domingo, julho 31, 2022

Memória esquecida

     Hoje andei por aqui a vasculhar posts antigos. Porquê? Para quê? Porque vou fazer uma exposição de desenho em Setembro e quero experimentar colocar alguns textos entre os meus desenhos (na foto acima, preparação da coisa). Ter um blogue como este é ter um arquivo imenso de textos escritos ao longo dos anos sobre os temas mais variados. Estou habituado a vir aqui de vez em quando buscar coisas de que necessito. É cómodo e eficaz.

    De repente lembrei-me do meu amigo Eduardo Penteado Lunardelli, uma espécie de Senhor dos Blogues, que viu todos os seus blogues obliterados de um momento para o outro sem que lhe tivesse sido explicado, pelo menos de forma satisfatória, porque razão o encerravam assim, sem aviso prévio.

    Isto deixou-me a pensar sobre o que fazer com os dois mil e muitos posts que estão aqui, no 100 Cabeças. Poderei perder esta memória de um momento para o outro? Corro esse risco. Passar tudo para um disco de memória externa? É uma possibilidade mas é tarefa morosa que não me apetece muito levar a cabo.

    Graças à minha inegável preguiça correrei o risco de "amnésia bloguista" mas, se levar em linha de conta uma certa capacidade para executar tarefas repetitivas e mais aborrecidas do que contar os feijões de uma lata, poderei ter esperança na realização da ciclópica saga do descarregamento do 100 Cabeças. Valerá a pena? Fazendo fé no poeta dependerá do tamanho da minha alma.

sexta-feira, julho 29, 2022

BUM!

     Cada vez mais sinto uma certa nostalgia do futuro. Nostalgia do futuro!? "O gajo está a asnear" pensa o leitor desprevenido. Como pode alguém sentir falta ou saudade daquilo que ainda não aconteceu? Pois é, não é fácil de explicar; é um sentimento tão profundamente difuso que as palavras o trespassam sem lhe sentirem a pele.

    É uma nostalgia daquilo que nunca virei a ser, acrescentando já as expectativas defraudadas, as que já lá vão mais as que haverão de vir; uma nostalgia da própria civilização tal como a conheci, não exactamente como ela é agora. Começo a ficar azedo, a pensar "no meu tempo é que era". Mas o meu tempo é também este tempo. Ainda não estou morto, pelo menos ainda não completamente.

    Cada vez mais tenho a incómoda sensação de que a nossa civilização não tem muito futuro. Não sei se esta sensação é provocada por estar a assistir, ao vivo e a cores, ao desabamento da suposta supremacia do "Ocidente". Não sei se por me aperceber que estamos a tornar impossível a sobrevivência da espécie humana nestes moldes, quero dizer, nada se expande infinitamente a não ser (ao que parece) o Universo. A expansão infinita da Economia provocará o rebentamento da bolha civilizacional e... BUM!!!

    Silêncio.

sábado, julho 23, 2022

Uma pequena dor

     Adeus! Tchauzinho, adeus! Não voltou a cabeça, avançou num passo decidido sabendo que voltar atrás era coisa interdita. Adeus, adeus, até nunca mais! A despedida prolongava-se na hesitação da voz que ficava para trás. Resolveu avançar mais rapidamente e lá foi. O "adeuzinho" soou já pequenino, lá longe, uma pequena voz a diluir-se na distância que o separava daquilo que seria inevitavelmente o seu passado. Uma pequena dor alojou-se-lhe na profundeza do peito, na profundeza da alma, também ela a diluir-se, a tornar-se parte dele. Nada a fazer; o tempo não regressa, a vida não é vivida duas vezes. Todo o caminho tem um fim. À medida que avançava as sombras tinham mais densidade, a luz ia perdendo força, o ambiente ganhando uma certa magia. Adeus! pareceu-lhe ouvir, mas não podia ter a certeza. A escuridão aliava-se agora ao silêncio. Talvez fosse aquilo o futuro.

sexta-feira, julho 15, 2022

5 minutos

     Sentia-se submergido pela sua própria experiência de vida. Momentos havia em que quase chegava a perceber fazer parte de algo maior do que o seu quotidiano, momentos em que quase acreditava haver um sentido para a sua vida; chegou mesmo a quase acreditar em Deus. Nestes momentos, tão mágicos quanto fugazes, o corpo descontraía e a respiração ficava regular. O mundo batia em uníssono com o seu coração.

    Mas a vida não se comove com a insignificância de quem somos. Sentia-se deprimido 23 horas e 55 minutos por dia, todos os dias. Sim, mesmo quando dormia, era visitado por pesadelos horrendos. Dizer que se tratava de um homem deprimido seria dizer muito pouco. Era um homem desfeito, um detrito, um indigente social: era, segundo palavras suas ditas defronte ao espelho "uma merda de merda". Poderoso.

