Sentei-me num lugar qualquer, próximo da janela.Sentei-me ali só para sentir a paisagem já que a sujidade é tanta que de transparente o vidro só tem a translucidez. Lisboa, do outro lado do rio, é uma sombra luminosa quando olhada através da janela do cacilheiro. Dali olhada Lisboa é um borrão, sete colinas indefinidas, a capital de um Portugal meio desfocado, que é o que Portugal vai sendo nos dias que flutuam muito mais do que correm, como seria de bom tom.
A meu lado está um cidadão com aquele ar sizudo que tão bem assenta aos cidadãos da nação lusa. Tem aquela expressão grave de quem está a par das dores do mundo tanto quanto se sente enfastiado por saber tudo o que de importante o mundo tem para oferecer aos comuns mortais. Segura na mão uma daquelas coisas que são uma espécie de telemóvel.
Digo uma espécie de telemóvel porque o cidadão a meu lado entrega-se a uma actividade frenética. Parece-me que joga um jogo. O cidadão não despega dele os olhos nem o larga das unhas que saltitam no écrãzinho espelhado com uma rapidez estonteante. Pipópópipóóó, faz o objecto. Logo a seguir uns momentos de silêncio e, depois, pic, pic, pic, ao ritmo dos toques com que o meu vizinho o matraqueia, pic, pic, pic, pipópópipóóó.
Finjo que não reparo, é evidente, e tento olhar para Lisboa que o barco já vai navegando. Mas a cidade lá está, fantasmática e desinteressante por não se poder ver quase nada da sua afamada beleza luminosa. Olho em frente e uma jovem cidadã segura outro objecto daquele género, um paralelipípedozinho mágico. Do dela sai um fio que o liga às orelhas. Muito hirta, escondida atrás de uns óculos muito escuros, a rapariga parece uma estátua vagamente grega, mais na brancura que na forma.
Vou olhando um e outro dos meus companheiros naquela curta viagem e a maioria está absorta com uma maquinetazinha qualquer. Uns falam para ela, outros olham-na com concentração, outros afagam-na ou batem-lhe com alguma leveza, como continua a fazer o meu vizinho. As pessoas estão ali e não estão. Estão juntas mas nítidamente afastadas. A experiência da travessia do Tejo não tem quase nada em comum para os que, como eu, se sentam no ventre da barcaça que corta suavemente a ondulação do rio.
Olho outra vez através da janela, a margem norte está já quase ali. Levanto-me e percebo que o horizonte deixou de ser uma prioridade para os cidadãos. Os seus olhares caem-lhes logo à frente do nariz, um pouco acima do umbigo. Os olhares encerram-se nos écrãzinhos das maquinetas e ignoram o mundo que os rodeia. Teremos nós perdido os horizontes? Talvez os tenhamos esquecido! Apenas e simplesmente.
domingo, julho 31, 2011
sexta-feira, julho 29, 2011
Desprezo
Só sinto desprezo por aquele cabrão filho-da-puta que assassinou dezenas de putos noruegueses após ter feito rebentar uma bomba em Oslo tendo morto, logo aí, uns quantos cidadãos. As coisas que esse animal deixou escritas e as fotos com que se ilustrou enquanto ser vivo mostram apenas uma coisa: vaidade.
Essa besta é tudo o que agora quisermos que seja. O animal é nazi, é terrorista, é fundamentalista católico, é louco, é psicopata, o que quisermos. Será tudo isso, mas tudo isso reflecte uma vaidade imbecil na sua cabeça loira e nos seus olhos claros. Um verme nojento daquele calibre pode apenas merecer desprezo.
Por mim enfiava-lhe uma bala nos cornos e acabava logo ali com uma existência prejudicial à espécie humana. Gajos assim fazem vacilar as minhas convicções em termos de tolerância e respeito pela vida humana. Tenho dificuldade em reconhecer num monstro deste género o mais leve pingo de humanidade. As bestas raivosas matam-se, para evitar que espalhem a raiva.
Já escrevi mais do que queria escrever sobre esta coisa pestilenta. Os noruegueses deram-lhe um tratamento razoável. Se era exposição pública que o bicho queria, isolaram-no por completo. O problema é que vai ter um julgamento justo. É isso que distingue as vítimas do assassino mas, caraças, ele não merece ser tratado como aquilo que não é, não merece ser tratado como um ser humano.
