domingo, outubro 30, 2022

Pequenas coisas

     Há uma estranha sensação a pairar no espaço livre entre o meu crânio e o seu cérebro. É assim como uma pequena mão, mas feita de papel, que não percebo se me afaga se me arranha o juízo. Não chega a ser áspera mas está longe de ser macia. Muito longe de ser macia.

    Há uma névoa incómoda que me impede de ver com clareza os contornos dos pensamentos que vou debitando. Como se pensar fosse algo como fazer "enter" numa caixa registadora: mais um pensamento, mais riqueza, mais valor acrescentado, tlim, tlim. Feito e registado. Próximo cliente!

    Há mil e uma pequenas coisas incómodas das quais não convém falar em voz alta para não aborrecer quem incomoda pois convém não incomodar ninguém. Posso bem suportar eu essa pequena cruz. Como um pequeno Cristo. Fraquíssimo imitador de coisa nenhuma.

sexta-feira, outubro 28, 2022

Coisa boa

     Não sei como funciona. Por vezes sinto uma coisa dentro de mim (talvez no cérebro ou no coração, talvez nas tripas) que faz com que as coisas que me rodeiam ganhem significados aumentados. Em certas ocasiões dura apenas um momento e logo se desvanece ou desliza rapidamente para algum lugar escondido. Noutras situações, a coisa ganha alguma consistência e permanece comigo tempo suficiente para que lhe perceba minimamente a forma e o conteúdo.

    Imagino que seja isto a criatividade. Se soubesse como funciona havia de registar a patente para a oferecer a quem quisesse dela usufruir. Talvez isso fosse uma coisa boa. O mundo está a precisar de coisas boas.

terça-feira, outubro 25, 2022

Heróis

     Todos temos os nossos heróis. Por esta ou aquela razão elegemos personagens às quais prestamos homenagem e com elas constituímos os nossos panteões pessoais e personalizados. É como se fôssemos gregos antigos ou romanos, como se fôssemos vikings ou adoradores de santinhos católicos. todos temos os nossos heróis e não somos muito receptivos a críticas que possam conspurcar as imagens que deles construímos; nem um bocadinho!

    Tenho a sensação de que a forma como vamos elegendo e elevando as ditas personagens tem sempre algo de religioso. Os nossos heróis são geralmente impolutos, capazes de feitos extraordinários, seja no campo das acções seja no campo do pensamento, há muitos lugares em diferentes prateleiras. São fortes de carácter e os sonhos que sonham são universais. Nós somos os discípulos dilectos, guardiões da chama que arde nos seus altares.

    Os nossos heróis tornam-nos cegos. Antes nos tornassem surdos e mudos.

segunda-feira, outubro 17, 2022

Castigos

     Padres pedófilos cometem crime ou pecado? Não sei o que lhes vai na cabeça mas se acreditam verdadeiramente em Iavé devem estar a tremer como varas verdes... ou não? Se o deus do Antigo Testamento for tão violento com os molestadores de criancinhas como é com os inimigos do povo de Israel, é caso para ter os tomates gelados. Mas se, pelo contrário, então está-se bem. "No problemo", citando Bart Simpson, esse filósofo dos tempos modernos.

    Molestar criancinhas é pecado? Há alguma passagem na Bíblia que condene especificamente os que metem as patas onde não devem e pior ainda? Não sei não. Talvez isso possa explicar a atitude laxista dos bispos e outros bosses da igreja católica em relação aos porcalhões que militam nas fileiras das suas tropas evangelizadoras. A coisa fica em casa, lá entre eles, uma família exclusivamente masculina que é como Iavé quer, acho eu. O que têm de meter o bedelho juízes, bófias e pedopsicólogos? 

    Talvez os abusadores de sacristia vão directamente para o inferno. Na volta é o castigo que lhes está reservado e a bispalhada não vê razão para que lhes seja aplicada outra pena, uns anos de prisão, por exemplo. Eles sabem que bater com os ossos na choça não se compara a ter um satanazim a enfiar-lhes uma forquilha na tromba por toda a Eternidade. Nem nada que se pareça.

quinta-feira, outubro 13, 2022

Ele

     O homem (seria um rapaz?) não tinha dentes e também parecia não ter o juízo todo. Deitado no banco, próximo de uma esplanada bem composta de cidadãos respeitáveis, pediu-me que lhe pagasse um abatanado. Dei-lhe 2€. Pediu-me que entrasse no café e lhe trouxesse o abatanado. Disse-lhe que não se esticasse.

