domingo, setembro 07, 2025

Ãoão

     Se por acaso tivesse uma pedra no bolso havia de resolver a questão com rapidez e deselegância. Uma calhoada bem assestada ali mesmo, no meiínho daquele par de cornos, e seria vê-lo a rodopiar sobre uma pata ao redor de uma perna e depois a despencar com majestade, como se fora uma saca de merda, a despencar em cheio na calçada: catrapunfas! Já foste!

    Se por acaso fosse um pouco mais moreno (teria de ser mesmo muito mais do que sou) ninguém diria que vim do Norte, todos pensariam que era do Sul que eu era. Mas não. Fui presenteado com uma pele que parece lavada com lixívia, sardas como se fosse cagado das moscas e um cabelo que não se percebe que raio de cor ele tem. Logo sou celta, nunca mouro, sou judeu, nunca cigano. Verdade, verdadinha não me sinto ser nada disso nem sinto ser aquilo que não sou. Sinto-me muito eu. É quanto basta.

    Se por acaso tivesse um animal de estimação dificilmente seria um gato e nunca, mas mesmo nunca, poderia ser a porra de uma serpente. Gosto muito de cães. Talvez até gostasse de ser um cão. Não sei, não tenho bem a certeza. Os cães são fixes.

Erupção momentânea

     Há acidentes que, por acidente, não chegam a acontecer. Desgraças semeadas que não chegam a medrar no campo das angústias. Há coisas do diabo que não chegam a sê-lo e o diabo que se lixe. Olhando o passado tão longínquo quanto me foi possível, pude apenas observar longuíssimas sombras de coisas esquecidas. E, se nada disto faz sentido, um fantasma abeirou-se do meu ser e tentou compreendê-lo. Talvez não tenha sido capaz, talvez tenha perdido o interesse. Foi-se embora. Abandonou-me sem sequer me ter lambido as mãos. 

quinta-feira, agosto 28, 2025

Eles vivem

 

    Eles vêm aos milhares. Ocupam as nossas casas, ficamos sem tecto, fugimos do centro para a periferia. Eles têm hábitos estranhos, deixam atrás de si um rasto de detritos sólidos, sujam as ruas e bebem demasiado. Deslocam-se como zombies arrastando malas barulhentas. O céu da cidade é uma autoestrada em hora de ponta. 

    Eles vêm aos milhares, carregados de dinheiro para gastar em todas as direcções. Muitos vêm para ficar. Compram casas e apartamentos que pagam a preços, para nós, inacreditáveis o que nos transforma em pobres de um dia para o outro. 

    É a tão temida Grande Substituição de que ouço falar há uns quantos anos. O nosso país está a ser retalhado e vendido. Nós, os portugueses de bem, estamos a ser substituídos por gente rica, não importa de que raça ou de que cor. Desde que tenham dinheiro são bem-vindos.

terça-feira, agosto 26, 2025

Súbita iluminação

 Ama o próximo como se fosse o teu cão.

Sono

     As coisas pareciam-lhe estragadas, como se a vida tivesse prazo de validade, tal qual as ervilhas enlatadas ou os iogurtes. O próprio acto de respirar o incomodava como se não fosse natural. Estava demasiado consciente. 

    Já tinha compreendido havia bastante tempo uma verdade básica: que a consciência é uma arma de auto-destruição demolidora. Descodificar com exactidão os mais ínfimos sinais emanados pelo mundo que nos rodeia leva qualquer ser humano às portas da loucura mais rapidamente do que arde um fósforo. Talvez por isso seja dos pobres de espírito o reino dos céus.

    Virou-se para o outro lado ajeitando a cabeça na almofada. Esperava o sono pois sabia que quando ele viesse seria como se morresse. A noite levá-lo-ia. Estaria de regresso pela manhã, talvez revigorado, talvez esquecido, talvez livre de pensamentos deprimentes.

segunda-feira, agosto 25, 2025

Não somos borboletas

     Um ser destrambelhado preso num labirinto e que devora gente jovem; um ser monstruoso com cabeça de touro e, talvez por isso, incapaz de compreender a sua relação com o mundo... será o Minotauro uma metáfora da eterna adolescência?

    Quando finalmente somos capazes de compreender que precisamos do outro para ficarmos completos, quando finalmente não devoramos aquele que nos parece apetitoso, então ultrapassamos o estado de adolescência e entramos naquilo que desajeitadamente designamos por "idade adulta". Isto pode acontecer após 14,15, 16 anos de vida ou pode acontecer aos 70 ou 80, não há uma idade específica que determine a transformação. Não somos borboletas.

segunda-feira, agosto 18, 2025

Elogio da preguiça

    A preguiça devia fazer parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Artigo 23 diz que temos direito ao trabalho e o 24 que todo o ser humano tem direito a repouso e lazer bem como tem o direito a férias (remuneradas!). Quanto à preguiça nem uma palavra.

    A preguiça sempre teve má imagem entre aqueles que se julgam imunes aos seus encantos. A preguiça é vista como um mal social e os preguiçosos tendem a ser ostracizados por quem não o é ou não pode sê-lo. Mas tudo me parece um bocado exagerado.

    Nos últimos tempos tenho sido frequentemente atingido por ondas de preguiça irresistíveis que me deixam pregado à cama com uma ventoinha a refrescar o espaço em volta. Durmo belas sestas e à noite volto a dormir como se não houvesse amanhã. Leio umas poucas páginas de um livro qualquer e estou pronto para viajar no esquecimento do sono. Um descanso...

    Poderia fazer outras coisas, preencher as minhas tardes com actividades mais interessantes do que estar de papo para o ar e dormir? Acho que sim, eventualmente. Não tenho a certeza. A verdade é que me sinto bem a preguiçar como um valente. É aproveitar enquanto é tempo. Em breve terei de me render e desistir desta vida de sossego absoluto.  

sábado, agosto 16, 2025

O homem que comia bananas

     "Comediante" é o título de uma obra de Maurizio Cattelan que consiste em... acho que se disser que é "aquela" banana o tolerante leitor perceberá imediatamente do que falo. É uma banana colada à parede com um pedaço de fita-cola cinzenta (soa melhor "prateada"). Meu deus! Isto é arte? Vou colar uma banana na parede da sala... etc. As reacções são variadas e, na maior parte das vezes, desinformadas. A história de "Comediante" é muito simples mas não é dela que pretendo falar neste post.

    A obra de Cattelan já foi comida, pelo menos, três vezes sendo que as duas últimas (a derradeira na exposição de Serralves) foram autoria de um cidadão holandês, ou neerlandês, como agora é de bom tom dizer, Peter van Druten de sua graça. Ao que parece, van Druten reclama ser autor de uma intervenção artística. Teremos aqui um artista contemporâneo em potência?

    A primeira parte da obra de van Druten aconteceu em Metz onde, acometido de um impulso incontrolável, decidiu descolar a banana da parede, descascá-la e comê-la. Segundo o potencial artista, Cattelan ter-lhe-á dito que deveria comer também a casca e a fita uma vez que fazem parte da obra. Vai daí, o súbdito de Guilherme Alexandre viajou até até à "Inbicta" e morfou segunda banana. Ao que parece, desta vez, não terá conseguido comê-la na totalidade uma vez que casca e fita-cola são mais difíceis de mastigar.

    E por aqui me fico se bem que esta fábula tenha mais contornos pitorescos e extrapolações interessantes. Termino com uma proposta de título para a acção/performance/obra de van Druten: O Palhaço.

sexta-feira, agosto 15, 2025

Erudição

     Gostava tanto de ser um erudito. Caramba, se gostava! Se não desse tanto trabalho haveria de ser um erudito. Sendo assim, não sou. Não posso ser, não consigo. Faltam-me toneladas de páginas, quilómetros de palavras, imensidões que nunca olharei, reflexões que nunca poderei fazer. Tenho pena.

    Ultimamente talvez este meu secreto desejo esteja discretamente a perder força dentro de mim. Não é por nada, apenas que a erudição tem vindo a perder valor na bolsa de activos da popularidade. Ser bronco parece estar a dar muito mais do que mostrar algum tipo de conhecimento e capacidade de reflexão. Ainda assim não invejo os broncos por serem o que são. Mas faço de conta que não penso nesses assuntos.

    Como, lá no fundo, um gajo quer ser qualquer coisa desde que isso lhe confira alguma popularidade e a erudição anda pelas ruas da amargura... bom, talvez eu possa pensar numa outra opção. 

    Num tempo em que o homem mais poderoso do mundo é um mentecapto em nítida regressão, um homem que se aproxima da amiba a cada dia que passa, será natural que os toscos, os estúpidos e os imbecis se sintam vingados. Os intelectuais, os eruditos, essa gentalha que tem a mania que sabe coisas, tem aqui a prova viva de que a boçalidade e a ignorância mais rasteira podem constituir e enformar o poder mais poderoso. Toma!