Essa besta é tudo o que agora quisermos que seja. O animal é nazi, é terrorista, é fundamentalista católico, é louco, é psicopata, o que quisermos. Será tudo isso, mas tudo isso reflecte uma vaidade imbecil na sua cabeça loira e nos seus olhos claros. Um verme nojento daquele calibre pode apenas merecer desprezo.
Por mim enfiava-lhe uma bala nos cornos e acabava logo ali com uma existência prejudicial à espécie humana. Gajos assim fazem vacilar as minhas convicções em termos de tolerância e respeito pela vida humana. Tenho dificuldade em reconhecer num monstro deste género o mais leve pingo de humanidade. As bestas raivosas matam-se, para evitar que espalhem a raiva.
Já escrevi mais do que queria escrever sobre esta coisa pestilenta. Os noruegueses deram-lhe um tratamento razoável. Se era exposição pública que o bicho queria, isolaram-no por completo. O problema é que vai ter um julgamento justo. É isso que distingue as vítimas do assassino mas, caraças, ele não merece ser tratado como aquilo que não é, não merece ser tratado como um ser humano.
segunda-feira, julho 25, 2011
domingo, julho 24, 2011
Mais um anjinho
Morreu Amy Winehouse (toda a gente sabe, claro). Pois foi, lá se passou a cantora da imagem esquisita, tinha os tais 27 anos. A lista de personagens geniais do mundo da música que faleceram com essa idade fatídica é impressionante. No jornal chamam-lhe o "clube dos 27": Brian Jones, Jim Morrison, Jimmy Hendrix, Janis Joplin e Curt Cobain, uma coincidência dos diabos!
Cá para mim, as almas destas personagens estão algures no Paraíso, são anjos, não restam dúvidas. Deus não cometeria a imprudência de prescindir dos serviços de tão distintos fantasmas. Sem eles o Paraíso seria, definitivamente, o tal lugar aborrecido que muitos imaginam mas que, estou em crer, terá concertos divinais com uma frequência extraordinária como só pode acontecer no Mundo das Nuvens.
Talvez Lucian Freud lhe pinte o retrato.
sexta-feira, julho 22, 2011
Lucian Freud
Morreu o pintor Lucian Freud, 88 anos, cidadão inglês, considerado pela crítica como um dos mais excelentes pintores, senão mesmo o maior, dos últimos anos em todo o mundo. Um pintor deveras marcante. Uma pintura de Freud é uma coisa desconcertante.
Segundo o velho pintor, a solidão do trabalho proporcionava-lhe muita alegria e não gostava que o vissem durante o acto de pintar. Mas quando um observador se confronta com uma tela saída das suas mãos poderosas é isso que ele pode apreciar: a pintura. Não vendo artista em acção, a observação de uma obra de Freud mostra-nos o poder mágico do gesto pictórico.
Uma pintura é um repositório de energia em suspensão. Quando o observador cruza o olhar com o objecto de arte acciona uma fusão de energias, a sua própria com aquela que obra contém, pondo em movimento os mecanismos maravilhosos do fenómeno da revelação artística.
Foi isto que Lucian Freud nos legou, obras de uma energia intensa, capazes de gerar campos de força avassaladores que nos sugam a alma para o centro de uma tremenda tempestade pictórica. Paz à sua alma, lá na solidão da morte.
terça-feira, julho 19, 2011
Vestuário
Não vejo porque será controversa a decisão do Conselho Académico da Universidade Católica no sentido de estabelecer um código de vestuário para os seres humanos que frequentam as suas instalações. Por mim até me parece uma decisão muito correcta, diria mesmo, uma santa decisão! (ver aqui)
É evidente que raparigas de mini-saia ou rapazes em calções, com a penugem dos pernis ao vento, não é forma decente de se entrar em estabelecimentos de ensino tão devotos e magníficos como aqueles que cumprem a sua missão evangelizadora sob o signo da Igreja Católica, como é o caso desta provecta Universidade.
Note-se que o memorando que estabelece as tais regras adverte discretamente que "Modos de trajes e formas de apresentação próprias de local de lazer e de desporto não são adequados na universidade." Quem pode contestar uma formulação tão pueril e justa como esta? É evidente que estudar não é coisa vã, muito menos diversão!