    Fosse como fosse, vivia para aqueles 5 minutinhos quotidianos de quase felicidade a que tinha direito. Poderiam surgir logo ao acordar, lá mais para o meio da manhã, perto da hora do almoço, ao fim da tarde, na hora da caminha; podiam viver-se todos de uma vez ou distribuídos em pequenas parcelas ao longo do dia recortando figurinhas alegres no tecido da angústia permanente. Não fossem aqueles doces minutos e já teria enfiado um tiro na cabeça ou bebido um copázio de veneno para a rataria. 

    5 minutos de vaga felicidade vividos cada dia provavam-lhe que a vida não tem de ser apenas sofrimento.

quinta-feira, julho 14, 2022

Historiador

     Poderia escrever toda uma história da arte tendo como ponto de partida a sua própria obra. Uma história da arte contemporânea, está bom de ver, que nem mesmo os artistas são imortais, diga lá Camões o que disser. Coçou a barriga, mirou as unhas lá em baixo, nos pés sujos de pisarem o chão do atelier para lá e para cá, em volta, para cima e para baixo; deixou a nuca ir pesando até lhe atirar a cabeça para trás. Mirou o tecto.

    O tempo passara, passara, voltara a passar. Tanta coisa aconteceu e, afinal, a sensação que perdurava era a de nada ter acontecido. Todas as cenas gloriosas que lhe haviam preenchido os anos de juventude nunca foram motivo de notícia, nunca atraíram as atenções da elite, nem da crítica, nem sequer da chungaria, portanto era como se não tivessem acontecido. Cenas gloriosas? Só mesmo na cabeça dele... ou não? 

    Havia ali uma certa confusão.

    Muita química inflamável, miolos queimados, recordações reconstruidas de cada vez que lhe faziam uma visita à alma. Cada vez duvidava mais de que certas coisas tivessem, de facto, acontecido e das que se lembrava sem rebuço punha em causa que houvessem sido mesmo assim. Mas podia escrever essa tal história. Talvez não da arte mas a sua história.

    Levantou-se em direcção ao frasco de pickles onde descansavam pincéis mal penteados afogados em água suja de tinta. Antes de alcançar a tela meio pintada já se tinha esquecido da ideia magnífica que o fizera levantar da cadeira.

terça-feira, julho 12, 2022

Desligar

     Infobesidade, já ouviste esta palavra, amicíssimo leitor? Da parte que me toca ando a fazer dieta. 

    Além do excesso de informação, o que me chateia é a propensão para a monotemática. Ele foi a Covid, depois veio a guerra, agora são os incêndios florestais. Os vários canais de informação repetem até à exaustão peças sobre os mesmos temas. Todos têm repórteres nos locais a despejarem informações redundantes sobre os espectadores que, imagino, consomem a coisa como bovídeos que pastam indolentemente na imensidão dos prados.

    Por vezes junto-me à manada e pasto um bocadinho. Mas depressa me canso, não sinto apetite por esta coisa pastosa e aborrecida que me tentam enfiar goela abaixo. Exerço o meu direito. Desligo.

   

quarta-feira, julho 06, 2022

Murmúrios

     Como aceitar a insignificância da vida que vivemos? Mesmo os maiores de entre os grandes, aqueles que têm carros de luxo e fotos nos jornais e milhões de seguidores no Instagram e vidas assombrosas, mesmo esses, cagam e mijam como nós e, no fim, morrem como todos. Poderemos alguma vez aceitar que a nossa vida vale tanto como a de um caracol?

    A Filosofia e a Religião, a Arte e, até, a Economia, tentam provar que a nossa vida é mais valiosa que a de um pardal ou a de uma suricata. E conseguem fazê-lo, provam que a vida humana é algo excepcional, uma coisa maravilhosa que só pode ter saído da imaginação insondável de Deus. Podemos almoçar sem remorso.

    Quando se trata de decidir sobre o usufruto do planeta somos juízes em causa própria e deliberamos sempre a nosso favor. A consequência deste sistema legal de ocupação da Terra é que a nossa espécie prolifera como uma doença incurável, carraças alapadas à crosta terrestre. 

    Começam a surgir vozes dissonantes, discursos ecologistas vão irrompendo aqui e ali mas, sejamos honestos, alguém lhes dá ouvidos?

terça-feira, julho 05, 2022

Um feio

     Deu a sua palavra de honra: não sentira inveja! Jurava a pés juntos que não houvera qualquer impulso, qualquer movimento subreptício, nada; nadinha! Nadinha de nada!!! Que o deixassem em paz, queria ir à sua vida. Mas os dois polícias não estavam pelos ajustes, muito longe de estarem convencidos pela história daquele tipo.

