quarta-feira, junho 29, 2022

História

     A História dá-nos vislumbres do Passado. Mesmo quando dispomos de fontes concretas sobre determinado acontecimento, o Tempo baralha-nos, troca-nos as voltas e apenas podemos imaginar o que terá significado para aqueles que o vivenciaram. O problema somos nós.

    Olhamos os acontecimentos passados com os nossos olhos, sentimos com aquilo que trazemos dentro de nós, como podemos compreender o que sentiu um homem das cavernas? Imaginamos a sua vida tendo como termo de comparação a nossa própria. Não me parece que haja grande coisa a fazer acerca disto.

    Mesmo quando recordamos a nossa infância ficamos impedidos de reviver fidedignamente aquele tempo por sermos já tão diferentes do que fomos. 

segunda-feira, junho 27, 2022

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     Talvez receasse falar demais, talvez sentisse que os seus temas preferidos, aqueles a que não conseguia fugir, fossem incomodativos para as pessoas. Pessoas mais interessadas em absorver os raios solares ou largar as suas preocupações em palavras que eram bolinhas de sabão levadas pelo vento.

    Talvez sorrisse com aquela boca como um melão a que tivessem aberto e tirado uma talhada, aquele sorriso falso iluminado pelos olhos azuis, inexpressivos, olhos quase transparentes. As pessoas falavam, bolinhas rodopiavam pelo ar que rebentavam silenciosamente quando tocavam as paredes da casa, a mesa, os copos, os talheres, quando tocavam os objectos.

    Tudo aquilo lhe provocava uma ligeiríssima indisposição, como se quisesse cagar e não conseguisse fazê-lo. Desviou o olhar que fixara na janela vazia. Levantou-se, desejou a todos que tivessem um resto de boa-noite e ausentou-se sem que lhe ouvissem os pés a bater no chão; saiu de cena como se deslizasse um palmo acima do soalho, levitando.

    O vampiro

sábado, junho 25, 2022

Ser como o caranguejo

    "Quem anda pra trás é o caranguejo", diziam-me quando eu era pequeno. Penso que fosse uma forma de incentivar a criançada a pensar no futuro como sendo algo que se procura e não algo a que se regressa. Talvez, não posso afirmá-lo com certeza.

    E tenho vivido a minha vida a imaginar que as coisas são assim, que a construção da sociedade é sempre prá frente que "prá frente é que é o caminho"! Esta sensação de evolução irreversível estaria decerto relacionada com o facto de ter vivido o tempo da Revolução, que aconteceu tinha eu 11 anos de idade. Sair de uma sociedade salazarista, sufocada no seu próprio vómito, para entrar num processo revolucionário que haveria de culminar com a adesão à União Europeia, deu-me a impressão de pertencer a uma sociedade que se deslocava convictamente em direcção a um amanhã cantor. Engano.

    2022 tem sido um annus horribilis para o sonho democrático. Da invasão do Capitólio à invasão da Ucrânia, os sinais de alerta para um maremoto que poderá levar tudo à frente são alarmantes. Para Putin, Trump e Xi Jinping, nomeando apenas os demónios maiores deste inferno, é como se o episódio do Dilúvio fosse mesmo um facto histórico (Bolsonaro nunca duvidou), daqueles que se repetem, a História a andar pra trás, como o tal caranguejo. Os ditadores anseiam por um maremoto que ponha fim a essa coisa que designam por Democracia, lavando o mundo todo, deixando-o virgem para que nele se institua uma Nova Ordem, assente em regimes autocráticos, governados por homens (nunca mulheres!) providenciais, alguns deles cumprindo mesmo uma missão que lhes foi confiada directamente por Deus.

    Temos assistido a um sem número de sinais que nos alertam para a possibilidade de uma angustiante regressão civilizacional. Há, no entanto, milhões de pessoas que apoiam esse passeio ao jeito do caranguejo, em direcção ao precipício do passado. Tal com Hitler ou Mussolini também Putin, Trump e outros monstros, que não têm mais que fazer que não seja o exercício da sua monstruosidade, são levados por ondas de loucura popular até aos cadeirões do poder .