Aliás, quem vê a estudantada toda enfiocada em capas e batinas negras como o breu por ocasião da Semana Académica apenas poderá estranhar esta discreta imposição por não estar a ver modosde vestuário impróprios entre tão escura clientela.
Do mesmo modo que um operário tem de usar capacete de protecção quando trabalha numa obra ou um jogador de futebol entra em campo de calções e camisa especial ou um padre vai para a missa devidamente aparelhado, é justo impor aos estudantes de uma Universidade que aspira ao Reino de Deus regras específicas de vestuário.
Sim, porque universidades há muitas e quem se sentir mal por não poder mostrar os seus atributozinhos através de um decote generoso ou expor a sua masculinidade numa bela camisinha de cavas pode sempre experimentar outro estabelecimento de ensino onde o Reitor não esteja tão preocupado com a salvação das almas.
Para terminar noto apenas que o bonequinho que embeleza o logotipo da Universidade Católica Portuguesa se apresenta em trajes muito reduzidos. Talvez fosse conveniente vestir-lhe qualquer coisa mais decentezinha.
Ámen.
domingo, julho 17, 2011
Mijo, pó, merda e música ao vivo
Ok, eu não devia meter-me nestas coisas. Na verdade aquilo não é bem para mim e, em última análise, poderia dizer que não fui para ali chamado. Mas, vendo as coisas por um prisma consumista, diria que não é bem assim.
Tudo começou há 4 anos atrás, quando os Arcade Fire fizeram o seu concerto no Super Bock Super Rock que, nesse ano, foi no Parque do Tejo, ou lá como se designa aquele lugar, um sítio razoavelmente decente, com condições de habitabilidade que não envergonhariam o Porquinho Babe. Consultando os arquivos do 100 Cabeças encontro aqui o registo entusiástico que então me mereceu o meu primeiro contacto live com a banda canadiana.
O ano passado já o festival se desenrolou no local onde agora se mantém, algures para os lados de Sesimbra, num local onde aqui há uns 15 anos atrás (mais coisa menos coisa) fazia piqueniques em famíla com amigos e etc. O ano passado fui lá para ver o Prince (registo aqui) e não gostei nadinha das condições do recinto. Saí de lá a jurar baixinho nunca mais meter lá os pés.
Jura vã, está bom de ver. Quem iria adivinhar que, na edição deste ano, o cartaz haveria de ter um dia em que surgiriam no mesmo palco e consecutivamente os Portishead e os Arcade Fire!? A perspectiva de assistir a estes concertos apagou por completo tudo o que de mau me tinha levado a jurar a tal jura. E lá fui.
Resumindo. o Super Bock Super Rock é um festival de lixo! Há merda e mijo em doses industriais se bem que, principalmente a merda, devidamente confinados em sanitários móveis de plástico, ora verdes ora cor-de-laranja, mas igualmente pestilentos. Sim, porque o mijo, a partir de uma certa hora, começa a ser mijado por toda a parte pelos elementos do sexo masculino que foram abençoados com a maravilhosa capacidade de mijar em pé.
Depois há o lixo, os copos de plástico, os invólucros das mais variadas comiditas, papéis, garrafas, maços de tabaco, eu sei lá, é difícil nomear toda a sorte de porcaria que parece brotar do solo arenoso... por falar em solo, temos aqui o protagonista, a verdadeira e autêntica vedeta de toda a função: o pó!
O pó está por todo o lado. É omnipotente e omnipresente, uma divindade daquelas que comandam os destinos do inferno. Levanta-se ao menor movimento, eleva-se e insinua-se, penetra-nos, envolve-nos, domina a nossa existência naquele local.
Finalmente, abreviando, falemos um pouco de música. Saltando sobre todas as outras bandas aterremos no momento em que os Arcade Fire irromperam no palco. Tal como há 4 anos atrás as palavras não servem para descrever o que a seguir aconteceu lá em cima e cá em baixo. A multidão apinhava-se com feijão numa lata e cantava como um bando de piratas após um saque magnífico. Esta multidão de feijões piratas levantava uma poeirada apocalíptica enquanto dançava frenéticamente. O pó, sempre o pó!
Mas as emoções estavam longe de se ter esgotado. Quando o concerto acabou, por volta das 2 da manhã, e toda aquela mole humana se movimentou em simultâneo a coisa tornou-se dantesca. Imagina, leitor amigo, aquela manifestação grandiosa da poeirada absoluta.
