quinta-feira, abril 30, 2020

Paraíso algures

 A Invenção do Amor (pintura em progresso)


Ando a ler um livro que tinha para aqui esquecido na prateleira, "Uma História do Paraíso" de Jean Delumeau, editado em 1992. Esta redescoberta não será estranha ao facto de estar a pintar uma tela cuja acção decorre, precisamente, no Paraíso dos cristãos, o tal Jardim de Éden.

É estranho imaginar o que passaria na cabeça dos tipos que descreveram, por vezes com uma minúcia delirante, aquele lugar que muitos acreditavam ser um espaço real, localizado algures para Oriente. O conhecimento limitado da geografia terrestre explica tal crendice o que já não se engole com facilidade é que, nos dias de hoje, haja quem faça ainda interpretações literais do Livro do Génesis. Como entender o que passa pela cabeça dos terraplanistas do século XXI?

O fechamento do universo intelectual é milho para os pardais da estupidez e para os pombos da imbecilidade. Ser capaz de cortar todos os laços com o conhecimento é obra que, ao que parece, não exige um esforço impossível.

Hoje vou pintar pés.

segunda-feira, abril 27, 2020

Tempo enlatado

O tempo enlatado tem um estranho sabor. Fechado na caixa da casa, consumido uniformemente, o tempo ganha uma consistência esponjosa e vagamente indistinta ao paladar. Posso perceber ligeiríssimas diferenças, mas seria capaz de jurar que hoje estou a consumir exactamente o mesmo produto que ontem saboreei.

O tempo enlatado faz com que os dias se confundam uns nos outros e a palavra "semana" ganhe dimensão de coisa única, sem parcelas nem compartimentos. Uma semana assemelha-se a um dia, um dia fica parecido com uma hora e assim sucessivamente. O tempo enlatado é como uma matrioska, só que nós estamos dentro dela.

O tempo enlatado é tão denso! Envolve-nos como lama e deixa-nos viver como se vive nos sonhos.

domingo, abril 19, 2020

Um mundo pior

 cartaz de uma exposição na Galeria Abysmo por volta de 2016 (se não estou em erro)


"Vai ficar tudo bem", a frase vai-se espalhando como perfume primaveril. Ao lê-la renasce a esperança nos nossos corações aborrecidos, um sorriso triste desenha-se nos lábios, o olhar atira-se da janela num salto, saudoso de rua, saudoso de paisagem, saudoso de toda a banalidade entretanto perdida.


Mas, pensando melhor, para que tudo fique bem muita coisa terá de mudar radicalmente em relação ao mundo pré-covid19. Sim, porque o covid-19 veio apenas suspender algo que, sejamos justos, não estava lá muito bem, antes pelo contrário. A pandemia proporciona um mundo pior para a maioria das pessoas; para a minoria que já vivia num mundo bom tanto se lhe dá como se lhe fica.


sexta-feira, abril 17, 2020

Aborrecimento

Sinto um tremendo cansaço, uma espécie de indiferença, sinto-me incapaz. Os dias de confinamento vão causando mossa. Um após outro, são dias gémeos, indiferenciáveis, dias aborrecidos.

Percebo agora que o simples acto de pôr os pés fora de casa é, para mim, uma fonte de inspiração. Percebo agora que olhar os outros na sua rotina diária provoca em mim uma torrente de emoções. Percebo que a aparente sensaboria quotidiana é o combustível que me põe a imaginação a arder, que é a matéria dos meus delírios.

Preciso de voltar a sair sem razão nenhuma, de caminhar numa direcção e, de súbito, voltar para trás apenas porque sim, porque não ia a lado nenhum e, caminhando no sentido oposto, aparentemente acontece a mesma coisa.

Sinto falta de me aborrecer lá fora de modo a que, regressado a casa, as coisas ganhem sentido.

quinta-feira, abril 16, 2020

Grande D. Quixote

Faltam-me 7 páginas para terminar a leitura do 2º volume do D. Quixote de la Mancha, tradução de Aquilino Ribeiro, ilustrações de Gustave Doré, editado pelo Público aqui há uns anos. Reservo esse derradeiro capítulo, "de como D. Quixote caiu doente, do testamento que fez e da sua morte" mais umas horas.

A viagem que venho fazendo na companhia do Cavaleiro de Triste Figura aka Cavaleiro do Leões e do seu fiel escudeiro Sancho Pança, mais as cavalgaduras que com eles alombam, o Rocinante e o Ruço, tem sido espantosa.