    E pronto. Se calhar não é assim tão deprimente saber que nunca poderei ser um erudito. Talvez eu possa ser um estúpido imbecil e sentir-me realizado com isso. 

quarta-feira, agosto 13, 2025

Um imenso adeus

     Pensar nem sequer provoca dor! Antes pelo contrário. Não pensar, sim, é doloroso e provoca tantas desgraças que parece bruxaria. Agir sem pensar (ou desprezando o pensamento) provoca estranha agitação nas ondas da realidade e traz para as praias deste mundo lixo variado e muito difícil, se não mesmo impossível, de reciclar. "O sono da razão engendra monstros", compreendeu Francisco de Goya, as praias da realidade estão a deitá-los por fora.

    Sempre fomos estúpidos. A nossa espécie tem a capacidade de engendrar artefactos maravilhosos à mistura com os inevitáveis monstros e isso vai disfarçando a nossa infinita estupidez enquanto espécie. Somos qualquer coisa entre o imbecil e o génio que se reinventa incessantemente sem nunca parar para pensar. Agimos de forma impulsiva e desregrada. Não pensamos o suficiente sobre as consequências das nossas acções.

    Adeus. 

terça-feira, agosto 12, 2025

Perutz

     Senti uma súbita necessidade de contradizer o meu post anterior. Confesso que o escrevi sem pensar no que fazia e o resultado é um pouco nefasto. Não queria dizer aquilo, antes pelo contrário. Não penso assim, a construção das frases peca por ser tão infantil, o remoinho do tempo baralhou-lhes o sentido e nada daquilo poderia, alguma vez, existir fosse em que universo fosse tentado.

    Dito isto passo a explicar que acabei de ler O Marquês de Bolibar, de Leo Perutz, e não fiquei maravilhado. Já O Cavaleiro Sueco, do mesmo autor, me deixou à beira de ficar descalço. Nas badanas e contracapas os editores colocam frases de alguns dos meus heróis literários: "O exemplo perfeito de um romance fantástico no seu estado puro", terá dito Jorge Luís Borges de forma que me parece um tanto exagerada. Italo Calvino terá sido outro leitor devoto deste escritor austríaco nascido em Praga (!!). Enfim, com estas conversas lá me convenceram a ler dois romances que, não fossem estas vozes de fantasmas queridos, dificilmente seriam objecto da minha atenção.

    Sim, há nestes romances qualquer coisa de extraordinário, algo de maravilhoso, mas em doses homeopáticas. Para me satisfazer teria de ser algo mais brutal, mais animalesco. Seja como for, caso não conheças este escritor, experimenta lê-lo, errático leitor. Talvez O Cavaleiro Sueco seja entrada mais apetecível mas, diz quem sabe, O Marquês de Bolibar é obra-prima. 

Tenho dito

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sábado, agosto 09, 2025

Babel (texto corrido, escrito à primeira e sem revisão, provavelmente uma xaropada)

    Podíamos ter sido tanta coisa que não fomos! Mas acho que isso não retira nem um bocadinho à grandeza dos nossos actos. É uma grandeza grandiosa, uma grandiosidade construída sobre a força da vontade que temos quando a coisa arde dentro de nós e não sabemos muito bem como lidar com ela. E essa força empurra-nos em todas as direcções e nós vamos, deixamo-nos ir porque isso é bom e temos a sensação de estar a fazer qualquer coisa que é fixe. E fazemos. E depois esquecemos que fizemos aquilo e damos por nós já a fazer uma outra coisa. E vivemos assim, fazemos dessa construção o nosso modo de vida, trabalhamos nas fundações da Torre de Babel sem sabermos que estamos precisamente ali, na base de todas as coisas que hão-de um dia acontecer.

    Quando olho para trás tenho, por vezes, esta sensação de grandeza, de plenitude, quase me sinto realizado. Mas logo me assalta o homenzinho cristão que habita algures entre as minhas orelhas e vem bichanar-me aos ouvidos palavras sensatas e absolutamente equilibradas que me mostram como sou insignificante e não valho nem a ponta de um chavelho do diabo mais escanzelado do inferno. E eu penso "quero que te fodas, eu fiz coisas, caraças!" E regresso ao meu sonho e sou outra vez um operário a martelar calhaus do tamanho de autocarros e percebo perfeitamente tudo o que dizem os outros gajos e as outras gajas que andam por ali a cirandar, a cumprir o plano de um arquitecto que nunca vimos, não fazemos a mínima ideia de quem seja, mas acreditamos piamente no plano que elaborou para a construção da puta da torre. Arriba!

    A memória do dilúvio corrói a mente de todos, é um pesadelo que nos tira o sono e nos mantém a trabalhar mais de 24 horas todos os dias que deus ainda não arredondou bem esta coisa da lua e do sol e os horários são coisas mais complexas do que deviam. Os dias ainda não estão bem acabados e a torre vai por aí acima que é uma beleza de se ver. Cansados? Sim, mas orgulhosos da obra que vamos realizando. Quanto mais longe estivermos da terra mais seguros nos sentimos que este deus é muito fixe, é muito fixe mas meto um medo do caraças! O gajo é meio descompensado e o pessoal já não confia nele como confiava. Vamos muito mais pelo arquitecto que nos mostra planos claros e não parece zangar-se quando fazemos merda ou preguiçamos um bocadito.

    Podíamos ter sido artistas contemporâneos no século XX, poetas no século XIX, construtores de catedrais góticas, pintores no Renascimento, curadores de arte no século XXI, podíamos ter sido tanta coisa que não fomos. Mas andámos por lá, na Torre de Babel até deus se chatear por não ter percebido nada. Por ter imaginado que queríamos aproximar-nos da morada dele! Fogo! Nós queríamos era ficar longe das águas caso caísse outro dilúvio ou viesse um tsunami que varresse tudo. E lá veio a confusão das línguas e a Torre ficou assim mesmo, inacabada. Ainda assim um espectáculo, um regalo para a  vista.

    Hoje falo português, um pouco de francês e inglês. Arranho espanhol e é tudo.

sexta-feira, agosto 08, 2025

Solidão macaca

    Ena, o gajo conseguiu! Grande cromo, sim senhor, nunca pensei que fosse capaz. E ainda se mantém em pé apesar de vacilar um pouco, quase não se nota. Eu reparo nas tremuras porque assisti à coisa desde o início e, muito sinceramente, nunca pensei que um ser humano pudesse realizar aquela façanha. Aquilo está ao nível das capacidades físicas de um grande símio, talvez um orangotango habilidoso conseguisse... só visto! Contado ninguém acredita, palavras não são instrumentos adequados para descrever tão insólito acontecimento.

    Além de mim só o filho mais novo do meu amigo parece ter assistido ao feito do homenzinho que agora se sentou e respira fundo; decerto tenta recuperar o coração e trazer a alma de volta ao corpo que aquilo foi coisinha para ela quase se ter perdido de quem é. Olho para o puto em busca de algum tipo de cumplicidade mas ele parece absolutamente alheado de tudo o que o rodeia. Está absorto, completamente concentrado na bolacha do gelado que começa a amolecer de forma ameaçadora. Sei que ele viu o homem a fazer aquela coisa extraordinária mas terá, de facto, reparado? Terá noção de como foi prodigioso o que vimos? O que será prodigioso para o meu pequeno amigo?

    O homem levantou-se, vai abandonar o local. O puto já tratou do gelado, tratou da bolacha e tratou de qualquer coisa mais mas não percebi o que era e tenta agora lavar as mãos num balde plástico com água que transportou desde o mar mas só consegue meter dentro uma mão de cada vez. Está complicado. O puto olha para mim com uma expressão que parece solicitar ajuda. Não mostro a mais pequena disponibilidade e ele desinteressa-se e vira o balde, espalhando água em seu redor. Não lhe vejo sinais de deslumbramento nem perguntas sem resposta sobre os limites das capacidades físicas do corpo humano. O pai e a mãe continuam absortos nos respectivos telemóveis. Desenrasque-se!  Eu sinto-me muito só.

quinta-feira, agosto 07, 2025

As pombinhas da Catrina

As coisas nunca foram assim tão definidas, nunca antes a sua mente havia explicado a si própria com tamanha precisão as coisas como elas são, e pronto. 
E pronto? 
Foi-se. 
Não terá aguentado a descarga. 
 
Lá vai mais uma. 
Tragam o próximo candidato. 
É outra mulher. 
Ok, tudo bem. Pode ser que esta aguente. 
Pode ser. Era fixe. 
 
A lucidez é terrível quando cai assim, em cima de uma pessoa, toda de uma vez. 
Mas esta gente fez workshops específicos, valha-me Deus! Assinaram termos de responsabilidade!
Alguns podem ter dito que estavam a perceber sem perceber nada, sabes que há pessoas assim. Não são workshops o que nos vai resolver o problema.
Também me parece.
Os accionistas já começam a falar. 
Por enquanto falam baixinho. 
 
