quinta-feira, julho 14, 2022

Historiador

     Poderia escrever toda uma história da arte tendo como ponto de partida a sua própria obra. Uma história da arte contemporânea, está bom de ver, que nem mesmo os artistas são imortais, diga lá Camões o que disser. Coçou a barriga, mirou as unhas lá em baixo, nos pés sujos de pisarem o chão do atelier para lá e para cá, em volta, para cima e para baixo; deixou a nuca ir pesando até lhe atirar a cabeça para trás. Mirou o tecto.

    O tempo passara, passara, voltara a passar. Tanta coisa aconteceu e, afinal, a sensação que perdurava era a de nada ter acontecido. Todas as cenas gloriosas que lhe haviam preenchido os anos de juventude nunca foram motivo de notícia, nunca atraíram as atenções da elite, nem da crítica, nem sequer da chungaria, portanto era como se não tivessem acontecido. Cenas gloriosas? Só mesmo na cabeça dele... ou não? 

    Havia ali uma certa confusão.

    Muita química inflamável, miolos queimados, recordações reconstruidas de cada vez que lhe faziam uma visita à alma. Cada vez duvidava mais de que certas coisas tivessem, de facto, acontecido e das que se lembrava sem rebuço punha em causa que houvessem sido mesmo assim. Mas podia escrever essa tal história. Talvez não da arte mas a sua história.

    Levantou-se em direcção ao frasco de pickles onde descansavam pincéis mal penteados afogados em água suja de tinta. Antes de alcançar a tela meio pintada já se tinha esquecido da ideia magnífica que o fizera levantar da cadeira.

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