sexta-feira, setembro 30, 2022

Pesadelo

     Os dias decorriam todos iguais como se o tempo fosse um reflexo de si próprio no espelho da sua existência. O sol chegava, fixava-se no céu e por lá ficava até a lua vir marcar o ponto. Os dias sucediam-se com a normalidade habitual e ele cumpria as rotinas sem entusiasmo mas também sem qualquer angústia especial.

    Vivera toda a sua vida sem grandes medos. Nunca tivera fome a não ser por momentos ou por algumas horas sabendo que saciá-la era uma questão de oportunidade. O mesmo se passava com o frio ou com qualquer outro incómodo que pudesse assaltá-lo. A coisa sempre se resolveu com a naturalidade com que as coisas se resolvem na vida de quem vive uma vida sossegada.

    No entanto algo estava a mudar. Sentia-o bem. Era como se uma coisa má se viesse instalando no seu pequeno e ordenado mundo. Algo vagamente perceptível; um sufoco, um arrepio, um desregulamento que se insinuava entre o sol e a lua. Naquela noite teve dificuldade em adormecer e sonhou um terrível pesadelo.

segunda-feira, setembro 26, 2022

A quem pertence a guerra?

     A mobilização de tropas na Rússia tem sido notícia por estas bandas. Que os russos estão a dar de frosques fazendo filas imensas nas fronteiras; que as autoridades estão a mobilizar soldados entre a população mais pobre e rural. Parece que ninguém quer combater numa guerra que aparentemente nada diz aos candidatos a soldados. Não sei se é assim, se tudo isto é apenas fruto do nosso desejo de que os russos não queiram sujar as mãos numa guerra que, queremos acreditar, não é deles.

    Do outro lado combatem os corajosos ucranianos, defensores dos valores europeus, heróis valorosos que enfrentam o terrível invasor por amor à pátria. Convém recordar que logo nos primeiros dias de guerra o estado ucraniano impôs uma lei marcial impedindo todos os homens com mais de 18 anos e menos de 60 (o intervalo etário pode não ser este exactamente) de saírem do país. Foram obrigados a ficar e a pegarem em armas. Esta guerra não é deles também mas não têm escolha.

    No fundo, esta guerra não é de ninguém a não ser de Putin e dos seus mais próximos. Pertence ainda aos que "entregam" armas aos exércitos e, talvez, aos estados-maiores dos países beligerantes. Pertence a Zelensky? Enfim, pertencerá a algumas pessoas mas duvido que aquelas que combatem no terreno e vão caindo aqui e ali a sintam como sua.

terça-feira, setembro 20, 2022

Sonhos alheios

Parece evidente que o “sonho americano” não é para todos nós sonharmos. É um sonho apenas ao alcance dos grandes (os grandes da política, da finança, do desporto, do espectáculo, etc.) que nos é servido goela abaixo pelos meios de comunicação de massas. 

 

A forma como nos é impingida esta narrativa mostra que os diferentes canais noticiosos são, afinal, desconcertantemente semelhantes. Fica a sensação de que há uma pretensão mais ou menos velada de nos transformar a todos numa espécie de zombies sociais. Zombies que andam de um lado para o outro à procura de um pedaço de sonho americano para devorarem num ápice e que, logo após o terem consumido, voltam a arrastar o seu desejo sem que se vislumbre outra vontade que não seja a de saciar esta fome inumana. É a discreta transformação dos cidadãos em consumidores.

 

Talvez vá sendo tempo de compreendermos que o “mundo ocidental” está a cantar como um cisne e que as gerações futuras irão habitar um mundo com equilíbrios geopolíticos muito diferentes dos actuais onde, temo bem, o discurso dos Direitos Humanos não terá lugar, nem sequer como ornamento. É o “sonho chinês”?

segunda-feira, setembro 19, 2022

Fábulas

     É como se o Lobo Mau estivesse a encher um balão. Ele a soprar, a soprar, a soprar, o balão a inchar, a inchar, a inchar e nós, incautos cidadãos do mundo, olhamos aquele balão já de um tamanho impossível de imaginar sem antevermos a inevitabilidade do seu rebentamento. Quando isso acontecer, quando o enormérrimo balão estoirar num estrondo capaz de provocar ventos cósmicos, o susto vai ser de tal modo que todos os seres humanos nos borraremos em simultâneo no mundo todo, provocando um tsunami de merda que cobrirá o planeta de uma vez por todas; assim se cumprindo o destino que a Humanidade tem vindo a criar para si própria.

    Somos como os Três Porquinhos. As personalidades das rechonchudas personagens ilustram bem aquilo que somos enquanto espécie: confiantes, preguiçosos, despreocupados mas também atentos, inventivos, diligentes, solidários e implacáveis. Há de tudo, como na farmácia, é a maravilhosa diversidade do Ser Humano. Além dos traços psicológicos, os Porquinhos ilustram também, com uma fidelidade comovente, as características físicas daquilo que somos enquanto gente. A semelhança entre um coração de porco e o de uma pessoa é tão grande que só posso imaginar que as almas das duas espécies sejam igualmente aproximadas.

    Tenho para mim que nunca se deveria ter abandonado o recurso à fábula, por brutal que fosse, enquanto ferramenta educativa. Com moral da história e tudo.

segunda-feira, setembro 12, 2022

Cansaço

     Sinto-me tão cansado. Se pudesse desligar o cérebro era já! Parar de ser, parar de pensar, parar de fazer. Parar. Parar. Ficar parado. Como uma pedra, como uma planta, permanecer apenas. Nada mais.