Energia! 
Lá vai outra... 

quarta-feira, agosto 06, 2025

Cada mercado sua Lei

    Um gajo bem tenta fugir ao Sagrado mas o Sagrado nem se apercebe. Um gajo tenta ignorá-lo, afastá-lo, dar-lhe uma martelada, riscá-lo, metê-lo num saco e atirá-lo ao rio mas... nada! Nada resulta. O Sagrado não desaparece apenas porque alguns de nós insistem em fazer-lhe uma guerra permanente. O Sagrado é de outra dimensão, tem uma categoria muito acima das nossas capacidades cognitivas.

    Um gajo bem pode tentar fugir ao Sagrado mas o Sagrado não foge dele. Portanto está tudo lixado e nada faz sentido. Tudo lixado para o gajo que tenta fugir, porque para o Sagrado é exactamente a mesma coisa e o seu contrário. Na dimensão do Sagrado não há muito nem pouco, nem luz nem escuridão, nem certo nem errado, nem cavalo nem égua, é tudo farinha do mesmo saco, tudo serve para o alimentar continuamente de modo a que nunca sinta fome e esteja sempre saciado (se bem que, para o Sagrado, a fome e a fartura devam ser uma e a mesma coisa se bem que opostas em absoluto).

    Há neste discurso incongruências e a lógica que lhe assiste ronda perigosamente a da batata mas, como falar do Sagrado? Como estabelecer um código de linguagem que traduza a relação que estabelecemos com o Sagrado? Sim, como é que isso se faz? Há sempre um padreca ou um bispo evangélico ou outro oportunista de meia-tigela prontinho a esclarecer as tuas dúvidas, assim tenhas algo comerciável com valor determinado neste mercado de transacções.

segunda-feira, agosto 04, 2025

Euzinho

     Um gajo é bem capaz da maior das petulâncias sem que disso se aperceba. Dizer, pensar, fazer, imaginar, congeminar, trocar umas ideias sem que se esteja muito interessado naquilo que o interlocutor possa dizer. Enfim, petulância quando rima com condescendência é autêntica merda radioactiva na dimensão situada ali entre a alma e o espírito. Um gajo é bem capaz de viver assim uma vida inteira, sempre convencido de que o mundo não o compreende.

     

sábado, agosto 02, 2025

Ai, ui!

    Ai, sou tão invejoso! O que eu não dava por umas festinhas bem esfregadas no lombo deste meu ego. Umas palavrinhas doces sussurradas ao seu ouvido meio obstruído pela cêra, o meu ego a ronronar como um gato persa de 234 quilo (lembro-me sempre de uma aula de física sobre as designações das unidades de medida). Quietinho, acomodado, o meu ego a destilar amor pelo mundo graças à bajulação exagerada.

    Oh, como seria feliz se houvesse alguém capaz de vislumbrar em mim qualidades que não tenho mas que poderia ter. Bastaria que ficasse registado em lindas frases completas e devidamente estruturadas. Uma ou outra palavra destacada a "bold" as vírgulas todas bem arrumadinhas... não precisava de mais nada. Era só isso.

    Ui, como ando tão longe da felicidade. 

sexta-feira, agosto 01, 2025

E etc.

    O médico diz-me que sou habitado por  comensais. Refere-se aos fungos que, pelos vistos, me habitam e de mim se alimentam. Mais tarde dou por mim a pensar: "se os fungos fossem vacas eu seria um prado verdejante". Pareceu-me um lindo pensamento.

    Mas quem está todo manchado sou eu, não são as vaquinhas microscópicas. Vermelho sobre fundo branco leitoso. Múúúúú... a puta que pariu. Que chatice, estar assim. Ainda por cima as temperaturas trepam que não é brincadeira e, dentro de um dia ou dois, vão rondar os 40 graus. Os 3 Estigmas de Palmer Eldritch.

    Não me apetece escrever, não me apetece ler, não me apetece fazer grande coisa. Será esta apatia sugerida pelo facto de agora pensar que estou a ser devorado por fungos patetas? Mas, haverá alguma coisa que exista sem que devore ou seja devorada por uma outra coisa?

    Parto do princípio que uma montanha se alimenta de tempo. E etc. 

quinta-feira, julho 31, 2025

O imperador

    Não te deixes enganar pela calmaria. A coisa é aparente. A realidade está prestes a rebentar. Explodirá o azul do céu, rasgará o silêncio do pinhal. A realidade vai desabar sobre as nossas cabeças interrompendo o longo beijo com que tentamos modificar o mundo. Estáticos sobre o penedo infinito. O mundo não quer ser alterado. O mundo tem vontade própria e nós não fazemos parte do séquito com direito a audiência e explanação de opiniões sobre o curso que as coisas do mundo poderão tomar. O mundo é rei e nós não somos seus conselheiros. Rei? O mundo é imperador, caraças! O mundo é imperador de si próprio.

quarta-feira, julho 30, 2025

O encontro

     Trazia a loucura escondida nos bolsos, nas pregas da roupa, um pouco espalhada nos cabelos, loucura que se ia desprendendo ao soprar da brisa, semeando terra que a isso estivesse disposta. Avançava feliz e confiante nas coisas boas que aquele dia haveria de trazer consigo. Ah, quanta pureza no ar, o perfume, a luz, a ausência de lamentos a ondular entre as copas das árvores que se contorciam lentamente, como se dançassem, como se estivessem a espreguiçar-se com volúpia. Que manhã gloriosa!

    Avançou pelo trilho. Árvores majestosas projectavam pequenas sombras dada a posição do sol lá no alto. O ruído provocado pelas solas dos sapatos, cada passo esmagava sempre qualquer coisa que não conseguia identificar, começou a inquietá-lo. Não havia naquele som nada de extraordinário, não era assustador, não tinha nada de especial. Simplesmente não conseguia perceber se pisava apenas gravilha ou também ramos secos ou ervas mortas ou algum insecto menos capaz de escapulir. 

    Instalou-se uma certa angústia. O ar ficou pesado, o perfume transformou-se num odor desagradável, uma nuvem escura atravessou-se entre o sol e a terra. Um pássaro piou tristemente, como se lhe tivesse morrido alguém na família.Mesmo as copas das árvores pareceram enlouquecer de súbito, sopradas e cuspidas de um lado para outro numa sarabanda aérea descontrolada.

    O homem enfiou as mãos nos bolsos tentando desajeitadamente libertar-se da loucura que transportava. Desatou a correr esbracejando gestos desconexos. Caíram pedaços aqui e ali, a loucura ia-se espalhando no caminho, ele ofegante, aos tropeções até que avistou a senhora ao fundo do trilho. 

    Magnífica no seu vestido branco, imaculado. Brilhava sob o sol como se fora uma aparição. Vinha de outro mundo, de um mundo livre desta loucura, desta desorganização, um mundo livre desta angústia que apertava a gorja ao maluquinho que estacou como uma lebre ao aperceber-se da presença da raposa que irá colocar em perigo a sua integridade física.

    A mulher não reparou nele de imediato o que permitiu ao homem recompor-se um pouco, alisar o cabelo com a palma da mão direita enquanto enxotava com a esquerda os restos de loucura que tinha ainda agarrados às pernas das calças. Abrandou o passo, recuperou alguma graça, sentiu de novo a brisa suave e o canto dos passarinhos. Teve presença de espírito suficiente para colher uma margarida na berma do caminho. Aproximou-se e soltou um "bom dia" na voz mais melodiosa que aquele dia haveria de ouvir fosse aqui ou em qualquer outro lugar do planeta.

terça-feira, julho 29, 2025

Lâminas

     A mentira não crescia, mantinha-se estável, tão estável que talvez nem pudesse ser considerada traição. Os olhares tensos cruzavam-se no espaço do quarto formando uma perigosa teia de fios brilhantes, duros como aço e afiados como lâminas. Se algum dos presentes se movesse correria risco de vida imediato. Ninguém se atrevia a, sequer, piscar os olhos com receio de perder a sua pequena vantagem.

    Assim permaneceram por longos minutos até que a rapariga loira, sentada na poltrona de cabedal luzidio, resolveu quebrar o silêncio. E o tempo regressou e voltou a correr. Até ao fim.

segunda-feira, julho 28, 2025

Manhã soalheira

     As coisas banais crescem como cogumelos alucinogénicos e crescem por todo o lado infectando mentes e paisagens com a sua estranheza aparentemente inofensiva. A cadeira não teria nada de extraordinário não fosse o estranho ângulo que fazia com a mesa (que tinha uma perna ligeiramente mais curta que as outras o que a tornava instável e perigosa).

    Sobre a mesa uma jarra com água. Tudo dentro da mais fastidiosa normalidade. No entanto o sol que entrava pela janela (não tão limpa quanto poderia e talvez devesse estar) trespassava o jarro e atirava sobre o tampo da mesa um desenho feito a facadas luminosas que tremelicou quando o gato esfregou as costas ociosas na perna bamba fazendo oscilar todo o conjunto.