    Vivemos tempos perigosos para as minorias, para as mulheres e para todos os que não vergam a mola perante a brutalidade dos chefes. O povo quer, o povo tem o caranguejo. Haja saúde económica!

    

quinta-feira, junho 23, 2022

Carneilobo ou lobarneiro?

     Quando foi que um gajo sonhou com a possibilidade de virmos a construir um mundo mais justo, mais equilibrado na distribuição da riqueza e na diminuição da miséria? Foi algures entre "O Capuchinho Vermelho" e "As Aventuras dos 7"? Talvez um pouco mais tarde, ali por alturas do "Robin Hood" ou do "Spartacus, a revolta dos escravos". A chamada "idade adulta" conspurca todos os sonhos de pureza, põe-nos um serrote nas mãos quando somos apresentados ao Unicórnio.

    O facto de pertencer à classe média (baixota) de um país (pobretanas) entrado na União Europeia faz de mim um felizardo do caraças! Nunca passei fome que não fosse por opção, nunca fui à guerra, já não houve tempo para isso, sempre habitei casas razoavelmente confortáveis. Isto faz de mim um privilegiado, põe-me no montinho dos exploradores. Não me queixo.

    Se estivesse no monte dos deserdados da sorte, dos que comem trampa e vivem na rua, qual seria a minha filosofia de vida? Tentaria viver de acordo com as regras enquanto esperasse que algum cabrão endinheirado reparasse em mim, tão pobrezinho e tão asseadinho? Ou faria tudo o que estivesse ao meu alcance para obter aquilo que imaginasse fazer-me falta? Estou em crer que a distância entre o lobo e o carneiro é muito mais curta do que possa parecer, mesmo à segunda vista.

terça-feira, junho 21, 2022

Zombies suicidas

     Não há nada a fazer, a espécie humana é uma espécie suicida. Aprimorando a frase anterior: a espécie humana é um zombie suicida. "Um zombie suicida?" - interrogas-te tu, prezadíssimo leitor. Sim, porque se trata de uma aparente contradição, como pode um morto-vivo suicidar-se? Pode. Pode suicidar-se um bocadinho. Não pode matar a sua parte morta mas pode matar a sua parte viva.

    Se atentarmos bem na Aldeia Global, poderemos constatar que os seus habitantes, sejam branquelas ou pretos, badochas ou magricelas, ricos ou miseráveis, todos, mas mesmo todos eles, estão já mais mortos que vivos. São zombies, portanto. 

    Por um lado, quando nascem (quando nascemos) começam (começamos) de imediato a morrer. É uma crueldade divina mas é a nossa condição e a de todos os seres vivos. O planeta é habitado por seres que estão constantemente a morrer e a nascer, a nascer e a morrer. Esta é a parte que explica a generalizada condição zombírica (zombífica?) da bicharada.

    Por outro lado temos a pulsão consumista que nos empurra em direcção ao precipício. Temos pressa em acabar com a nossa própria raça. Inventamos armas de destruição maciça, desenvolvemos modelos de veneração de deuses económicos que nos impelem à autofagia, conspurcamos o planeta como se viver com o peito enfiado na merda fosse uma coisa agradável. 

    Todos sabemos que é assim, todos percebemos que estamos a contribuir para a aniquilação da nossa espécie mas, apesar dos discursos, das manifestações cívicas, da arte, da ciência e o o diabo a quatro, continuamos a afundar-nos alegremente. Suicidamos a nossa parte que está viva de modo a equilibrá-la com a nossa parte que nasce morta (e que vai crescendo ao longo das nossas vidas).

    É apenas trágico, não tem nada de bonito.

sexta-feira, junho 17, 2022

Bom dia

     Ouço-as falar atrás de mim. "Olá, bom dia..." "Como estás? Estás boazinha?" "Sim, graças a Deus, vou andando. Obrigada" "Tem de ser." "Pois é." "Então até mais logo." "Até mais logo". E certamente se separaram, andando cada uma para o seu lado, cada uma em direcção ao resto da sua vida. Nós, os animais, somos assim.

