terça-feira, janeiro 31, 2023

Regabofe

    Cada dia que passa parece trazer consigo uma nova polémica. Agora anda tudo às voltas com as Jornadas Mundiais da Juventude. Os custos astronómicos associados ao acontecimento põem o país inteiro a chiar de ressentimento. E com razão. Se fosse a igreja católica a investir o guito não havia grande problema, a não ser o da incongruência de uma instituição que diz viver para amparar os pobres e os necessitados. Mas é o Estado quem mete parte de leão. Um Estado laico, note-se.

    É, de facto, um fartar vilanagem sem medida nem justificação. Tantos milhões investidos em misticismo e ilusões quando o país inteiro anda às voltas com falta de financiamento para coisas concretas e reais. Enfim, com um investimento desta monta pode ser que a Virgem resolva aparecer outra vez. Se a Virgem aparecesse no topo da pala sempre se justificava o regabofe.

sexta-feira, janeiro 27, 2023

Confuso é pouco!

     É um dos casos do momento. A questão da invasão do palco do São Luiz pela Keyla Brasil. Não vou estar aqui a explicar o que se passou, não é sobre isso que estou a reflectir neste momento. Reflicto sobre a quantidade e variedade de textos e opiniões que têm enxameado o espaço público desde que aconteceu a cena acima referida.

    Tenho lido, tenho ouvido. São opiniões de sentido contrário, geralmente bem expostas e sustentadas com argumentos que me parecem válidos e compreensíveis. Apesar de defenderem visões diametralmente opostas vejo-me a concordar com uns e com outros. Como é isto possível!?

    Não sei bem, não consigo ainda explicar com clareza de espírito este estranho fenómeno que me vai fazendo recuar nas certezas que imaginava ter sobre a "verdade" e a "realidade".

quarta-feira, janeiro 25, 2023

Passo!

     Há dias em que sinto uma certa pressão para que forme opiniões. A raiz do problema poderá estar relacionada com a leitura diária de um jornal e a consulta esporádica a canais televisivos de notícias que funcionam 24 horas todos os santos dias. Exponho-me assim a verdadeiros ciclones de informação que me despenteiam as ideias.

    A título de exemplo: hoje, após a leitura do Público, vi-me confrontado com a questão do activismo trans, com a questão do envio de tanques de guerra sofisticados da Europa para a Ucrânia, a falta de sinceridade e honestidade duvidosa de autarcas e governantes, problemas graves na hierarquia da igreja católica, enfim, um manancial de situações diversas e pouco claras, expostas em textos de opinião ou notícias lavradas por jornalistas. 

    Será suposto que eu construa visões personalizadas que me permitam emitir opinião informada sobra cada uma destas situações? Não tenho essa pretensão! Sinto-me confuso e pouco seguro. Talvez seja melhor passar, não ir a jogo. Reflicto um pouco mais... passo!

domingo, janeiro 22, 2023

Avaliações objectivas

    Veja-se o acto de avaliar o teste de Português de um aluno em situação de exame nacional: pega-se nas suas respostas e comparam-se com descritores de desempenho previamente elaborados para o efeito de peneirar o conhecimento ali depositado. Cada resposta corresponderá a um nível com determinada pontuação. Os dados vão sendo introduzidos numa folha de Excel que os vai somando até que, voilá!: temos o resultado final. Naquele número fica sinteticamente representado o valor do examinando. É uma espécie de magia, uma Pedra Filosofal que transmuta conhecimento em números. O aluno já foi avaliado de forma semelhante ao longo de toda a sua vida escolar. Números que vão marcando o seu percurso académico como as migalinhas de pão de Hansel e Gretel marcaram o seu caminho no chão da floresta.

    A avaliação, aplicada de modo científico, garantirá que no fim do percurso obrigatório de 12 anos de escolaridade todo o esforço será recompensado, toda a preguiça será castigada. É assim que imaginamos que as coisas se passam, que há uma espécie de justiça divina no resultado do processo. A prová-lo exibimos pautas com listas de nomes, a cada nome correspondendo um número, a cada número correspondendo uma certa imagem de uma pessoa real. Não se nota nas pautas mas há boas pessoas, há espertalhões, uns que são solidários outros que são egoístas. Uns quantos entram para as juventudes partidárias ou já por lá andavam. Passados alguns anos temos ministros, secretários de estado, elites dirigentes.

    Pretende-se, agora, que, antes de poderem jurar defender a res publica em cerimónia tutelada pelo Presidente da nação, os escolhidos preencham um inquérito que avalie de modo objectivo a sua idoneidade, embora não a sua competência, para o desempenho do cargo. Tudo isto de modo a descansar o pessoal quanto à lisura do resultado do processo. Mas, temo bem, a objectividade da avaliação não passa de um mito.