    Aos olhos de qualquer cidadão de bem aquele era um cidadão muito suspeito. Olhando-o dos pés à cabeça: botas da tropa mal engraxadas, a esquerda com a "boca aberta", a direita com 3 pregos salientes e ameaçadores a espreitarem um pouco acima da sola; calças mais rotas que cozidas, mas rotas pelo uso e não pela vontade de estar na moda, sujas...! Uma espécie de t-shirt, também ela bastante esburacada, com uma imagem de Jesus e a inscrição "never trust a zombie", ui! O polícia mais velho, que era de uma dessas igrejas ou seitas ou lá o que são aquelas casas onde se canta e batem palmas ao Criador e se Lhe dão umas gorjetas, o polícia mais velho ficou logo com vontade de lhe enfiar uma esquecida nas trombas mas conteve-se.

    Quando falou mostrou uma boca com espaços vagos na dentadura. A cara era como se lhe tivessem esfaqueado a carne e os ossos. Alguém lhe tatuou qualquer coisa na testa, qualquer coisa no maxilar, mas foram tentativas falhadas e se já era feioso mais horrível ficou.  O cabelo rapado indiciava algo semelhante a tinha. Enfim, pior aspecto? Talvez houvesse por aí alguém com pior aspecto mas não seria fácil de encontrar.

    Diz o povo que "quem vê caras não vê corações" e, neste caso, o dito fazia todo o sentido. O tipo era um autêntico santo. Bom, correcto para com os seus semelhantes, amigo dos animais, um anjo! Isso não impediu que sucumbisse aos maus tratos que desconhecidos lhe infligiram, presumivelmente, à porta da esquadra onde foi encontrado por dois transeuntes a esvair-se em sangue. Paz à sua alma.

domingo, julho 03, 2022

Medo

     Por vezes apetecia-lhe desistir. Deixar de respirar seria o suficiente. Parar, de uma vez por todas. Sossegar em lado nenhum era um conceito confuso mas atraente. Sentia-se farto de estar cansado perante o caos acumulado no mundo. Talvez lhe apetecesse morrer, ninguém sabe ao certo, o que é certo e sabido é que se dissolveu no ar perante o olhar atónito dos restantes cidadãos que aguardavam a sua vez na fila para o leite. 

    Os 15 cidadãos foram unânimes no seu depoimento: o homem elevou-se no ar um metro, metro e meio, rodopiou um pouco, duas voltas (5 confirmações), três voltas (4 confirmações), algumas voltas (restantes 6 testemunhas) e depois... puf! Desapareceu no ar, como se fosse feito de poeira e tivesse sido sugado pelo espaço à sua volta. 

    O oficial da GNR que registou a ocorrência não sabia do fastio absoluto que consumira o desaparecido ao longo dos últimos tempos (um ano, dois anos, poucos meses?) e mesmo que soubesse atrever-se-ia a relacionar a tristeza do homem com a sua dissolução no espaço em volta? Duvido muito.

    Os cidadãos que assistiram ao estranho fenómeno reagiram de forma pouco dinâmica. Pareciam cansados, desalentados, pouco interessados na vida. Nem mesmo um fenómeno como aquele teve o condão de lhes acender uma chamazinha de curiosidade, lhes provocar uma inquietação, nada! Assistir ao extraordinário desaparecimento do seu concidadão provocou inveja (a 7 deles), alguma curiosidade (a 5), uma fúria inexplicável (2) e um deles afirmou que, na confusão, lhe desaparecera um dedo. Esse confessou que sentira medo. Medo pânico.

sexta-feira, julho 01, 2022

Os merdosos

     Não ser esquecido, não ser apagado. Permanecer. Todos nós sofremos um pouco a angústia de nos vermos ultrapassados pela memória, de sermos engolidos e trucidados pela imensidão angustiante de não sermos nada. Tememos o tempo, olhamo-lo como se fosse um demónio.

    O que fazemos nós na tentativa de mantermos acesa uma chamazinha de nós próprios nas memórias alheias, na memória colectiva? Até que ponto estamos dispostos a importunar o mundo?

    Cada um fará aquilo que for capaz. Outros poderão simplesmente deixar-se ir na correnteza dos dias, indiferentes à sua insignificância. Alguns trepam sociedade acima, tentam alcançar o cume, o vértice da pirâmide. Uma vez lá no alto exibem-se de forma a que todos os vejam cagando cá para baixo. Esses consideram a sua merda como coisa admirável.