    É como se as nossas vidas fossem uma espécie de extenso rosário e cada dia uma conta que seguramos entre os dedos enquanto vamos debitando lugares-comuns à medida que o vamos vivendo. 

    As vozes atrás de mim soaram fatigadas, sem brilho, vozes que pareciam afogar-se num pequeno lago de angústias e as suas portadoras tivessem desistido de esbracejar, desistido de sonhar qualquer diferente que possa acontecer no dia de amanhã.

   O tom da lamúria soara um pouco teatral. A humildade parecera-me fingida, como se estivessem a representar para um deus mesquinho que invejasse a felicidade das suas criaturas, receando atraiçoar algum sentimento de alegria que transportassem no peito. Fizeram-me lembrar as velhas beatas que conheci na minha infância.

    Não vi as pessoas que falaram. As vozes eram evidentemente femininas mas não lhes vi as caras nem os corpos. Imagino-as estereotipadas, tal como as suas palavras, vazias de intenção. Decerto parecerei presunçoso mas isso não me incomoda. Não receio aqueles deuses invejosos nem aqueloutros, severos de tão puritanos.

quarta-feira, junho 15, 2022

Intelectual

    Alguém que use uns óculos de massa; ficamos imediatamente com a sensação de estarmos perante um(a) intelectual. Massa preta, castanha, com padrão a lembrar a carapaça de uma tartaruga, não interessa. A marca da intelectualidade está ali, bem expressa, como um carimbo num documento oficial.

    E se forem redondos!? Então a coisa passa para outra dimensão, uma dimensão ainda mais estratosférica, a aproximar-se das alturas olímpicas. Sentimos que estamos não só perante um intelectual mas perante um grande, um imenso, um inigualável intelectual. 

    Estou a pensar comprar uns óculos desses. Estou farto de que as pessoas não reparem como sou: um intelectual sério e responsável, preocupado com o estado do mundo e angustiado com a ambiguidade incongruente da existência humana. 

    Ainda ontem dei por mim a pensar: porque dizemos nós "alpinismo"? Porque não "everestismo", "kilimanjarismo" ou "apeninismo"? Não tive ainda pachorra para investigar esta questão mas acho que, tivesse eu uns óculos de massa (redondos) e a resposta havia de dançar-me já na ponta da minha língua.

terça-feira, junho 14, 2022

Inconstância

     É assim, afinal sou um gajo inconstante apesar de imaginar o contrário. O facto de estar próximo de tropeçar no meu sexagésimo aniversário não contribui de forma decisiva para que me torne uma pessoa sólida como uma estátua clássica. Sinto-me antes um mobile de Calder.

    Tem dias em que me contenho para não escrever diversos posts, noutros surge o tema, surge a vontade mas falta a oportunidade mas, o mais comum, é apetecer-me ser um bovino e ir pastar para a encosta verdejante de uma colina açoriana. Passo vários dias sem escrever nada neste recanto perdido do mundo virtual.

    Talvez esta inconstância tenha a ver com um certo temperamento artístico que me anima e me faz sonhar. Acredito piamente no impulso e nas qualidades profiláticas dos erros que cometo. A criatividade não tem regras definidas e quem nisso acredita ou é ingénuo ou demasiado vaidoso para admitir que aquilo a que chama "estilo" pouco mais é do que incapacidade de fazer outra coisa que não aquilo. Quase exactamente. 5% de inspiração e 95% de transpiração? Que pivete.

    É evidente que a prática e a técnica são elementos fundamentais no trabalho artístico. Principalmente quando andamos nisto há várias décadas e a inspiração febril dos nossos vinte anos já se gastou ou está à beira da extinção. É aí que nos tornamos cerebrais, professorais e, em raros casos, haverá quem se torne genial. Mas não há nada que substitua o glamour da inconstância.

sexta-feira, junho 03, 2022

Um post com muita moral

     Admitir a possibilidade de que uma raposa possa guardar com recato a porta do galinheiro faz de quem nisso acredita um candidato a anjo sem medo que nas costas lhe nasçam asas. É como pôr um liberal a legislar sobre os direitos dos trabalhadores ou um pastor evangélico na recepção de um hospital público. Há coisas que não se deviam sequer imaginar, quanto mais fazerem-se!