Agora compreendo porque é o D. Quixote tão imenso. Todos temos a impressão de conhecer este cavaleiro andante, as mais das vezes através de ecos da sua fama que nos chegam tomando as mais variadas formas mas, em boa verdade te digo, amigo leitor, que nada se compara ao contacto directo com a obra... mas isso já tu suspeitavas.

Começo a sentir uma pontinha de saudade da leitura desta obra monumental.

terça-feira, abril 14, 2020

Zanga

Nos dias que correm sinto que vou perdendo a capacidade de me zangar. Parece estranho que, numa situação como esta em que um gajo se fecha em casa meio por vontade própria e outro meio por imposição, a fúria se me desvaneça na cabeça e no peito como fumo ao vento.

Reflectindo sobre esta inesperada sensação pré-beatífica tento perceber como é que um tipo pode sentir-se sereno perante esta enormidade social, que é o confinamento a que estamos sujeitos. Será a sensação do cordeiro aninhado no altar do sacrifício?

Será a percepção do lugar da Humanidade no Planeta? Somos para a Terra algo semelhante ao que o Covid-19 é para o Ser Humano: um vírus terrível que estraçalha os pulmões e mata o hospedeiro em pouco tempo.

Os níveis de poluição têm diminuído extraordinariamente. Bom, não tão extraordinariamente quanto isso, parece óbvio que ficando o bicho em casa o mal que causa ao ambiente só pode diminuir. E parece-me ser esta uma das razões, se não a principal, para o abrandamento dos maus fígados que tantas vezes me consomem.

Sinto-me expectante: que lição iremos retirar desta pandemia? Temo bem que lição nenhuma, que uma vez recompostos, rapidamente tentaremos voltar a pôr de pé todo o sistema canibal que tão laboriosamente construímos ao longo de séculos. Temo bem que saltemos da frigideira outra vez em direcção lume. Lá terei que voltar a zangar-me.

sábado, abril 11, 2020

Paz de espírito

Por vezes quase me recordo de quando era um jovem ignorante cheio de certezas. Ah, como era bom estar sempre do lado da razão e ver nos meus oponentes seres merecedores de desprezo e, em última análise, merecedores de castigo.

Tinha o dom de entrar nas discussões de cabeça baixa e levar tudo à frente graças a uma distinta lata e alguma lábia que fui aprendendo entre a santa missa e a rua da aldeia em que vivi ainda antes de frequentar a escola primária. Mais tarde aprimorei esses dons com alguma literatura e amizades variadas, algumas bastante reprováveis. A rua era uma verdadeira universidade de manhosice e eu graduei-me precocemente.

A minha grande especialidade sempre foi a treta. Rapidamente percebi que a violência física não era para mim. Por um lado nunca tive compleição física que me permitisse sair vitorioso de um confronto directo, fosse com os punhos, ao pontapé ou à cabeçada. Por outro lado, cedo senti repulsa pelo sangue, fosse o meu ou o do meu oponente, e nem a calhoada me parecia coisa digna. Não! Sempre gostei de uma boa discussão e, posso dizê-lo, nesse capítulo era bem dotado.

Com a idade venho perdendo o instinto assassino da conversa agressiva mas, por vezes, ainda sinto o sangue a subir-me à cabeça e... lá vai disto! A diferença é que, ao contrário do prazer que sentia quando humilhava um oponente graças ao arremesso de metáforas corrosivas, nos dias que correm, ao aperceber-me que estou a torcer o juízo do adversário, tenho tendência para abrandar o discurso, meter travões e arranjar forma de desviar o curso dos acontecimentos.

Com a idade aprendi que não me interessa puto ter razão. Nada disso. O que me interessa é, apenas, a paz de espírito.

sexta-feira, abril 10, 2020

Da felicidade

Sempre tive a certeza de que a felicidade é uma coisa que não sabemos como é. Em geometria ensinamos aos jovens, desatentos, enfadados e despreocupados, que um ponto é uma abstracção, que não tem forma, não ocupa espaço, que na verdade não existe propriamente, um ponto é aquilo a que chamamos "um lugar geométrico". Um ponto é a conjugação de um conjunto de coordenadas que indicam um lugar no espaço, para lá do tempo.

Tenho para mim que a felicidade é vagamente semelhante a um ponto na medida em que a sua existência depende e é definida pela conjugação de uma série de factores que confluem num determinado momento das nossas vidas proporcionando conforto e bem-estar.

