Podíamos ter sido tanta coisa que não fomos! Mas acho que isso não retira nem um bocadinho à grandeza dos nossos actos. É uma grandeza grandiosa, uma grandiosidade construída sobre a força da vontade que temos quando a coisa arde dentro de nós e não sabemos muito bem como lidar com ela. E essa força empurra-nos em todas as direcções e nós vamos, deixamo-nos ir porque isso é bom e temos a sensação de estar a fazer qualquer coisa que é fixe. E fazemos. E depois esquecemos que fizemos aquilo e damos por nós já a fazer uma outra coisa. E vivemos assim, fazemos dessa construção o nosso modo de vida, trabalhamos nas fundações da Torre de Babel sem sabermos que estamos precisamente ali, na base de todas as coisas que hão-de um dia acontecer.
Quando olho para trás tenho, por vezes, esta sensação de grandeza, de plenitude, quase me sinto realizado. Mas logo me assalta o homenzinho cristão que habita algures entre as minhas orelhas e vem bichanar-me aos ouvidos palavras sensatas e absolutamente equilibradas que me mostram como sou insignificante e não valho nem a ponta de um chavelho do diabo mais escanzelado do inferno. E eu penso "quero que te fodas, eu fiz coisas, caraças!" E regresso ao meu sonho e sou outra vez um operário a martelar calhaus do tamanho de autocarros e percebo perfeitamente tudo o que dizem os outros gajos e as outras gajas que andam por ali a cirandar, a cumprir o plano de um arquitecto que nunca vimos, não fazemos a mínima ideia de quem seja, mas acreditamos piamente no plano que elaborou para a construção da puta da torre. Arriba!
A memória do dilúvio corrói a mente de todos, é um pesadelo que nos tira o sono e nos mantém a trabalhar mais de 24 horas todos os dias que deus ainda não arredondou bem esta coisa da lua e do sol e os horários são coisas mais complexas do que deviam. Os dias ainda não estão bem acabados e a torre vai por aí acima que é uma beleza de se ver. Cansados? Sim, mas orgulhosos da obra que vamos realizando. Quanto mais longe estivermos da terra mais seguros nos sentimos que este deus é muito fixe, é muito fixe mas meto um medo do caraças! O gajo é meio descompensado e o pessoal já não confia nele como confiava. Vamos muito mais pelo arquitecto que nos mostra planos claros e não parece zangar-se quando fazemos merda ou preguiçamos um bocadito.
Podíamos ter sido artistas contemporâneos no século XX, poetas no século XIX, construtores de catedrais góticas, pintores no Renascimento, curadores de arte no século XXI, podíamos ter sido tanta coisa que não fomos. Mas andámos por lá, na Torre de Babel até deus se chatear por não ter percebido nada. Por ter imaginado que queríamos aproximar-nos da morada dele! Fogo! Nós queríamos era ficar longe das águas caso caísse outro dilúvio ou viesse um tsunami que varresse tudo. E lá veio a confusão das línguas e a Torre ficou assim mesmo, inacabada. Ainda assim um espectáculo, um regalo para a vista.
Hoje falo português, um pouco de francês e inglês. Arranho espanhol e é tudo.
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