Lembro-me bem de ver putos meio nus, sujos e desgrenhados, com ranho eterno a brilhar abaixo do nariz e um pouco sobre o lábio. Putos assim, a correr pela rua, pequeninos, com as vergonhitas aos saltos. As avós eternamente vestidas de negro, as cabeças amarradas debaixo dos lenços com gestos de esconder os cabelos, sentadas, apáticas, num luto infinito que iria durar até mesmo depois da morte.
As mães dos putos andavam nas terras, a cavar, mãos como solas de sapatos que só calçavam ao Domingo, quando os tivessem. Domingo, dia de ir ver a Deus pedir ajuda e protecção que nunca vinha. Os homens tinham ido para o Luxemburgo ou para África fazer a guerra que lhes diziam ser deles mas, penso agora, havia dúvidas quanto a isso.
Na aldeia havia dois ou três automóveis, duas ou três televisões e muita fome Havia uma miséria que doía e não se podia esconder. Os animais viviam mais próximos das pessoas, tão próximos que eram a benção dos dias mais frios naqueles Invernos gelados. A escola não era para todos e mesmo os que lá andavam acabavam cedo que eram precisos para a terra e para a guerra.
Um doce era uma festa, uma laranjada um luxo quase impensável (havia muita água a jorrar, incessante, da fonte). As roupas passavam dos mais velhos para os mais novos. Não imaginava o que fosse uma loja de pronto-a-vestir. As mulheres sabiam coser e usavam-se cotoveleiras nas camisolas e joelheiras nas calças.
Lembro-me bem deste país pré-consumista, onde uma sardinha era alimento para três: cabeça, lombo e rabo e as crianças bebiam bagaço pela manhã, para aquecer o corpo e abrutalhar o espírito. O granito era a nossa natureza e as matas um mundo encantado onde nos perdíamos dias inteiros à procura do mundo.
Lembro-me bem deste país triste, analfabeto e miserável que parecia ter o futuro no fundo de um poço de águas pestilentas. Lembro-me bem e não sou tão velho quanto isso.
4 comentários:
Um país que não queremos repetir. Excelente descrição.
Desconcertante...
E que se calhar os bem mais novos também irão experimentar.
Tenho essas "imagens" todas bem presentes e até mais miseráveis de aldeias beirãs e transmontanas, realidades que por ascendência conheci francamente bem. E esses tempos não estão assim tão distantes.
Saudações.
Jorge, a História nunca se repete mas, por vezes, há coisas que regressam bastante parecidas com o passado.
Li, Portugal era um país de agricultores analfabetos e passou a ser um país de consumidores muito pouco alfabetizados...
Zé Marreta, eu também vim da Beira Alta e visitei algumas aldeias em Trás-os-Montes quando era criança. É daí que vêm estas memórias.
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