    A aranha festejou na sua teia a chegada de uma mosca incauta. 

domingo, julho 27, 2025

Romper a aurora

     Aquele momento em que se apercebia de que o sono acabava e o estado de vigília viria tomar o lugar que lhe cabia, aparentemente, por direito, aquele momento era o seu preferido. Apercebia-se de que havia uma alma dentro dele, um fantasma que o habitava como se fosse uma casa assombrada. E isso era-lhe extremamente agradável. Sentia que a vida tinha um propósito.

    Aquele momento marcava com precisão a passagem do sonho para a realidade, era a prova de que a vida é uma continuidade, que poderia ser eterna não fosse a eternidade um logro. 

    O fantasma entrava no saco de pele e ossos que haveria de lhe servir como veículo para o tempo em que estivesse acordado e lá se deslocava, desajeitado, a lutar constantemente com a gravidade e outras leis que limitam as possibilidades da poesia sempre que se está deste lado. As leis que fazem de nós seres humanos e dão uma forma tangível às coisas e lhes atribuem os nomes pelos quais as conhecemos.

    Tanto para fazer e tanto que nunca haverá de ser feito! 

sábado, julho 26, 2025

3 impossibilidades entre mil

     Impossível. É-me impossível manter um ritmo diário de escrita. Não é que não queira, não é que não possa, não. É porque me esqueço. Essa é a mais implacável de todas as razões e contra ela pouco há a fazer. Talvez tomando Memofante. Forte.

    Impossível escolher a quem confiar o meu voto quando nenhuma das candidaturas apresentadas me inspira confiança. Uma ou outra faz-me despertar uma confiançazinha pequenina, um broto, uma ténue sensação de "je ne sais quoi" mas nenhuma o suficiente para que, no dia da verdade, cruze dois traços no quadradinho que lhe corresponda. Impossível. Resta o voto em branco. Abstenção não é opção.

    Impossível ficar indiferente ao genocídio do povo palestino. Indignação e, por vezes, raiva irrompem em mim de forma mais ou menos descontrolada perante as notícias que vão chegando. Mas todo o meu sentimentário resulta estéril. Qualquer atitude, qualquer discurso, qualquer coisa que pretenda fazer a propósito disto não representa absolutamente nada em termos práticos. Não aquece nem arrefece. E fico a pensar se a minha indignação teria o mesmo tom e semelhante intensidade caso estivesse deveras envolvido no processo, caso tivesse outra proximidade espacial e emocional à Palestina e ao seu povo. Impossível saber.

     

quarta-feira, julho 23, 2025

Vai-se a ver...

     É de ficar arrepiado, pele de galinha desde a nuca ao calcanhar. A coisa não é para menos, deixa uma pessoa indignada. Pessoalmente acho mal. Acho muito mal, mesmo. Não estou disponível para pactuar com semelhante bandalheira! Benza-me Deus, guarde-me Nossa Senhora.

    Sim, porque ontem não foram capazes de me elucidar. Antes pelo contrário! Dei-me ao trabalho de ouvir os gajos e eles falaram, falaram, falaram e no fim, nicles batatóides! Fiquei na mesma como a lesma. Valeu a pena ouvir o debate? Claro que não, foi pura perda de tempo. E tempo é coisa que não devemos desperdiçar pois nunca se sabe quando batemos a caçoleta, indo desta pra melhor. 

    A meu ver estão todos vendidos se bem que uns receberão de um lado e os outros receberão do outro, como é mais ou menos evidente. Não acredito que sejam todos pagos pelo mesmo patrão... ou então... vai na volta... afinal de contas o dinheiro é todo igual. Igualzinho mesmo!

terça-feira, julho 22, 2025

Calado como um rato

     Está tudo excitado com a retirada da sexualidade do programa da disciplina de Cidadania. Uns porque concordam e não se cansam de mostrar o quanto se sentem libertados por esta decisão. Até arfam de contentamento. Outros porque discordam em absoluto e já imaginam os putos descontrolados na pinocada sem preservativo nem tino. Um reboliço.

    Cá pra mim é conversa de surdos, como vem sendo costume. Não há debate, não há discussão. Há apenas gritaria e escavação de trincheiras, a guerra instala-se. De um lado e do outro atira-se tudo o que se tem à mão tentando causar qualquer tipo de dano que seja ao inimigo jurado. No fim do dia está tudo mais confuso, mais sujo, mais esburacado. Não há esperança.

    Pessoalmente sinto uma profunda angústia. Tenho a minha opinião mas recuso-me a partilhá-la no meio de semelhante confusão. Qualquer coisa que possa dizer será imediatamente alvo de uma etiqueta e, ai de mim, metralhado por um lado ou pelo outro (ou até pelos dois) caso não esteja de acordo com as boas práticas e os pensamentos decentes. Portanto, calo-me.

sábado, julho 19, 2025

Ai, solidão!

     A solidão parece ser o pior dos vírus, eventualmente de todos o mais mortal. Depois de instalada não precisa de muito tempo para se impor e prosperar. Alojada nos nossos corações, nos nossos cérebros ou, nos casos mais complicados, alojada nas nossas almas, a solidão faz de conta que não está lá, finge não saber quem somos. E vai ficando, vai crescendo e engordando alimentando-se de qualquer coisa que nos faça falta.

    Há diferentes tipos de solidão, diversas estirpes; umas mais encarniçadas outras menos. Umas assustadoras e repelentes outras quase fofinhas. Seja qual for o aspecto ou o grau de infecciosidade, a solidão não se recomenda nem ao gato da vizinha.

            

sexta-feira, julho 18, 2025

É assim mesmo!

     E é assim mesmo! Olhamos para os outros esperando ver-nos a nós próprios, imaginamos o mundo comparando-o com a nossa casa. Como nada se ajusta ficamos desgostosos e decepcionados. O mundo é uma merda e quanto mais conheço as pessoas mais gosto do meu cão, cenas desse calibre. É pra rir.

    Não é pêra doce aguentar o barco, suportar tanta contrariedade. Para o fazer precisamos de nos equipar com instrumentos adequados: religião, psicanálise, ideologia, arte, tudo serve para tentarmos aguentar a barcaça à tona de água, tudo ajuda a cavalgar as ondas embora o risco de naufrágio esteja sempre ali, logo após a linha do horizonte.

    A vantagem das analogias marítimas é que o horizonte vai sempre à nossa frente, é uma linha que se afasta. Está próximo, está longe?  De cada vez que para ele dirigimos o destino do barco que somos só o vemos a escapulir-se uma e outra vez até se transformar numa linha de costa. E depois atracamos e é assim mesmo.  

quinta-feira, julho 17, 2025

Candidato

     Estava-lhe entalada a vontade na garganta. Queria dizer, falar, expor, narrar a sua história pessoal era um tesouro a merecer partilha pública. Tudo dentro dele estava em alvoroço, a urgência sufocava-o. Suster a torrente discursiva era particularmente doloroso mas a ocasião assim o exigia. Não era momento adequado a dar bandeira.

    Contorceu-se um pouco na cadeira, ardia-lhe o olho do cu.

quarta-feira, julho 16, 2025

Animais de criação

     Há quem se veja a si próprio como eterna e constante vítima do "sistema". Esses encaram tal condição como sendo algo heróico, são mártires da pureza dos ideais que os animam. Se, porventura, os seus ideais vierem um dia a triunfar, os nossos candidatos ao paraíso dos deserdados ficarão órfãos da sua razão de existir. Isso é trágico.

    Há também aqueles que são, de facto, vítimas eternas e constantes do sistema mas esses, não sei bem, talvez não coloquem a questão nestes termos além de todos estarmos conscientes de que nunca, mas mesmo nunca, virão a ter direito à mais insignificante migalha de justiça. 

    Entre uns e outros está muita boa gente. Gente farta de aturar as lamentações dos justos eternamente injustiçados e que sente repulsa pelas verdadeiras vítimas. Gente na qual me incluo. Uns têm mais que fazer do que dar atenção a este tipo de questões, estão demasiado ocupados a trabalhar para poderem consumir. Outros vivem em mundos mais ou menos abstractos, não têm espaço mental para oferecer a este mundo. Outros ainda têm ódio aos primeiros e desprezam os segundos. Etc. É muita boa gente, são muitas condições diferenciadas.

    O que resta disto tudo? Um pouco de amor requentado, bastante ódio, muita estupidez e oceanos de ignorância. É a nossa espécie em todo o seu esplendor, criação divina. 

terça-feira, julho 15, 2025

Viver o momento

     Fazer citações é caminho estreito e repleto de pedregulhos, daqueles que não dão para construir castelos. Ou bem que sabemos do que estamos a falar ou melhor seria manter a boquinha trancada a sete-chaves. Mas as coisas não se passam bem assim.

    No mundo ideal, citar alguém implica recolher e acrescentar dados relacionados com a proveniência da coisa o que implica, pelo menos, um "onde" e um "quem", eventualmente um "quando", o que se aconselha vivamente. É, portanto, tarefa que impõe algum rigor e boa-fé da parte de quem cita.

