quinta-feira, abril 02, 2020

Manhã de Primavera

Moro num 3º andar. Da varanda da fachada vejo, do outro lado da rua, o supermercado. As pessoas alinham numa fila espaçada, respeitando, o mais que se lembram, as indicações da Direcção Geral de Saúde sobre "distanciamento social". Entram uma a uma, tenta-se que dentro da loja haja, pelo menos, distância.

Nas traseiras fica a cave do prédio onde funciona uma agência funerária. Como foi ali parar semelhante negócio, isso não sei. O dono da cave contrata a ocupação do espaço ao sabor das suas necessidades sem dar cavaco aos condóminos. Aquilo já foi de tudo, agora há, com frequência, carros fúnebres estacionados, entrada e saída de caixões lustrosos, figuras discretas e silenciosas.

Hoje, enquanto do outro lado da rua se organizava o habitual cortejo de consumidores à porta do Pingo Doce, nas traseiras acontecia uma espécie de funeral. Um grupo de homens e mulheres vestidos de negro espalhavam-se condoídos por entre os automóveis estacionados. Quatro mulheres, três delas jovens e uma senhora velhota de lenço preto amarrado sob o queixo, avançaram em direcção à entrada da cave. Roupas negras, luvas e máscaras azuis, amparavam-se umas nas outras formando um estranho quadro, ilustração eficaz do tempo que vivemos.

Olhei lá para baixo. O dia estava solarengo, ouviam-se pássaros a cantarolar, uma brisa suave aconchegava os parcos ruídos que a cidade ia oferecendo como um marulhar no marasmo do confinamento generalizado. Aquelas mulheres de negro desapareceram, engolidas pelas entranhas do prédio em visita ao seu querido cadáver.

Paz às suas almas.

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