Mas o pior ainda estava para vir. Sair dali, no carro, foi outra história épica a que te vou poupar. Cheguei a casa para lá das 4 da manhã, cansado, sujo e não tão feliz quanto seria de esperar. Fica a moral desta história: não encurtes a memória, amigo leitor, se um dia viveste momentos verdadeiramente merdosos não o esqueças. Repetir a experiência pode dar-te a sensação de seres mais burro que um jumento.
Tudo começou há 4 anos atrás, quando os Arcade Fire fizeram o seu concerto no Super Bock Super Rock que, nesse ano, foi no Parque do Tejo, ou lá como se designa aquele lugar, um sítio razoavelmente decente, com condições de habitabilidade que não envergonhariam o Porquinho Babe. Consultando os arquivos do 100 Cabeças encontro aqui o registo entusiástico que então me mereceu o meu primeiro contacto live com a banda canadiana.
O ano passado já o festival se desenrolou no local onde agora se mantém, algures para os lados de Sesimbra, num local onde aqui há uns 15 anos atrás (mais coisa menos coisa) fazia piqueniques em famíla com amigos e etc. O ano passado fui lá para ver o Prince (registo aqui) e não gostei nadinha das condições do recinto. Saí de lá a jurar baixinho nunca mais meter lá os pés.
Jura vã, está bom de ver. Quem iria adivinhar que, na edição deste ano, o cartaz haveria de ter um dia em que surgiriam no mesmo palco e consecutivamente os Portishead e os Arcade Fire!? A perspectiva de assistir a estes concertos apagou por completo tudo o que de mau me tinha levado a jurar a tal jura. E lá fui.
Resumindo. o Super Bock Super Rock é um festival de lixo! Há merda e mijo em doses industriais se bem que, principalmente a merda, devidamente confinados em sanitários móveis de plástico, ora verdes ora cor-de-laranja, mas igualmente pestilentos. Sim, porque o mijo, a partir de uma certa hora, começa a ser mijado por toda a parte pelos elementos do sexo masculino que foram abençoados com a maravilhosa capacidade de mijar em pé.
Depois há o lixo, os copos de plástico, os invólucros das mais variadas comiditas, papéis, garrafas, maços de tabaco, eu sei lá, é difícil nomear toda a sorte de porcaria que parece brotar do solo arenoso... por falar em solo, temos aqui o protagonista, a verdadeira e autêntica vedeta de toda a função: o pó!
O pó está por todo o lado. É omnipotente e omnipresente, uma divindade daquelas que comandam os destinos do inferno. Levanta-se ao menor movimento, eleva-se e insinua-se, penetra-nos, envolve-nos, domina a nossa existência naquele local.
Finalmente, abreviando, falemos um pouco de música. Saltando sobre todas as outras bandas aterremos no momento em que os Arcade Fire irromperam no palco. Tal como há 4 anos atrás as palavras não servem para descrever o que a seguir aconteceu lá em cima e cá em baixo. A multidão apinhava-se com feijão numa lata e cantava como um bando de piratas após um saque magnífico. Esta multidão de feijões piratas levantava uma poeirada apocalíptica enquanto dançava frenéticamente. O pó, sempre o pó!
Mas as emoções estavam longe de se ter esgotado. Quando o concerto acabou, por volta das 2 da manhã, e toda aquela mole humana se movimentou em simultâneo a coisa tornou-se dantesca. Imagina, leitor amigo, aquela manifestação grandiosa da poeirada absoluta.
Mas o pior ainda estava para vir. Sair dali, no carro, foi outra história épica a que te vou poupar. Cheguei a casa para lá das 4 da manhã, cansado, sujo e não tão feliz quanto seria de esperar. Fica a moral desta história: não encurtes a memória, amigo leitor, se um dia viveste momentos verdadeiramente merdosos não o esqueças. Repetir a experiência pode dar-te a sensação de seres mais burro que um jumento.
sexta-feira, julho 15, 2011
Pensamento profundo como um chapéu de palha em dia de sol abrasador
Um homem só está completo quando se apercebe da sua absoluta imperfeição. É esse o estado mais próximo de alguma coisa que jamais conseguimos alcançar: compreender com a clareza possível o pouco que somos e o nada a que podemos honestamente aspirar. A partir daqui tudo será possível.
quarta-feira, julho 13, 2011
Em nome do povo
Nós, o povo, não queremos cá saber de intelectualices, coisas que nos obriguem a puxar pela mioleira se as quisermos atingir e entender. Nós, o povo, não compreendemos que alguém possa ter prazer em exercícios reflexivos complicados que, para nós, é coisa própria de masoquistas.
