segunda-feira, abril 13, 2015

No metro

"Uma ajudinha, por favor, uma ajudinha, por favor",

Coloquei duas moedas pequenas na caixa de esmolas da ceguinha (uma cega que não tem globos oculares, apenas uma face de carne lisa). O ângulo do meu braço era estranho em relação à ranhura e, instintivamente, segurei o fundo da caixa com a outra mão, de modo a compensar os balanços da carruagem de metro.

De imediato senti os dedos da cega a cravarem-se-me na mão. Larguei as moedas em menos que nada mas a mulher só afrouxou o gesto quando soltei a caixa e então ela avançou: "uma ajudinha, por favor, uma ajudinha, por favor", repetia a lenga-lenga com voz frágil, uma súplica nada condizente com a forma quase selvagem como protegera o seu pequeno cofre, contentor de duvidoso tesouro; "uma ajudinha, por favor, uma ajudinha, por favor", sussurrado lamento.

Compreendi como fora incauto o meu gesto reflexo de segurar a caixa, como despertei o instinto de defesa na mulher que, sendo cega, não podia avaliar a minha linguagem corporal. Compreendi que numa selva sem luz as sensações tácteis ou auditivas ou olfactivas ganham dimensões que eu nem sequer suspeito.

Aquela mulher vive num mundo bem mais selvagem do que aquele que eu habito. E ela está atenta, ela defende-se, o mundo todo será potencial ameaça. Ela defende-se como qualquer animal se defende dos animais que desconhece.

5 comentários:

João Menéres disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
João Menéres disse...

Se o não via, o que pensou ela ?
-Olha o estupor que me queria roubar a caixa das esmolas !

Silvares disse...

Sem dúvida. Terá sido algo parecido com isso.

Luma Rosa disse...

Oi, Silvares!
A sobrevivência é o pior castigo para aqueles que não possuem chances de competição.
:)
Que triste! Pois o Estado deveria ter abrigos para pessoas como essa senhora.
Beijus,

Silvares disse...

Luma, ela sobrevive. Imagino que se sinta viva. A mão dela na minha deixou-me uma fortíssima impressão.