O homem (seria um rapaz?) não tinha dentes e também parecia não ter o juízo todo. Deitado no banco, próximo de uma esplanada bem composta de cidadãos respeitáveis, pediu-me que lhe pagasse um abatanado. Dei-lhe 2€. Pediu-me que entrasse no café e lhe trouxesse o abatanado. Disse-lhe que não se esticasse.
Apesar do calor, estava coberto com umas mantas sebosas. No chão espalhavam-se restos de coisas que talvez tivesse comido. Uma embalagem vazia, brilhante de gordura, dava guarida a uma pequena multidão de moscas nervosas. Ele perguntou-me "gostas de poesia?" ao que respondi qualquer coisa que nem eu próprio fui capaz de compreender. Ele disse-me "vou dizer-te um poema".
Começou pelo título: "Eles". E foi por ali fora "blãblãblãbambalhã", foi por ali fora e, fitando-me nos olhos, declamou a coisa num longuíssimo e único fôlego apenas interrompido por muito curtas pausas para respirar. Não percebi uma única palavra. Ficou-me uma espécie de música, uma prece, qualquer coisa assim: "blãblãblãbambalhã"; seria um lamento?
As moscas distraíam-me mas, fosse como fosse, nunca poderia perceber uma palavra do que ele disse além de "eles", única palavra nítida que irrompia aqui e ali, nos momentos das suas curtíssimas golfadas de ar. As gengivas rebrilhantes, sem um único dente à vista, a língua a formar os estranhos sons que eram, afinal, um poema, os lábios húmidos num sorriso que podia ser feito de urgência. A urgência de não perder o espectador ocasional da sua saga.
Quando finalmente terminou deu uma risadinha mostrando a totalidade das gengivas. "Fica bem" disse-lhe eu. E fui embora com um misto de alívio e traição alojado no peito. Dali em diante tudo mudou de aspecto. A rua pareceu-me mais suja e mais triste, as pessoas pareceram-me apenas pessoas.
Eu sabia que era aquele poema ("blãblãblãbambalhã") a provocar em mim um certo desconforto, um desajuste na pele que me cobria o corpo. Apanhei o barco e subi ruas de Lisboa mais ou menos atento, mais ou menos desorientado, até encontrar a Ana. Nesse momento as coisas voltaram a ser mais ou menos o que já tinham sido.
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