    No mundo real é a confusão que se sabe. As citações chovem como sapos em narrativa bíblica. As vindas sabe-se lá de onde misturadas com as que se sabe bem de onde vêm, tudo vale a mesma coisa, não há problema de maior. A ideia original pode estar já um bocadinho distorcida, por vezes completamente adulterada mas, pronto, não vamos chatear-nos por isso. O que interessa é passar a mensagem.

    Uma citação errada pode substituir a original e correcta sem grande problema nem esforço. Basta que seja repetida as vezes suficientes para se tornar mais verdadeira que a verdade. Alguém se incomoda com isso? Não vale a pena, desde que a mensagem tenha passado estará tudo bem.

    Quem diz uma citação diz um facto. A confirmação é, muitas vezes, puro aborrecimento. Se a coisa for suficientemente sumarenta podemos ficar pela primeira forma, mesmo que não seja propriamente verdade: desfrutar do momento é o grande objectivo dos seres vivos. Seja ele qual for (o facto, o ser vivo, ambos ou vice-versa). 

segunda-feira, julho 14, 2025

Desistir é estúpido

     Hesitar perante a indefinição de uma obra é algo perfeitamente normal. Ainda não esgotámos todos os recursos técnicos, confiamos na possibilidade de que um ou outro rasgo criativo possa trazer novas orientações durante a realização da coisa mas a tentação de desistir instala-se. Acontece muitas vezes.

    Nessas ocasiões devemos invocar a nossa capacidade de resistir à tentação, insistir na continuação do processo. Há sempre uma fase complicada quando estamos a fazer um desenho ou uma pintura (imagino que possa acontecer com todos os actos criativos), uma fase em que as coisas estão feias, desajeitadas quando, na verdade, estão apenas incompletas. É como na história do Patinho Feio que, afinal, era um cisne. Ganda cena!

    Agora já não desisto quando penso nisso e sou assolado pela tentação de o fazer. A experiência mostrou-me que desistir antes do fim pode privar-me de momentos interessantes. Desistir é estúpido.

domingo, julho 13, 2025

Ser ou não ser (inumano)

     Por vezes penso que a condição de Ser Humano não é automática entre os indivíduos da nossa espécie. Uns serão mais humanos do que outros. E, quando penso nisto, não sou capaz de aceitar a coisa sem lhe resistir. 

    Custa-me a crer que seja como no Triunfo dos Porcos. Mas parece-me inquestionável que há gente genuinamente má e o seu oposto. Parece-me também que os maus estão a ganhar a batalha contra os bons. Espero que seja apenas um desequilíbrio momentâneo.

    Os maus estão a aproveitar muito mais e muito melhor os equipamentos de inteligência artificial a seu favor. Os bons ainda se questionam e debatem com problemas e dilemas éticos. Bondade é fraqueza e lentidão. Os maus são mais decididos e actuam com outra objectividade. Para eles, ser um ciborgue não constitui problema de maior desde que isso os ajude a pulverizar os inimigos. Estamos fodidos.

sábado, julho 12, 2025

Coachar

     Aquelas pessoas cheias a deitar por fora de certezas relacionadas com questões comportamentais enojam-me um bocadinho. Não digo que sejam como cagalhões no meio da sala mas são como respingo de diarreia na lapela de um doutor. Não sei onde vão buscar aqueles números exactos nem como mantêm uma cara de pau à prova de tudo e mais alguma coisa enquanto vão debitando afirmações entre o fofinho e o "ai-ai-ainda-levas-tau-tau", normalmente sem contraditório. São como pequenos deuses ambiciosos, pequenos deuses que em breve irão fundar novos infernos.

    Normalmente ouço esses seres vivos a falar brasileiro (ou português, ou português do Brasil, para mim é tudo exactamente a mesma coisa) com vozes bem colocadas, com dicção perfeita, como se o discurso tivesse sido preparado ao milímetro, construído ao segundo, como se tudo, discurso e discursante, seja fruto de um plano minuciosamente elaborado. Se for um tuga a perorar, a coisa não soa tão bem, soa a falso. Quando é um brasileiro a encher-nos a cabeça de merda está tudo certo: adoramos!

    São os mental coaches, aqueles que irão tapar com amor e compreensão todas as fendas que a tua alma for abrindo. 

sexta-feira, julho 11, 2025

À beira da estupidez

     Chove inesperadamente. O calor mantém-se, tal como os calções, as camisas de mangas cavadas, sandálias e chinelos, a parafernália habitual dos dias em que a canícula nos morde e abocanha do nascer ao pôr-do-sol e mesmo durante a noite. Só que, esta manhã, surgiu uma chuva fresca e miudinha, batida a vento que nos atinge como se Deus fosse um acupunctor nervoso e indeciso, tentando picar-nos o corpo na totalidade, por via das dúvidas. 

    Não sei se por causa da chuva, sinto-me enfastiado. Pensando um bocadinho, por que razão a chuva haveria de me enfastiar? É um pensamento um bocado estúpido. Fico a matutar na coisa.

    Será que tenho pensamentos estúpidos a toda a hora ou, pelo menos, tenho-os com frequência e não me apercebo de tanta estupidez apenas porque não reparo? Se parar para pensar a cada passo descobrirei uma quantidade de pensamentos estúpidos e imbecis muito para lá do que imaginaria aceitável? Ai Jesus!

    O melhor será parar de pensar. Pausa.

quinta-feira, julho 10, 2025

O dia de hoje

     Antecipar um dia em que podemos fazer tudo aquilo que podemos imaginar e podemos ponderar dadas as circunstâncias não é a tarefa mais simples nem é evidente. O meu cérebro desorganiza-se com facilidade; aliás, para se desorganizar seria necessário que o meu cérebro estivesse, de alguma forma, organizado, o que raramente acontece. A pontuação da frase anterior deixou-me a pensar e encheu-me de dúvidas mas parece-me ter chegado a uma conclusão aceitável.

    Já me desviava do que pretendia dizer. Lá está! É a tal tendência para uma desorganização constante e persistente. De que falava eu? Ah, sim, já me lembro (li a primeira frase deste post). Poder fazer aquilo que seja capaz de imaginar...

    Desenhar? Recortar coisinhas e fazer colagens? Ler? Ouvir música durante as tarefas mais criativas? Ir dar uma volta, apanhar ar no trombil? Dormir uma sesta? Ir ao velório? As possibilidades são variadas e eventualmente combinatórias. Posso estabelecer um plano, elaborar uma lista, ordenar, organizar, prever, antever, posso fazer tanta coisa, caraças! Por isso mesmo opto por não fazer nada. Ou melhor, por isso mesmo deixo que seja o dia a decidir por mim. Decerto tomará melhores opções.

    Não me sinto capaz de fazer as coisas "bem feitas". 

quarta-feira, julho 09, 2025

Prévio conceito

     Falava sozinha rua acima, como se mastigasse palavras, como se ruminasse ideias esquecidas. O aspecto de "maluca como o caraças" ninguém lho tirava. Lá vinha ela. Não me pareceu desleixada, quando nos cruzámos não persistiu na atmosfera nenhum fedor particular, era aquela cena, aquela ladainha a martelar, juntamente com os passos sublinhados a salto alto na calçada. Na verdade nada me garantia que se tratasse de uma maluca. Nada, além do meu preconceito.

    O preconceito é uma espinha que não conseguimos desencravar da garganta, é uma pedra no sapato que não descalçamos nem por nada, é um fantasma hediondo a assombrar-nos a mioleira e que não conseguimos espantar nem à força de mil "cabrão" nem dez mil "filho-da-puta". O preconceito é mesmo fodido.

    A última esperança reside na nossa capacidade de percebermos o preconceito que nos infecta. Não nos livramos dele mas saber que nos desorienta, estarmos conscientes de que o trazemos dentro de nós, é coisa que transporta consigo algum alívio. 

terça-feira, julho 08, 2025

Tarefas

     Não poder falar verdade é uma tortura para o espírito. Tentar encontrar formas sinuosas de afirmar coisas simples é trabalho que dispenso, obrigadinho. Se a tarefa não for exclusivamente imaginativa então que seja o mais objectiva possível.

    Assistir ao último suspiro de uma pessoa não é tarefa fácil. É como se um pedaço de nós fosse também embora. E depois há o odor, o estranho odor que a morte desprende ao passar (quanto tempo ficará ela ali, junto ao cadáver?). A flacidez dos tecidos cutâneos aliada ao frio que sentimos nas mãos enquanto tentamos reanimar o corpo ali estendido.

    Agora não tenho vontade de fazer nada. 

segunda-feira, julho 07, 2025

A promessa

     E pronto, bastou falar nisso para que não acontecesse logo no dia seguinte. terei um espírito de contradição tão forte, tão enraizado, que me contradigo a mim próprio? Mais estranho ainda, esse espírito de contradição leva-me a estabelecer compromissos comigo próprio com o intuito inconfessado de apenas os quebrar? Fecho contratos comigo próprio com o único objectivo de os não cumprir? 