    Apesar do calor, estava coberto com umas mantas sebosas. No chão espalhavam-se restos de coisas que talvez tivesse comido. Uma embalagem vazia, brilhante de gordura, dava guarida a uma pequena multidão de moscas nervosas. Ele perguntou-me "gostas de poesia?" ao que respondi qualquer coisa que nem eu próprio fui capaz de compreender. Ele disse-me "vou dizer-te um poema".

    Começou pelo título: "Eles". E foi por ali fora "blãblãblãbambalhã", foi por ali fora e, fitando-me nos olhos, declamou a coisa num longuíssimo e único fôlego apenas interrompido por muito curtas pausas para respirar. Não percebi uma única palavra. Ficou-me uma espécie de música, uma prece, qualquer coisa assim: "blãblãblãbambalhã"; seria um lamento?

    As moscas distraíam-me mas, fosse como fosse, nunca poderia perceber uma palavra do que ele disse além de "eles", única palavra nítida que irrompia aqui e ali, nos momentos das suas curtíssimas golfadas de ar. As gengivas rebrilhantes, sem um único dente à vista, a língua a formar os estranhos sons que eram, afinal, um poema, os lábios húmidos num sorriso que podia ser feito de urgência. A urgência de não perder o espectador ocasional da sua saga.

    Quando finalmente terminou deu uma risadinha mostrando a totalidade das gengivas. "Fica bem" disse-lhe eu. E fui embora com um misto de alívio e traição alojado no peito. Dali em diante tudo mudou de aspecto. A rua pareceu-me mais suja e mais triste, as pessoas pareceram-me apenas pessoas.

    Eu sabia que era aquele poema ("blãblãblãbambalhã") a provocar em mim um certo desconforto, um desajuste na pele que me cobria o corpo. Apanhei o barco e subi ruas de Lisboa mais ou menos atento, mais ou menos desorientado, até encontrar a Ana. Nesse momento as coisas voltaram a ser mais ou menos o que já tinham sido.

quarta-feira, outubro 12, 2022

Não sei se

     Não sei se também te acontece, tenho frequentemente a sensação de estar à beirinha de uma overdose de informação desinteressante. Ainda agora passeava indolentemente facebook abaixo, facebook acima, senti uma náusea súbita, uma espécie de vertigem ligeira, um tremor na retina. Sintomas seguros de overdose por ingestão exagerada de informação merdosa.

    Não sei se há algum remédio para a maleita descrita que não seja parar de consumir informação que não me faz falta absolutamente nenhuma. Parar com esta porcaria! Stop! Bem tento incentivar-me a largar o lixo mas não consigo. Estou viciado.

    Não sei se também te apercebes de que padeces deste vício. É como ser uma vaca a pastar nas encostas verdejantes das ilhas açorianas, como ser um verme a sorver o cadáver putrefacto de um abutre falecido no deserto. É um acto acrítico, uma compulsão desprezível, um je ne sais quoi pior que cagar deitado.

    Não sei o que pensas disso mas, para mim, é caso clínico.

terça-feira, outubro 11, 2022

Mistérios

     O mistério da vida, o mistério da vida... o que queremos nós dizer quando falamos do "mistério da vida"? Para que a vida fosse misteriosa seria necessário que pudéssemos explicá-la recorrendo a algo mais do que a biologia. Se nos cingirmos à ciência a vida não é assim tão misteriosa. O mistério surge quando pretendemos que a vida seja mais do que mera biologia, quando queremos acreditar que a nossa existência possa ser algo mais do que aquilo que intuímos que ela seja.

    E lá vem deus, lá vem a nossa missão (que é as mais das vezes cumprir aquilo que deus quer e deseja), lá vem a convicção de que somos superiores a outros bichos, que o mundo foi criado para a nossa espécie utilizar como lhe der na bolha, enfim, temos esta tendência para complicar o que é simples, tendência essa que poderá configurar algo entre a soberba e a estupidez pura e simples (soberba e estupidez coexistem na maior das calmas).