    Esta sensação é deveras incómoda pois estou a poucos dias de começar um novo ano de trabalho e sinto que precisava mesmo era de descanso. As férias foram extenuantes devido à conjugação de um certo número de acontecimentos imprevistos que fizeram do mês de Agosto um autêntico caldeirão ao lume.

    Sinto-me tão cansado... ouço a canção a ecoar no meu interior

    I am tired, I am weary I could sleep for a thousand years A thousand dreams that would awake me Different colors made of tears

quinta-feira, setembro 08, 2022

Brutesco

            (O texto que se segue é o texto de apresentação da exposição de desenho que vou inaugurar mais logo às 21 horas na Galeria Imargem, em Almada.)

            BRUTESCO

Naquele ano dava eu aulas de História da Arte a uma turma do ensino secundário na Anselmo de Andrade, ali mesmo em baixo, atrás da bomba de gasolina, do outro lado da avenida. Na resposta a uma questão relacionada com os capitéis românicos de certas catedrais e igrejas da Idade Média, uma aluna (lembro-me que foi uma rapariga) respondeu num teste que “a escultura Românica é brutesca”. Ultrapassado o estupor inicial fiquei maravilhado.

Quando desenho sei que penso nos tais relevos românicos, no brutal preto e branco de Muñoz e Sampayo, na voz planante de Lou Reed, nas iluminuras do Apocalipse do Lorvão, na lata incontrolável de Picasso, no delírio grotesco de Bosch, na poesia punk dos Clash, na inventividade camaleónica de Bowie, na escrita de Stanislaw Lem, na aspereza de Paula Rego, nas portas de William Blake, nos corredores obscuros dos Pop Dell’arte, no traço desengonçado de Joan Sfar, na ausência de estilo de Max Ernst, nas manchas de Goya, nos fantasmas de Goya, em Goya…

É na hibridização anárquica de milhentas influências e infindáveis acasos que nascem os meus desenhos. Os meus desenhos são brutescos. 

Esta exposição é constituída por desenhos de três séries diferentes: Regresso ao Paraíso, Desenhos Soltos e Desenhos Mortos (todos os de tamanho A3); por 3 ou 4 desenhos de dimensão média e uma pintura a acrílico.

A série Regresso ao Paraíso é constituída por 24 desenhos e foi elaborada entre Maio e Agosto de 2021. Após algum tempo fora de casa, por motivo de obras, regressei podendo dedicar-me novamente ao Desenho. Daí a designação desta série.

A série Desenhos Soltos foi iniciada em Setembro de 2021 e ainda não está fechada. Até à data tem 68 desenhos. Os temas e as técnicas variam muito, conforme os dias e as noites.

A série Desenhos Mortos é constituída por 30 desenhos tendo como pano de fundo a guerra na Ucrânia. Foi iniciada em Março de 2022 e concluída em Junho do mesmo ano. O tema da guerra não desapareceu, faz parte do meu imaginário desde que me lembro, apenas deixou de ser a motivação principal de cada vez que me aproximo da área de trabalho.

Os desenhos de dimensão média têm técnicas e temáticas semelhantes às aplicadas nos restantes. A maior dimensão do suporte permite narrativas mais complexas e jogos formais mais intrincados.

A pintura a acrílico foi realizada durante um período de confinamento.

Os textos foram retirados do Blogue 100 Cabeças e posteriormente adaptados.

Oxalá inventes as tuas histórias e as acrescentes às minhas.

 

Rui Silvares, Julho/Setembro de 2022

quarta-feira, setembro 07, 2022

Professorar

     Por vezes penso se terei algum problema de integração no universo académico. Os professores (e eu sou um professor) de um modo geral secam-me os miolos de uma forma angustiante. 

    Há os que são chatos porque organizam de tal forma a sua exposição que nada de inesperado poderá interferir na sua verborreia. 

    Há os que chateiam porque adoram ouvir-se falar e, apesar de se exprimirem com correcção e clareza, falam, falam, falam, mas aquilo é como música de elevador. É ruído de fundo. 

    Finalmente há aqueles que conseguem equilibrar conhecimento e sensibilidade ao ponto de criarem momentos de grande eficácia comunicacional. Estes conseguem reconciliar-me com a minha própria classe profissional. Infelizmente por pouco tempo.

    Gostava de voltar a ser a criança que entra numa escola pela primeira vez.

sexta-feira, setembro 02, 2022

Palavreado

     Tantas palavras, tantas palavras... tentar explicar aquilo que nos vai na alma exige um esforço tremendo, exige tantas palavras...

    E se aquilo que pensamos pudesse ser passado para o Outro sem necessidade da escrita ou da fala? Se pensássemos directamente no espírito interlocutor haveria muito menos perda de informação no processo de diálogo. Mas, funcionaria?

    É frequente, quando me cruzo com outras pessoas na rua, imaginar como seria estar dentro do corpo que as leva. Que imagens produzem aqueles olhos no seu cérebro, que pensamentos dançam dentro daquela pessoa iluminada pelo mesmo sol que aquece a minha pele? Escreveu Saramago que "o mundo de cada um é os olhos que tem", formulação de feliz eficácia que explica um pouco este problema que me assalta com tanta frequência.

    Pensar dentro de cabeça alheia seria decerto interessante mas, acredito, seria muito confuso, porventura assustador.