Uma diferença fundamental entre "felicidade" e "lugar geométrico" residirá na sua relação com o tempo.

terça-feira, abril 07, 2020

O lugar de Deus

Estou cansado das contagens. Da contagem dos mortos, dos infectados, dos recuperados, dos desempregados, dos desesperados, dos encerrados, dos assustados, dos despreocupados... tantos números, percentagens infinitas, tantas opiniões, tantos inquéritos; tudo para contabilizar o impacto da pandemia nas nossas vidas. É um martelar constante que, decerto, muito contribui para o aumento do número dos angustiados.

Por trás desta amálgama indistinta estão milhões de indivíduos, cada um seu universo, a sofrer, a perder o mundo, a obra de Deus implodindo. E Ele, o que faz? Onde está Deus? A resposta é óbvia: Deus está no Seu lugar.

domingo, abril 05, 2020

Isolado

Estar isolado é estar numa ilha. Como Robinson Crusoe, sozinho numa ilha, plantado numa ilha, como uma palmeira. Até que surge Sexta-Feira e o isolamento perde plenitude, passa a ser partilhado. Deixa de ser isolamento?

Isolamento social não é novidade. Todos nós somos ilhéus sociais de longa data.

sexta-feira, abril 03, 2020

Crise pandémica


A crise que atravessamos tem tido a terrível virtude de iluminar certos recantos obscuros do mundo em que vivemos, expondo mais claramente os traços de alguns seres que habitam na penumbra. Jair Bolsonaro e Donald Trump são dois exemplos concretos de como “o sono da razão engendra monstros”. 

Por outro lado António Costa tem-se mostrado um líder capaz de enfrentar a borrasca com razoável valentia e Rui Rio não envergonha ninguém nos tempos difíceis que vivemos. Alguém se recorda do modo soez como, no início desta crise, o deputado Ventura se tentou aproveitar da situação para insinuar que Marcelo Rebelo de Sousa estava a contribuir negativamente para o evoluir da situação, pretendendo acumular créditos para uma futura campanha presidencial?
 
Quanto a mim, esta crise pandémica mostra, a quem o quiser ver, a supremacia absoluta dos que acreditam e praticam a Democracia sobre aqueles que se imaginam a ditar regras ao sabor das suas pulsões narcísicas. Todos nós imaginamos que ultrapassada esta crise o mundo vai mudar, só não sabemos em que sentido. Oxalá o vírus tenha, pelo menos, o condão de enviar certas ratazanas para o esgoto a que pertencem.

Carta enviada ao Director do Público (duvido que seja publicada)

quinta-feira, abril 02, 2020

Manhã de Primavera

Moro num 3º andar. Da varanda da fachada vejo, do outro lado da rua, o supermercado. As pessoas alinham numa fila espaçada, respeitando, o mais que se lembram, as indicações da Direcção Geral de Saúde sobre "distanciamento social". Entram uma a uma, tenta-se que dentro da loja haja, pelo menos, distância.

Nas traseiras fica a cave do prédio onde funciona uma agência funerária. Como foi ali parar semelhante negócio, isso não sei. O dono da cave contrata a ocupação do espaço ao sabor das suas necessidades sem dar cavaco aos condóminos. Aquilo já foi de tudo, agora há, com frequência, carros fúnebres estacionados, entrada e saída de caixões lustrosos, figuras discretas e silenciosas.

Hoje, enquanto do outro lado da rua se organizava o habitual cortejo de consumidores à porta do Pingo Doce, nas traseiras acontecia uma espécie de funeral. Um grupo de homens e mulheres vestidos de negro espalhavam-se condoídos por entre os automóveis estacionados. Quatro mulheres, três delas jovens e uma senhora velhota de lenço preto amarrado sob o queixo, avançaram em direcção à entrada da cave. Roupas negras, luvas e máscaras azuis, amparavam-se umas nas outras formando um estranho quadro, ilustração eficaz do tempo que vivemos.

Olhei lá para baixo. O dia estava solarengo, ouviam-se pássaros a cantarolar, uma brisa suave aconchegava os parcos ruídos que a cidade ia oferecendo como um marulhar no marasmo do confinamento generalizado. Aquelas mulheres de negro desapareceram, engolidas pelas entranhas do prédio em visita ao seu querido cadáver.

Paz às suas almas.