sexta-feira, maio 06, 2016

Da vaidade

Folheio as páginas do suplemento cultural do "meu" jornal. Leio aqueles títulos em letras mais gordas que a vénus de Willendorf, frases magníficas, sugestões enigmáticas, descrições com elevado teor poético elogiam escritores, músicos e outros artistas, disparam-nos em direcção à categoria de pequenos deuses neste Olimpo de papel impresso. E sinto inveja, confesso que sinto inveja.

A inveja que arranha o interior do meu peito faz-me sentir que não sou digno daquele panteão da cultura. Um deus, mesmo um deus de papel impresso, decerto é superior a sentimento tão mesquinho, tão pequenino, tão provinciano, como esta inveja que aqui exponho. Inquieto-me, roo as unhas: não sou um artista? Sou um mero professorzeco, não sou um intelectual, sou um... nem sei o que sou.... um Joseph Merrick, na melhor das hipóteses.

Oh, como eu gostava de um dia ser página de suplemento cultural (página dupla levar-me-ia ao Paraíso!), como eu gostava de ver o meu nome elogiado por alguém com o dom da escrita e argúcia suficiente para ver nos meus trabalhos aquilo que nem eu serei capaz de perceber. Oh, como seria feliz se, por uma vez, pudesse despejar na gamela onde a minha vaidade chafurda e se alimenta substância suficiente que lhe saciasse a fomeca.

Foi em Narciso e Goldmund, de Herman Hesse, que li, há largos anos, uma frase que nunca esqueci (decerto a transformei, a memória é traiçoeira). Numa das conversas entre as personagens centrais deste romance, uma dizia à outra qualquer coisa como "a arte arrisca-se a ser apenas uma expressão de vaidade individual". Se não é isto, peço desculpas a Hesse, mas foi isto que me ficou gravado a ferro e fogo nos recessos do cérebro.

Hesse é bem capaz de ter ali fixado um ponto importante, digno de profunda reflexão.

2 comentários:

João Menéres disse...

Admiro o seu texto, e de que maneira, Rui !
Mas já não estou de acordo com essa reflexão escrita e bem rodada pelo mundo da Literatua de que é autor o Hermann Hesse.

Abraço amigo.

Silvares disse...

Umas vezes parece-me que Hesse tem razão, noutras ocasiões sorrio de desprezo por aquela ideia. Na verdade, não consigo esquecê-la. :)