    Seja como for, falhei apenas um dia. Ontem não escrevi um post no 100 Cabeças quebrando a meia promessa que fiz anteontem. Não é grave. É apenas motivo de reflexão. Talvez não haja conclusões a tirar. Talvez a coisa se resolva escrevendo um post todos os dias até ao final do mês (risinho desdenhoso).

sábado, julho 05, 2025

Morremo-nos

     Eu sei que não vou ser capaz de escrever um post todos os dias deste mês mas, não sei se reparaste, estou a tentar. Porquê? Por nada, lembrei-me agora dessa possibilidade. Ter assunto não é complicado uma vez que sou muito bem capaz de escrever umas linhas valentes sem dizer absolutamente nada. Pelo menos, sem dizer alguma coisa que tenha algum interesse.

    Hoje soube da morte de mais um homem que foi um grande amigo meu. Nos últimos anos tinha-me cruzado com ele apenas um par de vezes. Abraços, festinhas e, até, troca de beijos. Amigo é amigo, mesmo que não saibamos nada dele, mesmo que estejamos anos sem nos vermos. Ser amigo de alguém é um bocado como ser um cão. 

    Morreu mais esse amigo e eu percebi que "vamos morrendo". Eu ainda estou vivo, muitos de "nós" ainda vivem, mas o número dos que já morreram não pára de aumentar (coisa mais óbvia...) fazendo com que a "nossa" presença neste mundo vá perdendo nitidez de contorno, se desvaneça.

    Sinto uma súbita vontade de sublinhar a minha existência. Mas, isso faz falta a alguém, a minha existência marcada a traço grosso nas paredes deste mundo? Parece-me ser apenas um reflexo da angústia que me provoca a percepção de que o tempo que me resta é muito menos do que o tempo que já vivi.

    Será isto, a percepção da caducidade, o que faz com que os ditadores fiquem bandidos cada vez mais ásperos à medida que envelhecem e percebem que a Eternidade ainda não será por eles alcançada? Será esta necessidade ditada por uma certa inveja em relação às vidas mais jovens? Fico inquieto. Tinha-me por melhor pessoa.

sexta-feira, julho 04, 2025

Nem sei que te diga

     Um tipo acorda de manhã a sonhar com o dia que aí vem e com dias passados, um gajo acorda a sonhar. Um gajo sente-se bem. Imagina-se especial. Acordar, sonhar, sentir, imaginar, suave sequência verbal. Prometedora.

     Promessas feitas por encomenda abstracta dificilmente poderão realizar-se de forma a contentar quem delas nada esperava mas que, ao imaginá-las, acreditou virem a ser possíveis para além daquilo que se atrevera a desejar. Protejam-me dos meus desejos. Protejam-me daquilo que eu quero. Qualquer coisa para traduzir a máxima infinita: Protect me from what I want. Espantosa síntese da condição humana estabelecida por Jenny Holzer.

     Jenny, reconheço a magnificência do que afirmaste mas não sei se te agradeça.

quinta-feira, julho 03, 2025

Somos todos irmãos

     Somos todos irmãos. Esta conversa é norma entre os católicos. Quando nos dizem que somos todos irmãos pretendem sugerir a possibilidade de sermos todos amigos uns dos outros? Basta ler uma mão-cheia de páginas do Antigo Testamento para darmos de caras com a história miserável de Caim e Abel. E não precisamos de nos esforçar por aí além para encontrarmos situações em que irmãos mentem uns aos outros, situações em que se agridem, se abandonam, se ignoram, se roubam, todo o catálogo de tramóia e vigarice aberto e exposto aos nossos olhos.

    Somos todos irmãos. Conversa vazia e carente de significado. Veja-se Gaza, olhe-se para Israel, pense-se no liberalismo económico ou na exploração de recursos naturais. Somos todos irmãos mas uns de nós são mais irmãos que os outros? Deve ser isso. A coisa, vista assim, começa a fazer algum sentido.

    "Somos todos irmãos" é uma frase feita que se completa com outra que também não precisamos de inventar: "uns são filhos e outros são enteados". Está quase tudo dito. 

quarta-feira, julho 02, 2025

O mundo nunca foi o que era

     Acontece de cada vez que dou por terminado um desenho. É uma sucessão de ideias e sentimentos que desfila perante mim, como um comboio a partir do cais de embarque, a dirigir-se lentamente para fora da estação. Não sei se lhe acene se corra atrás dele na tentativa de saltar lá para dentro.

    Já o disse e repeti várias vezes em alguns dos dois mil seiscentos e tal posts deste blogue: um desenho, uma pintura, uma obra de arte, nunca estão verdadeiramente concluídos, são deixados em estado de suspensão pelo autor no momento em que este considera ter-se empenhado suficientemente no trabalho de dar forma ao objecto.

    Sei que isto é verdade inquestionável mas sei também que custa um bocadinho deixar a coisa entregue a si própria e a quem a possa ver a partir daqui, a partir do tempo em que passa a ser objecto de exposição e não objecto de criação.

    Tenho tantos desenhos que nunca foram vistos por ninguém, além de mim. Tantos desenhos (centenas, pelo menos) que têm um tempo de exposição exclusivamente virtual, vistos apenas através de ecrãs. E depois?

    Ainda esta manhã estive a pensar sobre a razão que me leva a desenhar e qual a utilidade dos desenhos que vou fazendo. Não obtive nem sombra de resposta. Entretanto concluí um desenho a que dei o título de Floresta Desencantada (o mundo nunca foi o que era).

terça-feira, julho 01, 2025

O monstro regressa

     Assistimos incrédulos ao ressuscitar do fundamentalismo cristão. É de sublinhar o papel arrasador desempenhado pelo cristianismo na destruição da sabedoria e do conhecimento logo que foi alcandorado aos lugares de governação no antigo Império Romano. 

    A História costuma sublinhar o papel dos mártires cristãos e obliterar em absoluto todos os que foram  martirizados em nome do Livro único e do cristianismo. Ainda hoje sentimos um tremor beatífico nos meios de comunicação ocidentais quando, lá para os orientes, uma igreja cristã é alvo de violência mas sobre a perseguição a filósofos e destruição de bibliotecas no passado longínquo e os ataques e ameaças a bibliotecas públicas na actualidade... népias ou quase nada.

    O cristianismo, na sua génese, foi uma onda de obscurantismo fundamentalista que varreu a Europa, o Próximo Oriente e o Norte de África, levando na enxurrada séculos de Saber e Conhecimento. Tudo em nome de Deus, da Salvação e da verdadeira Fé.

    O monstro pretende renascer, já começamos a ver-lhe um dedinho de fora. 

segunda-feira, junho 30, 2025

Impotência

     Repugnância. Sinto repugnância.

     Repugna-me  a falta de honestidade intelectual do mesmo modo modo que me repugna um monte de merda com moscas a esvoaçar em volta.

     Repugnam-me os sonsos que usam dois pesos e duas medidas fingindo  que é tudo a mesma coisa ou que não reparam ou que é assim a vida.

     Repugna-me  o uso imoderado da força. Mais me repugna quando é usada sobre os fracos ou sobre quem não tem a mínima possibilidade de se defender.

    Repugna-me a exibição da estupidez mascarada de grandeza. Repugna-me.

    Repugna-me o genocídio na mesma medida em que me repugna a falta de coragem para o condenar. 

    O que fazer com toda esta repugnância se mais logo irei jantar comodamente, se o meu maior problema são as elevadas temperaturas que tento combater com a ajuda de minha fiel ventoinha? O que fazer com toda esta repugnância, meu Deus, o que fazer?

    Talvez não dê para fazer nada ou, pelo menos, disso tenho a certeza, não dê para fazer grande coisa.  

sábado, junho 21, 2025

2 comentários (a artigos no Público online)

    Com o sofrimento dos outros posso eu bem. A globalização foi criada para facilitar as trocas comerciais e não para aplanar o mundo em termos culturais e políticos. A esperança é que os interesses monetários arrefeçam a vontade de matar, violar e saquear, instintos muito humanos, como sabemos. Aqueles que têm o azar de nascer em países que se alimentam da carne e da alma dos cidadãos que se amanhem. A vida é como Deus a concebeu e quem ganha são sempre os mesmos, como na quinta de Orwell. 

    Deus, pátria, autoridade. O deus é Jeová recauchutado como Jesus Cristo; a pátria é uma mistificação beatífica de uma chusma de heróis sanguinários (o mundo não é um mar de rosas) que se foram safando à força da bordoada que é como se traçam as fronteiras que definem as nações; a autoridade é a perspectiva fascista da coisa: ódio, violência e repressão de tudo o que não vai conforme os ditames do chefe. Quem não vê isto é porque está a dormir e precisa de ser acordado. 

sexta-feira, junho 20, 2025

Comunicação

     Há poucos livros de Stanislaw Lem editados em Portugal. Sendo que um deles é um dos livros da minha vida: Solaris. Já devo ter escrito alguma coisa sobre essa obra-prima (a opinião está longe de ser minha) algures por aí, no 100 Cabeças. Escrever este post foi um impulso que senti após ter terminado a leitura do 2º conto de "A máscara e outros contos", editado em Maio deste ano pela Antígona. O título desse conto é "O rato do labirinto" e foi escrito em 1956.

