terça-feira, agosto 30, 2022

Reformar o discurso

     Ser professor tem que se lhe diga. Deixando para um plano secundário todas as questões relacionadas com as condições de trabalho, com a remuneração ou a proletarização da classe, deixando tudo isso na gaveta, há um pormenor que me incomoda.

    O pormenor incómodo é que não tenho bem o direito de aterrorizar os meus jovens alunos com as minhas visões do futuro. Nem eu queria estar a criar-lhes macaquinhos no sótão, quanto mais alimentá-los! Mas essa auto-censura deixa-me frequentemente à beira de uma tristeza silenciosa.

    Mais, sendo eu professor sinto que faz parte do meu trabalho incentivar e motivar a criançada. Assim farei durante os próximos anos. Tento não mentir mas omito muita coisa que me passa pelo espírito. É uma situação complicada para quem, como eu, foi educado num ambiente católico onde a mentira é castigada com algum diabo de terceira categoria a dar-nos umas marretadas por toda a eternidade.

    Dentro de alguns anos irei reformar-me. Terei então todo o tempo do mundo para me enxofrar com a macacaria que me arrebenta o juízo.

segunda-feira, agosto 29, 2022

Sol

     Eu quero ser bom, praticar o bem, ser agradável. Mas faço-o por quem? Faço-o por mim, por ti, por qualquer outro? Os que têm a Deus por vigia não hesitam mas os que, como eu, são órfãos de céus e de infernos não sabem a que altar oferecer tanta bondade. Por pequenininha que seja.

    Se houvesse um Deus a importar-se decerto não seria Deus mas outra coisa. Assim, com bondade ou sem bondade, a morte ronda aquilo que se chama humanidade. O mundo prevalecerá, pois é claro. Para ele enquanto houver Sol há esperança.

domingo, agosto 21, 2022

Fanatismos

     O ataque a Salman Rushdie veio recordar-nos os contornos obscuros de ódios irracionais que tínhamos de algum modo esquecido. A violência perpetrada em nome de Deus nunca desaparece, adormece por períodos de tempo mais ou menos longos para irromper subitamente em todo o seu terrível esplendor. O fanatismo religioso é um cancro que corrói a Humanidade. 

       Ficamos chocados com a irracionalidade dos fanáticos do Islão mas, temo bem, eles não estão sós. A República Islâmica do Irão é um anacronismo. Não há discurso dos seus líderes sem que a vontade de Deus seja invocada. Mas, ouvindo os presidentes dos Estados Unidos da América, inimigos figadais dos iranianos, verificamos que também eles cometem o pecado de invocar em vão o nome de Deus. Os americanos chegam mesmo a inscrever a sua subserviência nas notas dólar numa proverbial confusão entre a natureza de diferentes divindades . E como classificar o discurso de Jair Bolsonaro? O fanatismo e os perigos que com ele crescem não são exclusivos dos adoradores de Alá, longe disso.

      Na Europa levámos séculos a separar Deus e o Estado, séculos a cicatrizar as feridas profundas que as guerras religiosas cavaram na nossa sociedade. Agora assistimos com maior ou menor perplexidade ao ressurgimento de movimentos sociais retrógrados apoiados em discursos religiosos que pretendem impor indiscriminadamente uma ordem supostamente desejada por Deus. 

       Este monoteísmo soa a politeísmo, tão vincadas são as diferenças dos adoradores de um e outro deus e se alguma coisa coisa prova a grandeza de Alá é o facto de Salman Rushdie ter sobrevivido ao seu assassino.

sábado, agosto 20, 2022

Um dia de cada vez

         "Viver um dia de cada vez" é uma daquelas frases feitas que dizemos sem pensarmos muito naquilo que nos sai da boca. Dizemo-la toda feita de vazios sem que nos trema a voz nem a alma. Mas hoje acho que, pela primeira vez na vida, compreendi um pouco do significado desta frase. 

domingo, agosto 14, 2022

Adeus Senhora das Aparições

    Estou a pensar na exposição de Paula Rego no Museu Picasso de Málaga https://www.museopicassomalaga.org/.../paula-rego-expo-esp uma pequena exposição que funciona como excelente introdução para quem não conheça a Nossa Senhora das Aparições. Paula Rego faleceu entretanto, entre a abertura e o fecho da exposição (no próximo dia 21 de Agosto). Então isto é como uma despedida, é uma nostalgia, é uma oração a deuses eventuais que possam existir e, caso não seja pedir-lhes demais, que possam fazer com que Paula Rego seja recordada enquanto houver gente sobre este mundo.