 

Carta enviada ao director do jornal Público

 

sábado, janeiro 21, 2023

Latinório

    Já reparaste bem no latinório escrito nas notas de um dólar? Fiz uma daquelas traduções farsolas que o google nos oferece e deu o que a seguir registo: "anuit coeptis" (ali de um lado e do outro do triângulo metediço) significa "ele acenou com a cabeça quando começou" e o "novus ordo seclorum" da faixa que esvoaça ordeiramente junto à base da pirâmide será "nova ordem dos tempos". Tudo isto rematado com a celebérrima máxima "in god we trust", já em inglês, não vá o diabo tecê-las.

    Para princípio básico de um estado fundamentalista religioso não está nada mal.



sexta-feira, janeiro 20, 2023

A espera

     Sim, já me apercebi, ando melancólico, sinto-me triste. Sim, tenho vindo a perder algum brilho, nem sempre encontro um sorriso mordaz dentro de mim. Espero não ficar assim, macambúzio. Que seja coisa passageira.

    Penso que esta sensação de aperto no estômago, este nó que se vai enrolando mais a cada dia, penso que tenha a ver com o facto de o meu pai estar a passar deste mundo em direcção a um outro. 

     Sinto-o a vaguear, hesitante, na fronteira. Sinto-o perdido, confuso, e não há quase nada que eu possa fazer. Esta sensação de impotência arruína-me o peito, enegrece-me os pensamentos.

    Mas o que é esta minha tristeza comparada com a jornada do meu pai? Nada! Não é nada; mera lamentação. Olho para ele, magro, recurvado, olhar ausente e vejo uma criança. Pego-lhe na mão fria e somos ambos crianças, crianças perdidas, órfãos de mãe à espera que o tempo passe. De mãos dadas.

quarta-feira, janeiro 18, 2023

Criação dos animais


     Era negro, o fundo. Era negro. Eram mais ou menos brancas, as formas, queriam ser brancas mas não o conseguiam. Completamente. As linhas criadas no contraste encerravam seres que pareciam monstros. Mas não. Não há monstros de papel.

    O triângulo com um olho ao centro é imagem de deus. O que criou os animais. E inventou a fome. E carne, dentes, tripas e músculos. Deus inventou essas coisas todas. Deu vida aos bichos e, aos que não foram devorados, deixou-os morrer.

segunda-feira, janeiro 16, 2023

Querer

     Queria ser um génio, ser magnífico, incontestável e reconhecido pelos olhos dos que olham a sublime grandeza. Queria partilhar a Luz com os semi-deuses, saltitar na escadaria do Olimpo como criança que brinca defronte à catedral no final de uma manhã de Domingo (o Padre ainda lá dentro a passar a mão pelo lombo das matronas com os pescoços enrolados em peles de bicheza morta). Queria sei lá o quê! Queria tudo, queria poder tudo, poder salvar a vida dos que morrem para não me morrer (também) o meu pai. Queria não sentir saudade, não chorar quando recordo, queria ser meio de pau, como o Pinóquio. Eu que tento não mentir a comparar-me com o Pinóquio... se me crescesse o nariz a cada mentira não havia de ser maior que um lápis de grafite, digo eu; mas eu sei lá o que é mentir ou a mentira! Queria compreender que raio de merda é a vida e que raio de merda fazer com ela. Queria tanta coisa que sei ser impossível que não terei nunca o descanso desejado (queria também descansar como se fosse um penedo). No fim e no limite o que eu queria realmente era não querer absolutamente nada.

domingo, janeiro 15, 2023

Da melancolia

     Assistir à desistência da vida é uma coisa muito triste. Perceber o esvaziamento, a energia vital a diluir-se no sopro frágil da respiração, cada movimento do peito mais próximo de ser o último que haverá de ser feito. É assim com todos nós, cada momento mais longe do início, mais próximo do fim. Mas não costumamos pensar nisso, não costumamos assistir a isso. Vê-lo é ver o lamento da existência, ver a vida a enrodilhar-se na morte. Não é belo, não é feio, apenas profundamente melancólico.

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Vulgaridade

     Reflectir sobre coisas sem sentido, eis algo que perdera o interesse, algo que já não provocava nele o habitual entusiasmo do mergulho nas ondas de um pensamento puramente especulativo; fosse na questão da pertinência da letra do hino nacional, fosse nas razões que provocam a incompreensível desigualdade social entre ricos e pobres. O mesmo não se poderia dizer sobre as diferenças entre os vivos e os mortos.

    Tudo era confuso, as formas das coisas pareciam diluir-se no espaço em volta.