    E senti o impulso de escrever estas frases por ter encontrado aqui uma situação narrativa que me fascinou em Solaris; as personagens vêem-se confrontadas com o surgimento inexplicável de duplos. Não vou estar para aqui a perorar sobre o alcance filosófico da coisa. Surgiu-me a ideia de que este "rato" possa ser a semente de Solaris. A ideia de que estabelecer contacto com algo que nos é absolutamente estranho possa gerar situações delirantes parece-me absolutamente lógica.

    Não sei se alguém, em algum laboratório bafiento, algures nas caves de um departamento científico esquecido nas estepes russas, tenta estabelecer contacto com um grupo de amibas. Partindo do princípio que tal experiência está a acontecer, sonho. 

sábado, junho 14, 2025

Exactamente aqui

     Este mundo deprime-me talvez até mais do que a perspectiva de vir um dia (mais cedo que tarde) a mudar a minha morada estabelecendo-me no outro. No outro mundo. Não, não estou a falar do continente chamado "amaricano", estou mesmo a falar do dito Além, para lá do Estige, não sei se estás a visualizar. Pronto, ok, simplificando: o mundo dos mortos... "I see dead people", esse tipo de coisas. Dizia que este mundo me deprime talvez mesmo mais que essoutro. 

    Não tendo cão sinto-me desabilitado a parafrasear aquele gajo (não me lembro bem a quem me refiro) que elogiava o canito ao mesmo tempo que cagava um pouco nos Homens, assim, com "H" grande querendo referir-se à Humanidade. Isto de tomar a Humanidade pelos Homens é uma cena bué machista ou patriarcal ou o caralho (nestas circunstâncias não fica mal abusar da virilidade lexical) e deixa o universo feminino à beira da contracção. E com razões para barafustar, sejamos justos.

    Enfim, perco-me, como é meu hábito, e tenho de meter travões, parar, reler e perceber onde pretendia chegar quando comecei a escrever este texto. Reflicto um pouco e concluo que pretendia chegar aqui. Exactamente aqui. 

quarta-feira, junho 04, 2025

Desengano

     Já não tenho a mínima dúvida, estamos a regredir a olhos vistos. Regredimos individual e colectivamente. Vejo muitos jovens penteadinhos, dos que raspam o trombil com lâminas de barbear para puxar a penugem, que começam a assemelhar-se a chimpanzés - regredimos.

    Fala-se em ideologias de extrema-direita mas duvido que o vocábulo seja adequado para descrever o amontoado de incongruências patéticas que por aí vão brotando, verdadeiras ervas-daninhas. Aquilo não são sistemas de ideias, aquilo não podem ser considerados valores, aquilo não orienta uma maneira de estar, antes pelo contrário, aquilo desorienta o mais pintado. 

    Quando o ódio é a nossa razão de existir, quando o que nos move é estar contra: contra o outro, contra o mundo, contra o bem e contra o mal, quando não somos capazes de encontrar dentro de nós uma semente de esperança, um vislumbre de felicidade por muito distante que seja, quando somos negativos do nascer ao pôr do sol, quando não somos capazes de ser a favor de nada, incapazes de imaginar construir, quando temos prazer na proibição, no encarceramento, no sofrimento alheio, então temos o caldo entornado.

    Muitas vezes pensei que a qualidade de uma sociedade se mede pela forma como trata as minorias. Esta sociedade é uma desilusão infinita.

    Muitas vezes pensei que a Humanidade vive em constante evolução; afinal somos amibas que se transformaram em macacos que aprenderam a falar. Também aqui me enganei redondamente. Não fui capaz de perceber o que muitos antes de mim escreveram e pensaram e voltaram a escrever. Estamos convencidos de que somos superiores aos nossos antepassados só porque temos telemóveis e computadores quânticos. Que tolice, pobres imbecis.

    Inventámos Deus na esperança de conseguirmos um modelo ideal que orientasse a nossa caminhada futuro adentro. O resultado? É a merda que se vê.

domingo, junho 01, 2025

Amor eterno

 


    Aqui há uns tempos uma onda de indignação varreu praias e montanhas, varreu vilas e cidades, a Nação Lusitana levantava a voz contra um designer que tivera o atrevimento de apagar as quinas (e outras minudências) do símbolo do Governo de Portugal que viria a ser adoptado e depois desadoptado devido à polémica barulheira. O dinheiro que se gastou naquilo tudo!
 
    Entretanto reparei no logotipo da Secretaria Geral da Administração Interna, Conferia gravitas e alguma beleza a um daqueles magníficos cartazes que apelavam ao voto nas recentes eleições legislativas (dinheiro bem aplicado). Senti uma inexplicável urgência em beber uma bujeca. Uma Sagres, logo eu que sou adepto mais ou menos ferrenho da Super Bock. 
     
    O que se passava comigo? Fiquei preocupado. Depois compreendi, era tudo uma questão de patriotismo e amor à Nossa História, a força das 5 Quinas a espetar-se-me no coração, a dilacerar-me a alma: Nação Valente e beberronice, Portugal é macho! Ainda assim matei a sede com uma Super Bock.

quinta-feira, maio 29, 2025

O pequeno monstro

     "Estes malucos deixam-me nervoso. Se não fosse o Artur corria esta porcaria toda ao pontapé daqui para fora." Entrara na sala de espera com cara de poucos amigos. Era um tipo absolutamente vulgar, sem nada que o distinguisse dos móveis, das paredes ou dos outros seres vivos. Não fosse a irritação estampada no rosto e ninguém se daria ao trabalho de sequer olhar para ele. "Artur!" Disse, de modo a que todos os presentes ouvissem bem o som da sua voz. O cão deu um pinote como se tivesse sentido uma descarga eléctrica e pulou para o outro lado da sala. "Sim?" respondeu Artur, descravando os dentes do tampo da mesa.

    "Não mordas a merda da mesa, caraças! Estou fartinho de te dizer que não faças isso, caramba!" O miúdo olhou-o vagamente e passou as costas da mão pelo nariz ranhoso. O cão foi encostar-se à parede numa estranha posição em que deixava as duas patas  do seu lado esquerdo suspensas no ar. Não ladrou, não ganiu, todo ele era silêncio. "Este cão também precisa de consultar o Doutor Cabeças." Pensou o homem enquanto limpava o nariz de Artur com um lenço que retirou do bolso do casaco. "Dá cá a mão." O miúdo obedeceu. "A outra". O miúdo estendeu a mão repleta de ranho na direcção do homem que a limpou com toda a paciência.

    Olhou por sobre o ombro. Aquele que estava ali em pé a contorcer-se como uma enguia era novo, nunca o tinha visto no consultório. A mulher-árvore era cliente assídua, pacífica, mas aquele gajo tinha qualquer coisa de inquietante. Instintivamente passou o braço esquerdo sobre os ombros de Artur. O rapaz sentiu-se confortado. 

    "Artur Reboredo!" a assistente do Doutor fez ecoar a sua voz de cana rachada. O homem levantou-se e, segurando Artur pela mão, avançou em passos decididos. Florbela, a assistente do Doutor Cabeças, deixou-os passar à sua frente. Segurava um bloco de notas comprido na mão direita e deu meia volta dramática, atirando a cabeça para trás num gesto muito caracterítico, seguindo de imediato o homem e o rapazola. "Sou poderosa" pensou, e fez soar com vigor os saltos altos dos sapatos no soalho flutuante marcando um ritmo marcial que conferiu alguma dignidade à banalidade desta cena.

    Artur transportava o monstrito de plástico bem apertado entre os dedos da sua mão esquerda.

quarta-feira, maio 28, 2025

Extraordinarice

     É assim mesmo que as coisas se passam. Temos de esgueirar-nos numa floresta de acontecimentos banais, sempre na esperança de que algo notável possa acontecer antes do final de cada dia. Convém sublinhar que muitos de nós são seres de uma fragilidade absoluta, seres construídos sobre personalidades de cristal, personalidades incapazes de suportar os tons mais agudos, sempre em risco de rachar, de quebrar, de voar em todas as direcções, estilhaçadas.

    Como perceber a excepcionalidade de um acontecimento? Sim, a questão é de suma importância apesar de nos parecer um bocado tola: então não se percebe logo quando um acontecimento é extraordinário!? Não. Nem sempre.

    Ainda hoje vi duas pombas, uma fêmea e uma macho, jogando o jogo da Primavera, e vi um senhora muito forte que se deslocava apoiada numa bengala com uma espécie de casaco comprido que esvoaçava batido pela brisa, uma figura notável, e vi um cão preto a ser amarrado à porta do supermercado e depois a latir timidamente, chamando a dona que havia ido às compras, enquanto olhava em volta a tentar perceber exactamente o que se passava. Vi todas estas coisas que me pareceram extraordinárias apesar de aparentemente ordinárias.