     

     

sábado, agosto 13, 2022

Ódio

     É tempo de férias mas os filhos da puta não tiram dias de descanso. O cão sarnento que atacou Salman Rushdie estaria a trabalhar? A recompensa prometida ao animal que tratasse da saúde ao escritor continuava à disposição do assassino? Como podemos (como posso) processar uma selvajaria deste género?

    Isto não é uma guerra, não é retaliação por qualquer tipo de agressão física. Isto é um crime contra a Liberdade de Expressão. Isto é um Auto de Fé, está ao nível de Caim a limpar o sebo a Abel. Se nos tiram a Liberdade de Expressão pouco nos resta por que valha a pena lutar.

    Se fosse crente faria uma oração por Salman, a Alá, a Jeová, ao raio que os parta. Como não sou crente fico apenas com algo vagamente semelhante a ódio alojado no meu coração.

segunda-feira, agosto 08, 2022

Ouvi dizer

     Dizem-nos que não há problema, que vai ficar tudo bem.Tendo a concordar, quando nos formos ficará tudo bem. Para as baleias, para os chimpanzés, para os papagaios e para os leões. Dizem por aí que o capitalismo não tem de ser olhado de soslaio, que sem capitalismo não haverá redenção. Tendo a discordar, o capitalismo é um monstro com 20 fileiras de dentes aguçados e de cada vez que um dente lhe cai dois novos crescem no seu lugar. Dizem por aí que o crescimento económico não é "o" problema. Tendo a discordar.

    

quarta-feira, agosto 03, 2022

A Democracia como empecilho


    Há muito que se fala em pós-democracia, mas o conceito não tem sido muito discutido nem tão difundido quanto seria desejável. Muitos são os que consideram que vivemos em pleno um regime pós-democrático; elegemos os nossos representantes que se ocupam do funcionamento das instituições e vão tomando decisões que permitem ir equilibrando o nosso quotidiano, mas as grandes decisões económicas são tomadas nos ambientes controlados dos conselhos de administração de meia dúzia de grandes empresas. Estas multinacionais formam uma espécie de Comité Central da Internacional Capitalista (IC) e são os seus patrões quem decide o modo como vivemos e como morremos, tendo como único objectivo a satisfação dos interesses dos seus principais accionistas. Os seus negócios são transversais, do armamento aos cereais, dos combustíveis fósseis aos verdes, onde houver dinheiro a ganhar há um comissário da IC a fazer com que a coisa flua.

    Isto pode soar a teoria da conspiração, mas não consigo evitar a sensação de estar a IC promovendo o desmantelamento da Democracia, peça por peça. A coisa está já em avançado estado de degradação nos EUA, no Brasil o ambiente não parece muito melhor, a ascensão nazifascista por toda a Europa é preocupante. Para gáudio da IC as grandes potências em ascensão têm regimes abstrusos: na China uma espécie de capitalismo de estado, na Índia um impossível democracia nacionalista hindu. Populações inteiras com direitos socio laborais mitigados ou mesmo inexistentes são o sonho húmido dos dirigentes da IC, o futuro da Humanidade.

    Assistimos ao declínio final do “século das luzes” após a derrocada dos impérios coloniais. A África terá de continuar à espera da sua hora, quem sabe daqui a mil anos…? Putin terá também direito a constar numa página da História, talvez numa nota de rodapé, lado a lado com Zelensky: os dois Vladimiros siameses que, cada um à sua maneira, deram a machadada final na União Europeia. Eu sei que tudo isto soa a teoria da conspiração, mas não consigo libertar-me da incómoda sensação de que a Democracia se tornou um autêntico empecilho.