desloca-se agarrado aos nossos pés, como se fosse uma sombra? Isso explicaria a atitude de Peter Pan, a tentar recuperar a sua sombra, Peter Pan a ser um menino para sempre.

    Correndo o risco de provocar à minha alma um torcicolo olho para trás mas dou com o nariz num denso nevoeiro. Não consigo andar em direcção ao passado, fico ali assim, especado, a tentar vislumbrar alguma coisa. Não é fácil. De vez em quando percebo um corpo em movimento, adivinho uma silhueta. Se, por acaso, alguma coisa se aproxima de mim ao ponto de se tornar visível depressa avalio da necessidade de a ver com clareza ou ser melhor fechar os olhos. Construo a minha história.

domingo, novembro 02, 2025

Resumindo seis décadas (e uns trocos)

     Estive demasiado ocupado a viver ou a tentar viver, não tive tempo para a Arte. Ser artista foi coisa que restou, suspensa, na borda do prato. Ainda hoje não sei se a coma se a deite no caixote do lixo da minha história pessoal. 

    Estive demasiado ocupado a perseguir quimeras, fadas, sonhos, a tentar dia após dia fugir deste mundo em direcção a outro. Qualquer outro. A minha falta de critério levou-me a sítios horrendos na maior parte das vezes mas também tive a sorte de vislumbrar um ou outro paraíso. Unicórnios nunca encontrei. Bruxas? Muitas.

    Uma noite houve uma bruxa francesa com aquele característico cheiro adocicado a suor que me disse que eu era (sou) um monge que falhou a vocação. Naquela época eu carregava forte e feio no álcool e quando tive essa interacção com a dita bruxa devia estar já bem aviado. Mas a frase ficou e a ideia regressa de vez em quando para me relembrar o passado.

    Numa outra ocasião houve um gajo intratável com quem partilhei uma sala de trabalho numa casa onde arrendávamos quartos separados a uma senhora decadente, um gajo, dizia, que me apresentou a alguém (impossível lembrar-me a quem) dizendo: este gajo é um génio com quem partilho casa. "Um génio"!? Uau, nunca me esqueci dessa situação. Esse gajo (vão 4 gajos neste parágrafo embora, na realidade, sejam apenas dois) é a única pessoa, que me lembre, com a qual deixei de falar por completo. A única pessoa com quem cortei relações de forma abrupta e consciente. Até hoje, já lá vão uns bons trinta anos.

    Estive demasiado tempo ocupado a tentar não enlouquecer, a tentar não me afundar na filha-da-putice. Nem sempre tive sucesso mas as mazelas são quase nenhumas e os danos permanentes quase não se notam. Hoje imagino-me feliz. 

quarta-feira, outubro 29, 2025

Futurismo

     A sensação instalou-se e nada poderá desalojá-la: o destino da humanidade é mais curto do que se poderia imaginar há apenas duas ou três décadas atrás. Talvez a coisa não seja assim tão radical, haja esperança. Talvez fiquem por aí uns quantos, para semente. Talvez restem pequenas comunidades de seres humanos capazes de resistir e repovoar o que restar de território habitável. Talvez haja esperança para a existência de Deus.

    Parece-me indiscutível que as divindades, tal como acontece com as fadas, dependem daqueles que nelas acreditam para que possam existir. O que será de Jeová sem as Suas criaturas, os Seus altares, as Suas testemunhas? 

    Assim, esta correria vertiginosa da nossa espécie em direcção ao abismo civilizacional parece-me uma espécie de suicídio divino. Talvez as tribos amazónicas que não sabem o que é o aquecimento global ou o continente de plástico, que desconhecem Jeová, Alá e outros aleijões do género, que nunca viram um gajo como eu ou como tu, pacientíssimo leitor, talvez essas tribos venham a reinar no planeta tendo como adversários o crocodilo e a pantera, verdadeiras divindades da floresta.

    Talvez a Bomba nunca chegue a ser lançada.

terça-feira, outubro 28, 2025

Solubilidade

     O céu fechou-se de súbito. O sol não foi para ali chamado e o dia ficou semelhante a uma noite qualquer. O vento a marulhar nas folhas das árvores confundiu-se com o ruído da chuva a cair. O ar não estava frio, sentia-se um leve calor. Que fazer? Devia esperar que a chuva amainasse ou meter pés ao caminho? Não lhe apetecia tomar uma decisão por isso ignorou o problema, fez com que não existisse. Não existindo problema ficava tudo bem; a escuridão, a chuva, a temperatura ambiente.