    Depois de escrever o parágrafo anterior fica a dançar-me na cabeça uma pergunta que poderá parecer uma pergunta de merda: haverá alguma coisa que não seja extraordinária?

terça-feira, maio 27, 2025

Monte de merda com dois olhos

     Ah, rai's parta esta merda, caralhos fodam este filho da puta! Como é possível haver ainda gente que assume um cargo público e que, uma vez na chefia, não respeita os compromissos assumidos pelo antecessor (ou antecessora)!? Como é possível haver verdadeiros sacos de merda convencidos de que são a coisa mais bela que por aí anda e, como tal, coisa merecedora de todos os miminhos e de todos os perdões que as suas falcatruas venham a necessitar para que não pareçam a bosta que são? Ah, eu sou eu e não tenho nada que respeitar compromissos assumidos por alguém que, ainda por cima, era uma grande pirosa! Agora o mundo é iluminado pela minha extraordinária perspicácia e indiscutível bom gosto.

    Olho para aquela porcaria e penso: "é bom que as coisas não se estraguem." Sim, porque se as coisas acabarem por se estragar, então estará tudo fodido. E estará tudo fodido com justa causa.

domingo, maio 25, 2025

Árvore Imunalógica (a coisa feita coisa)


Árvore Imunalógica, 

acrílico sobre papel de aguarela colado em cartão, 

280X180cm nos eixos maiores

sexta-feira, maio 23, 2025

O pinheiro solitário

     O miúdo deve ter algum problema. Não é normal, muito menos é natural, a forma com tem os dentes ferrados no tampo da mesa. Finjo não reparar e continuo fixa na parede. O Doutor Cabeças aconselha-me bem, finjo ser uma árvore. Sei que dou nas vistas. Não serei tão estranha como aquele puto (fogo, o gajo é mesmo esquisito!) mas dou muito nas vistas, assim, parada, a imaginar-me um pinheiro. Hoje sou um pinheiro.

    Ontem fui outra árvore mas, como as árvores têm muito fraca memória, não consigo recordar-me que árvore fui ontem. Recordar-me de ter sido uma árvore já não é nada mau. Faço progressos e quero informar o Doutor. Estou em pulgas, impaciente como um noivo no dia do casamento. Nunca mais me chamam. Que tortura!

    Aquele gajo que está ali, em pé, a olhar para tudo como se nunca tivesse visto nada na vida, a rodar o pescoço como se fosse uma galinha, aquele gajo é também uma personagem improvável. Veste-se como... não consigo situar a farpela, percebo que é uma coisa absolutamente anacrónica, já vi aquilo milhares de vezes mas não consigo lembrar-me... um poeta, um príncipe, um cavaleiro, um bandido, um assassino? Quem é que se vestia com uma gola daquelas? Caramba, tenho o nome aqui debaixo da língua mas não consigo dizê-lo. Desisto. Não consigo lembrar-me.

    Vá lá, tenho de acalmar-me. O cão está tão sossegado! Gostava de ter a postura deste cão. Mas hoje sou um pinheiro e um pinheiro não se preocupa com este tipo de coisas.

quinta-feira, maio 22, 2025

Artur

     A sala de espera tem um aspecto entre o austero e o histérico. Um sofá verde de napa com 4 lugares, dois maples a condizer, uma mesinha baixa com tampo de vidro onde se amontoa uma pequena pilha de revistas antigas que já ninguém lê. Algumas pequenas gravuras emolduradas tentam ornamentar as paredes sem grande sucesso: uma feira em plano americano tocando violino numa pose muitíssimo contra-reforma, com um halo e tudo, como se fosse iluminada por Deus ou por coisa que O valha; uma paisagem rural à maneira daquelas pinturas britânicas do século XVIII, com vacas; uma imitação de Vlaminck a berrar no meio de tudo aquilo, a dar o tal toque de histeria. 

    Imagino a aparência do médico; terá sido o Doutor Cabeças responsável pela decoração daquele espaço? Uma mulher despenteada e muito magra senta-se numa ponta do sofá; tem os olhos fixos num ponto indefinido situado algures entre a extremidade do seu longuíssimo nariz e a parede em frente. Um cão, aparentemente um rafeiro, descansa a seus pés com o focinho depositado na alcatifa vermelha que faz um belo contraste de complementares com o sofá e os maples. Os objectos já estão gastos, as cores um tanto esbatidas, mas têm a sua dignidade. A mulher não mexe um músculo que seja, nem sequer pestaneja.

    Sentado na alcatifa, com os dentes aferrados ao tampo da mesa, um miúdo dos seus três ou quatro anos parece hipnotizado por alguma fada invisível. Segura na mão um boneco de plástico, um pequeno monstro disforme, esquecido e sem graça. Um fio de baba escorre-lhe de um dos cantos da boca. O nariz rebrilha de ranho. Um homem entra na sala vindo de uma porta que agora se fecha e na qual eu ainda não tinha reparado. "Artur", diz ele e o cão levanta-se de um salto e o miúdo responde, absorto "sim?"

quarta-feira, maio 21, 2025

Um gajo nem as sonha

     Um gajo tende a florear o passado quando trata de ensiná-lo às criancinhas. A ideia é não traumatizar demasiado a petizada, manter as coisas dentro de fronteiras fofinhas e, se possível, traçadas a tinta cor-de-rosa. 

    Um gajo esquece-se que é adulto e que as imagens que cria e transmite a um puto não lhe caem no entendimento com contornos idênticos aos que está a esboçar na sua cabeça emissora. Então temos soldados anjinhos a disparar cravos vermelhos com as suas metralhadoras deixando a pairar um fumozinho que é, na verdade, uma réstea de amor. 

    É uma história um bocado imbecil onde, normalmente, os maus não são sequer nomeados, como se a luta da Liga da Justiça fosse feita contra o vazio. Ainda aparece por ali uma pomba branca que não se percebe muito bem qual é o seu papel. Talvez esteja com fominha e haja migalhas para ela debicar.

    Um gajo conta e reconta histórias deste calibre aos putos, ano após ano. Os putos vão crescendo mas a história mantém os traços infantilóides absolutamente inalterados e os soldados já não são anjinhos, são uma espécie de personagens da Marvel Comics que vomitam cravos vermelhos sempre que uma pomba surge entre os prédios a esvoaçar de forma ameaçadora sobre uma massa informe e sanguinolenta a que se dá o nome de povo.

    Os putos crescem e um dia irão votar.

terça-feira, maio 13, 2025

Palestrante

     O palestrante deambulava para a esquerda e para a direita numa linha vagamente recta. Aqui e ali uma paragem, acolá uma suspensão no discurso, tudo razoavelmente dramático. Esboçou uma narrativa carregada com traços terroríficos. O gesto, o tom, o estilo, tudo para convocar um sentimento piedoso entre nós, na plateia. E a coisa funcionou. Os espectadores pareceram irmanados pela compreensão do sofrimento alheio. Tudo muito piedoso, tudo muito solidário em retrospectiva. Bastaria olhar os rostos comprimidos dos que escutavam o professor para perceber que se tratava de boa gente, que era tudo boa gente.

    Algo me incomodou a ponto de retirar o meu bloco do bolso para registar o que se segue: "muito evocamos os tormentos e pouco falamos de alegrias." 

    Voltei a guardar o bloco no bolso do casaco e continuei a seguir o passeio do professor à minha frente; direita, esquerda, parado, em andamento. No fim todos batemos palmas.

sexta-feira, maio 09, 2025

O bicho

     Cambaleava com toda a convicção. A noite quente, a solidão mas, sobretudo, o álcool. Sentiu uma angústia tão completa que teve de a expulsar na forma de um terrível grito, um som aterrador que feriu a noite e ofendeu a lua. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!! 

    Aquela coisa animalesca ecoou nas fachadas baixas dos prédios, percorreu as ruas todas perpendiculares umas às outras. Era um uivo a assombrar a cidade, monótona e previsível como um acampamento militar do tempo dos romanos. 

    Áúúúúúúú, áúúúúúúú!!!

    O mar batia na praia lá mais para diante. Passou o portão do cemitério, fechado àquela hora. Sentia-se triste mas tremendamente livre.

segunda-feira, maio 05, 2025

Árvore Imunalógica (3ª tentativa)

 

O sol, um rio, um chacal, um hipopótamo. Um homem de longa barba e farta cabeleira branca, uma floresta, uma montanha, uma tempestade, uma mulher, um pássaro, um fantasma, ouro, muito ouro, imenso ouro! Um espírito, o mar profundo, o azul do céu, um demónio, o fogo, a água, o ar, a terra, um nome, um nome proibido, um nome impossível de pronunciar; uma nota de banco, um olho desenhado no céu.

Outro homem, filho do primeiro: encarnação; um livro, um livro sagrado, “o” livro: encadernação.

Um som, um sopro, uma ausência. A lua. A tempestade.

Deus é um híbrido, resulta do cruzamento entre a carne humana e o espírito que a anima, o que faz Dele uma ideia.

Deus, seja Ele qual for, seja Ele o que for, Deus, sem nós, não existe. Quando o último Ser Humano perecer, de Deus não restará nem a memória!