Nós, o povo, gostamos de coisas simples e intelectualmente aerodinâmicas: um soco no focinho que parta ossos (com som), uma manápula peluda a esfregar as mucosas vaginais de uma Maria qualquer ou uma biqueirada violenta numa bola que voa e voa e voa e que entra, supersónica, pela baliza dentro. Goooooolooooo, coisa máilindaaaaa!!!
Também gostamos muito de novelas.
Nós, o povo, gostamos de coisas simples e intelectualmente aerodinâmicas: um soco no focinho que parta ossos (com som), uma manápula peluda a esfregar as mucosas vaginais de uma Maria qualquer ou uma biqueirada violenta numa bola que voa e voa e voa e que entra, supersónica, pela baliza dentro. Goooooolooooo, coisa máilindaaaaa!!!
Também gostamos muito de novelas.
terça-feira, julho 12, 2011
Clica sobre a imagem se quiseres ler
Isto é uma página do meu caderno.
A escrita manual tem, para mim, uma dimensão estranha ao teclado do computador.
No Carapau Staline haverá outras páginas deste caderno e, também aqui, outras se seguirão.
Assim Deus mo permita.
segunda-feira, julho 11, 2011
Tangueria
Martina Gusman e Ricardo Darin numa cena de infinita ternura...
Aqui há uns tempos largos tinha lido a crónica do Beto Canales (ver aqui) no blogue Cinema e Bobagens (aqui também) sobre o filme O Segredo dos Seus Olhos, do realizador argentino Juan José Campanella e tudo o que ele dizia soava justo e certeiro: um certo cinema argentino passa na tela com uma naturalidade que até parece ser a vida a imitar aqueles filmes e não o contrário. Como se, sentados na sala de cinema, os espectadores fossem aqueles tipos acorrentados na caverna da alegoria platónica.
De Campanella já tinha visto com estranho prazer O Filho da Noiva e, mais recentemente, vi (em DVD, sem legendas, descobri que compreendo o argentino com alguma eficácia) o espectacular Luna de Avellaneda. 3 filmes com Ricardo Darin como denominador comum, além do realizador, está bom de ver. O que me deixa agarrado a estes filmes é a forma escorreita como nos é contada uma história por actores magistralmente dirigidos. A representação elevada à categoria de arte maior.
Mas o que me levou a escrever este post foi uma ida recente ao cinema para ver Carancho (Abutres, na versão portuguesa) de um tal Pablo Trapero. Mais uma vez Ricardo Darin a dar corpo à personagem principal e novamente uma exibição de virtuosismo estonteante. Sem efeitos especiais e (decerto) sem um orçamento astronómico cria-se uma obra de arte cinematográfica exemplar.
O tango que abre a banda sonora de Carancho dá o mote; há um país na Amércia Latina onde os cineastas fazem cinema como se ele nunca tivesse morrido sufocado por toneladas de pipocas ou afogado num mar de Pepsi Cola. Na Argentina assistimos a um autêntico Renascimento cinematográfico. Buenos Aires está para o cinema como Florença esteve para as artes, que agora chamamos plásticas, lá para o fim da Idade Média.
sábado, julho 09, 2011
Recuperar
Hoje recuperei os meus olhos. Tive de me chatear e ameaçar que faria uma reclamação naquele livrinho que há nos estabelecimentos comerciais e quejandos. Com a ameaça lá se despoletou o processo que deveria ter corrido naturalmente e não sob a pressão artificial do meu mau génio e, pronto, já tenho olhos outra vez.
Quando coloquei os óculos no lugar foi como se tivesse recuperado uma força que já andava a esquecer. A luz subiu dois tons e os contornos dos objectos regressaram com uma nitidez enternecedora. Foi como se estivesse a segurar uma vela que, de súbito, se transformou numa espada de laser como aquelas dos heróis da Guerra das Estrelas. Beleza!