    A capacidade de confiar nos outros é uma das riquezas que o mundo coloca à nossa disposição assim possamos encontrar conforto suficiente para dela podermos usufruir. A confiança é essencial num espaço de convivência democrática. Mas, pode a galinha confiar na raposa? Pode o trabalhador confiar no liberal ou o doentinho confiar no pastor?

    A desconfiança é o lado sujo da moeda. No entanto é imprescindível para a nutrição dos poderosos, é o que os ajuda a crescer e a serem grandes. Terá havido alguma vez na História uma personagem poderosa (daquelas mesmo bué poderosas) que não se tivesse empanturrado com desconfiança à medida que ia subindo os degraus que conduzem ao lugar onde repousa o trono? Duvido. 

    Cristo, que foi quem sabemos, acabou alto mas pregado numa cruz. Ele veio explicar-nos que o mundo não é lugar de justiça. Justiça? Com sorte talvez no Outro Mundo e mesmo aí...

quinta-feira, junho 02, 2022

Um imenso adeus

     É com uma incómoda sensação de impotência que assisto ao esboroar do sonho democrático provocado pela crescente imposição da força bruta, da supremacia arrasadora da lei do mais forte. Regressamos à selva. O Estado de Direito perde pontos a cada dia que passa. À medida que o Conhecimento vai perdendo aceitação entre o povo (há mesmo uma espécie de vingança dos ignorantes contra os intelectuais) elegemos governantes cada vez mais boçais e agressivos, pessoas para quem a Democracia pouco mais é que uma palavra. 

    A utopia de um espaço geopolítico onde os direitos das minorias são reconhecidos e defendidos pela lei é cada vez mais uma névoa dispersada pelos ventos furiosos disparados pelas autocracias e pelos partidos de extrema-direita que vão escavando os seus ninhos nas sombras da sociedade. Uns e outros, democratas e fascistas, dependem demasiado da força económica. Serão todos alimentados pelos mesmos interesses?

    A Pós-democracia não é um conceito discutível, é a realidade em que vivemos. Repito mais uma vez, as grandes decisões que influenciam as nossas vidas não são tomadas por aqueles que elegemos. São tomadas por aqueles de quem dependem os nossos eleitos, os donos do guito, os manobradores, os manipuladores de marionetas. O sonho de uma sociedade mais justa vai ficando mais longe, mais longe, mais longe...

quarta-feira, junho 01, 2022

Criançada

     Hoje comemora-se o Dia da Criança. É uma ideia bonita que vai perdendo ou ganhando significado conforme a criança que comemora. Há certas zonas do planeta onde as crianças são soldados, noutras são trabalhadoras a soldo de empresas mais ou menos grandes, há locais onde ser criança é um pesadelo (e não precisa de ser um local geográfico definido por fronteiras terrestres). Há crianças ricas que são infelizes e outras que, sendo pobrezinhas, transbordam felicidade. Ser criança não obedece às definições impostas pelas organizações internacionais que se ocupam em organizar estratégias que defendam esse estatuto.

    Há crianças que nunca chegam a sê-lo, algumas nascem com a velhice já ali ao dobrar da esquina. Há, por outro lado, crianças que nunca deixam de o ser até ao dia longínquo em que batem as botas. Há crianças que vivem a infância num estado de permanente felicidade; são tão felizes, tão felizes que algumas ficam estúpidas para o resto da vida.

    Podia estar para aqui a elencar indefinidamente estados de alma e situações sociais que ora atrapalham ora beneficiam a condição de ser criança. Esses estados de alma e situações sociais são tantos, tão variados, dependem de tantas variáveis que se combinam de forma tão aleatória, que é difícil imaginar como comemorar o Dia da Criança. 

    Deve ser por isso que hoje de manhã, quando fui ao centro comercial fazer algumas compras havia uma fila de centenas de criancinhas alinhadas na entrada principal. Quando subi as escadas vindo do estacionamento a algaraviada das suas vozes infantis ribombava pelo espaço agitando o templo do consumo. O que estavam aquelas crianças a fazer ali? Decerto haverá uma boa razão que eu, no entanto, desconheço.