    Levantara-se inquieto, o cérebro como uma colmeia em intensa actividade. Deslocou-se pela casa sem perceber muito bem o que fazia, muito menos o que pretendia fazer. Parecia-lhe que esbarrava em coisas invisíveis, coisas que o atravessavam ou ele atravessava, o mundo, naquela manhã, apresentava-se inconsistente. Talvez fosse apenas viver mais um dia igual aos outros.

    Aí pelas quatro da tarde sentiu um certo cansaço. Ainda faltavam oito horas para que as vinte e quatro marcadas pelo relógio atingissem o limite e já tinha vivido tantas coisas extraordinárias! Aquele dia era, definitivamente, igual a tantos outros, mais um dia de vulgaridade absoluta.

quinta-feira, janeiro 12, 2023

Visão abjecta

     A Estupidez e a Ignorância passeiam sempre de mãos dadas. Quando encontram a Crueldade (nefastas ocasiões!) organizam orgias sangrentas.

segunda-feira, janeiro 09, 2023

Acreditar

     Sim, a arte, por vezes, faz-me acreditar em coisas impossíveis. Quando disso me apercebo instala-se a dúvida: se penso uma coisa ela será impossível? A imaginação resulta numa possibilidade. Esta afirmação parece-me sólida, indiscutível. 

    São tantas as vezes em que sinto as fronteiras da realidade tremendo perante coisas impossíveis que ganham consistência, são tantas as vezes em que sinto o sonho irrompendo neste quotidiano delirante em que me movo, isto acontece tantas vezes que desisti de duvidar. Agora acredito que o impossível pode muito bem acontecer. Ou não.

    Apesar de tudo há uma coisa na qual não sou capaz de acreditar por muito que me esforce (o esforço raramente resulta quando se trata de acreditar em alguma coisa): não consigo acreditar em Deus. E Ele sabe bem que tenho tentado.

quinta-feira, janeiro 05, 2023

Parvo

     Quanto tempo é necessário para que uma coisa nova se transforme em tradição? Sim, porque todas as tradições, por mais antigas que sejam, tiveram o seu momento primordial. É como o Universo? Talvez o conceito de Universo seja, também ele, uma tradição, nada mais do que isso. Talvez nós sejamos ilusões.

    É assim, não consigo evitá-lo (não sei se também te acontece), dá-me para o devaneio ou para a parvoíce e fico imparável até que me apercebo de que posso estar a escrever coisas ridículas. Nesse momento... alto, parou! E fico-me imediatamente por ali (por aqui). Calo-me.

    Silêncio e quietude.

quarta-feira, janeiro 04, 2023

Alegoria

         Por vezes penso: a Caverna da alegoria platónica é a caverna do meu crânio. O gajo especado defronte à parede é o meu cérebro e as sombras projectadas são as imagens recebidas pela minha retina. E concluo: cada um de nós é, ele próprio, a Alegoria da Caverna.

terça-feira, janeiro 03, 2023

Mentiras

     Demasiados espaços em branco, memória esburacada (se comparasse a minha memória com um queijo suíço estaria a derrapar no lugar comum). Não sei se deva preocupar-me com tamanhas falhas de memória, na verdade consigo recordar certos pormenores de coisas há muito passadas mas isso sabe-me a pouco. Tenho fome de recordações.

    Diz o outro que "recordar é viver". E não ser capaz de o fazer, será o quê? O contrário de viver é morrer? Não me parece, seria demasiado óbvio. O contrário de viver é andar para aí a fornicar a existência de quem nem sequer conhecemos, o contrário de viver é matar não é morrer.

    Não ter memória obriga a uma grande concentração no momento imediato, obriga a vasculhar no presente sinais que nos orientem num possível regresso ao passado. Sim, porque há sempre um vislumbre, uma cortina translúcida a esvoaçar, uma forma que se destaca do nevoeiro até fazer sentido. A mente é uma coisa traiçoeira. A mente mente.

segunda-feira, janeiro 02, 2023

Morbidez evitável

     Podes viver sem pensar na morte? Claro que sim! Seria impossível caminhar, rir, saltar ao eixo, conduzir o automóvel, impossível passeares o cão (apanhar-lhe a merda) ou imaginar alimentar o periquito. Se pensasses na morte terias uma vida menos preenchida por possibilidades de alegria genuína? Pensas na morte? Eu tenho pensado.

    Tenho pensado na morte e não adianta nada. Para mim não adianta nada. Pensar na morte faz-me compreender que é muito mais nítido viver cada dia e celebrar a vida. Quando a morte chegar logo se vê.

domingo, janeiro 01, 2023

23

     Começa o ano com o céu repleto de nuvens sombrias. Algumas dessas nuvens escurecem de forma ameaçadora, imagino-as de um negro tão profundo que choverão lamentos. Tenho, no entanto, esperança de que haja espaços azuis entre elas.