segunda-feira, setembro 25, 2023

Somos todos artistas

     Para onde vai o Tempo que perdemos? Imagino que para o mesmo lugar onde desaparecem as peúgas que, levando sumiço, nunca mais voltamos a encontrar. Há mistérios assim, mistérios desconcertantes (como é apanágio dos mistérios) que, sendo arrepiantes, não põem em causa a nossa segurança nem as nossas vidas.

    Do mesmo modo que sou incapaz de imaginar onde cai o Tempo perdido não consigo compreender o que acontece com o Tempo que ganhamos. Se há Tempo que se ganha deveria poder ser acrescentado ao Tempo que vivemos! Mas não estou a ver que possa viver mais Tempo sempre que evito uma fila de trânsito ou consigo esquivar-me a cumprir um qualquer trabalho de merda.

    Talvez o Tempo não se ganhe nem se perca, talvez o Tempo seja apenas ajustável, talvez seja plástico, moldável dentro de certos limites. Isso faria de nós artistas inesperados, modeladores de Tempo ao longo das nossas vidas. A ser assim, pronto, poderíamos finalmente afirmá-lo sem que nos tremesse a voz: SOMOS TODOS ARTISTAS!

    No fim acabamos por morrer.

domingo, setembro 24, 2023

Loucos como passarinhos

     Algumas pessoas enlouquecem para dentro de si próprias, outras disparam loucura em todas as direcções, como metralhadoras. Há ainda aquelas que derramam a doidice nas fronteiras dos seus corpos, suave e discretamente. Cada vez mais tenho a sensação de que a loucura, nas suas variadíssimas formas, não admite aos seres vivos grandes excepções. Nem mesmo a racionalidade escapa.

quarta-feira, setembro 20, 2023

Futuro

     Não sabia bem se a coisa fazia sentido mas, agora, já nada poderia pará-lo. Bastava a sua vontade. Algumas pessoas achavam aquilo esquisito, outras torciam o nariz de tal modo que ficavam com expressão de saca-rolhas. Nada disso lhe desviava a atenção, nada disso fazia esmorecer o ímpeto de continuar com aquilo: todos os dias fazia mais um pouco, cada dia avançando um bocadinho, dia após dia o Futuro ia sendo construído.

    O céu escureceu subtilmente, pingou alguma chuva. O ar estava tão fresco que até o canto dos pássaros se sobrepunha ao ronronar maléfico dos automóveis. Olhou demoradamente as suas mãos. Depois desferiu o golpe. Único e certeiro.

sexta-feira, setembro 08, 2023

Sinopse

     Cadáver Aflito (inspirado num conto curto de Dino Buzzati)

    Um grupo de pessoas encontra-se na sala de embarque de um grande aeroporto internacional. Vão viajar para longe, muito longe mesmo. A situação global não é famosa, a Humanidade está com problemas graves. O planeta Terra nem por isso. O planeta vai sobreviver.

    Os passageiros entram na aeronave, ocupam os seus lugares. Tudo se processa na maior das normalidades. O avião lá vai. Acompanhamos cada um dos passageiros: o que vêem, o que pensam, o que ainda sonham; individualmente, uns dos outros, sobre o mundo, talvez, até, possamos captar uma ou outra ideia sobre o planeta Terra. Lá vamos também, todos com destino igual.

    Durante o vôo algo de radical acontece lá fora (um dos passageiros tem a sensação de, por momentos, estar a voar lado a lado com um míssil intercontinental mas pode ter-se enganado, talvez fosse uma cegonha ou um animal estranho e desconhecido). As comunicações com o exterior do avião são interrompidas. Os passageiros ficam isolados na imensidão do céu. Angústia, terror, desespero? Nada disso ou, melhor dizendo, não somos todos iguais. 

    A esperança é a última coisa a morrer e a nossa imaginação não tem limites.

    O avião aterra.

    FIM

terça-feira, setembro 05, 2023

Que o diga Golias

    Lembro-me vagamente de umas aulas, talvez de Estética, a que assisti nos meus primeiros tempos como aluno da Escola de Belas-Artes de Lisboa. Não consigo precisar, passaram várias décadas e a minha memória nunca foi de fiar. Debatia-se a possibilidade da existência de características intrínsecas da obra de arte. Que isto, que aquilo, que teria de ter ou não poderia faltar, as hipóteses iam sendo apresentadas e debatidas. Para me recordar ainda hoje é porque a coisa me interessou e motivou.

    Uma das hipóteses colocadas para que um objecto artístico possa assim ser considerado foi a da sua escala. Quanto maior a escala maior a probabilidade de o objecto vir a produzir uma sensação de deslumbramento no espectador capaz de o levar a considerar estar perante uma obra de arte. É uma perspectiva curiosa mas algo redutora.

    É como se a obra de arte tivesse entre as suas potencialidades a capacidade de nos reduzir à nossa insignificância enquanto indivíduos, como se, para existir, a arte tenha de possuir o condão da enormidade, da inacessibilidade, como se a arte, para o ser, tenha de nos esmagar o ego. 

    Talvez esteja a exagerar mas, quando um gajo reflecte, as ideias vão surgindo em catadupa. Muitas delas podem estar erradas ou, pelo menos, podem não ser muito consistentes, pedindo reflexão, mas na vertigem do pensamento ainda são apenas coisas por nomear, falta-lhes rigor, não passam de projectos de sonhos para serem sonhados quando houver tempo para o fazer. É o que se está a passar aqui, neste momento.

    Veio-me isto à memória e ao tropel do pensamento por ter visto umas imagens de uma instalação de Joana Vasconcelos, uma artista que explora frequentemente a escala do objecto e a sua relação com o espaço como forma de estimular no espectador a sensação de estar perante uma obra de arte.

    Penso que nenhum artista pretende reduzir a sua criação ao gigantismo. Mas o gigantismo é uma armadilha sedutora que provoca desastres frequentes. Que o diga Golias.

domingo, setembro 03, 2023

Indolência

     O Tempo não é coisa em que se mexa. É deixá-Lo estar sossegado com o seu compasso, debruçado da nuvem que lhe serve de morada, cabelos e barba batidos pelo vento. Ele distrai-se medindo o espaço, deixando-se ir na sua nuvem. O Tempo passa, não intervém apenas observa. E permanece.

    Pois, estou a descrever, de memória, a pintura de William Blake intitulada "O Velho dos Dias" (tradução minha), já te tinhas decerto apercebido. É interessante verificar a atracção que certas imagens produzem na nossa memória resistindo à passagem do tempo; nunca se apagam.

    Recordar uma imagem e interpretá-la de novo, eis uma actividade estimulante pois é algo que muda e se transforma tal como nós mudamos e nos transformamos. Esta é uma das muitas que me acompanham e que recorrentemente assomam nas curvas do meu cérebro. Que interesse tem isto? Eventualmente nenhum. Talvez seja mera indolência mas preenche-me o tempo que vivo e, quem sabe,talvez  vá comigo quando eu me for.