    A coisa fica mesmo feiosa quando o mistério da nossa vida choca com o mistério da vida de outro ser humano. Enquanto é com a bicharada, pronto, entre uma facada, um forno e uma patuscada a coisa resolve-se mais ou menos. Quando mete humanos de um lado e do outro do mistério temos o caldo entornado. Estou em crer que é aí que nasce outro mistério, o mistério da guerra.

sexta-feira, outubro 07, 2022

Uma certa indolência

     Não ler é um direito de todo o cidadão. Será a não leitura um direito simétrico ao da leitura? Se colocados na balança dos direitos (aquela que a Justiça segura como segurasse o bebé do Rei Salomão) terá o não ler um peso equivalente ao ler, mantendo os pratinhos equilibrados numa exacta correspondência?

    Enfim, o conhecimento livresco e o conhecimento interiorizado pela vivência do quotidiano equivalem-se? A academia e a rua (ou a selva, ou as ruínas de uma cidade esquecida) terão igual valor enquanto instituições que enquadram a aprendizagem da vida? 

    Poderia continuar a colocar questões atrás de questões num rosário com tendência para o interminável. Nem sequer estou interessado nas respostas, muito menos em eventuais polémicas que tais questões pudessem despoletar. Este post resulta apenas de uma certa indolência intelectual. Nada de muito grave, espero eu.

segunda-feira, outubro 03, 2022

O rapto

        Acontece. Ficara sozinha no salão a dançar uma valsa metida a tango. Todos haviam abandonado o baile. Ela imaginava-se a mais bela, a mais apetecível das criaturas. Pensava que não haveria quem lhe não fizesse a corte que era desejada que seria assim para sempre. Mas estava enganada. Já poucos lhe davam atenção e nenhum a amava (nunca a amara) de verdade. Talvez se tivesse apercebido disso ou talvez tenha apenas sentido uma grande vontade de apanhar o ar fresco que vinha soprado do mar. Saiu, pisou o areal e contemplou a lua magnífica que estendia uma passadeira prateada desde a linha do horizonte até aos seus pés, agora beijados pela espuma das ondas. Pensou que poucas imagens poderiam ser tão kitsch como aquela. Sorriu. Um touro branco emergia das águas e avançava decidido na sua direcção.

sábado, outubro 01, 2022

Um dia magnífico

     "Que dia magnífico!" nem o ruído da moto, lá em baixo na rua, foi capaz de incomodá-lo. "Que dia magnífico." Continuou a dizê-lo de si para si tentando convencer-se de que aquele dia seria, de facto, um dia magnífico.

    A leve sensação de euforia que o animava equilibrava-se-lhe no cocuruto da alma, não tão firmemente quanto gostaria. Estava lá no alto mas parecia poder cair ao mínimo abanão, parecia depender dos gestos que pudesse fazer; um movimento brusco, um pensamento ao lado e... puf, lá se iria o bem-estar levando consigo o "dia magnífico". Resolveu manter-se quieto como um rato quando tem a sensação de haver gato por perto.

    O tempo passou, passaram horas,e ele ali, quieto, a sustentar a alegria que pressentira mas da qual ainda não fora capaz de usufruir. O "dia magnífico" ia avançando montado nos ponteiros do relógio que lhe parecia sorrir lá da parede e ele, suspenso na possibilidade de estragar a beleza da coisa, ele nada. Parado. 

    "Que dia magnífico?" a dúvida instalara-se. Já o céu ia mudando de cor lá depois da janela, o relógio dera várias voltas aos ponteiros e ele sempre ali sentado, o rabo a incomodá-lo, o desconforto a impor-lhe a dúvida acerca da magnificência daquele dia que se preparava para acabar.

    Finalmente levantou-se (tinha de ir mijar). Foi quando aquela sensação de euforia, já há muito transmutada numa leve angústia, se despenhou lá do topo da alma onde a mantivera em precário equilíbrio ao longo de todo o santo dia. Ao aliviar a bexiga apercebeu-se que, afinal, aquele dia não tivera nada de magnífico mas isso não o incomodou. Afinal de contas também não se passara nada.