De imediato li o jornal de fio a pavio e senti um certo alívio por poder ver melhor as olheiras na cabeça que estava no espelho a olhar para mim. É notável a forma como não damos importância a pequenas coisas que têm uma importância enorme até que elas falham. A privação da banalidade é uma coisa extraordinária.
Quando coloquei os óculos no lugar foi como se tivesse recuperado uma força que já andava a esquecer. A luz subiu dois tons e os contornos dos objectos regressaram com uma nitidez enternecedora. Foi como se estivesse a segurar uma vela que, de súbito, se transformou numa espada de laser como aquelas dos heróis da Guerra das Estrelas. Beleza!
De imediato li o jornal de fio a pavio e senti um certo alívio por poder ver melhor as olheiras na cabeça que estava no espelho a olhar para mim. É notável a forma como não damos importância a pequenas coisas que têm uma importância enorme até que elas falham. A privação da banalidade é uma coisa extraordinária.
quarta-feira, julho 06, 2011
Visão
O valor das coisas é relativo. É quando as coisas falham que lhes damos a atenção devida. Estou a escrever este texto e as palavras vão-se alinhando no écrã. Isso vejo muito bem, as linhas. Já as palavras... bom, confio que estou a escrever tudo de acordo com as regreas ortográficas já que não consigo distinguir as letras com clareza. Nem nada que se pareça!
Acontece que tive necessidade de mudar as lentes dos óculos. Andava com dificuldades na leitura das letras pequeninas dos contratos e das instruções de utilizaçãonas embalagens de certos produtos. Estou a utilizar uns óculos antigos para poder ter esta visão nublada. Sem eles sinto-me como deve sentir-se uma toupeira fora da toca. O oculista explicou-me, com um grande sorriso, que só amanhã (ou depois, meu Deus, ou depois!!!) terei de volta a minha visão de curto alcance. Estou triste.
O jornal matinal é um sacrifício, o "Crime e Castigo" uma impossivilidade absoluta. Enquanto não tiver os óculos de volta sinto-me uma espécie de semi-analfabeto. A falta de visão pode ser uma forma suave de tortura.
Aguardo com alguma ansiedade a chamada telefónica que me devolverá a extraordinária magia da visão plena. "Os seus óculos estão prontos, pode vir buscá-los."; amanhã, por favor, que seja amanhã!
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quotidiano delirante
sexta-feira, julho 01, 2011
Pequeno conto fantasma
Havia dias em que aquela sensação se instalava. Era um apertozinho no lugar onde deveria estar o coração. Era uma coisa tão leve, tão discreta que, não fora a doçura do mal-estar que provocava, poderia passar despercebida mesmo para aquele que, inadvertidamente, era o seu dono.
Quando aquela coisa dava sinal, ele lembrava-se que apenas a tinha esquecido. A coisinha decerto sempre lá estivera, escondida ou a preguiçar, isso pouco significado tinha neste caso. Como a sensação de desconforto não ultrapassava a discreta força de uma brisa interior ele nunca se inquietava, era coisa de pouca importância. Mas, naquela dia, naquela visita, havia algo ligeiramente diferente. Uma diferença mínima que, como iremos compreender daqui a nada, acabaria por se revelar determinante.
Desta vez, aquela coisinha que noutras ocasiões até lhe trouxera aos lábios sorrisos enternecidos, pareceu-lhe manhosa, foi capaz de o desassossegar. Ainda assim não se sobressaltou de imediato. Não era possível, a coisinha, desta vez, parecia-lhe perigosa! De súbito suspeitou que, na verdade, ela sempre fora um perigo. Que era uma coisa dissimulada, que sempre disfarçara a sua verdadeira força, a sua origem demoníaca e que agora atirava para trás o manto de bonomia que lhe escondera as intenções destruidoras. Finalmente sentia-se capaz de cumprir a sua missão e punha-se assim, a descoberto.
Ele estremeceu amedrontado. Sucumbia à temível revelação. Albergara durante tanto tempo aquele terrível inimigo no aconchego do seu peito, acarinhara um mal maior do que era capaz de imaginar e agora era tarde para o enfrentar. Demasiado tarde.
Compreendeu que aquela ligeira sensação de desconforto se tornava dura e efectiva. Rodava-lhe no peito como uma serra eléctrica capaz de despedaçar o pouco que restava da sua habitual confiança na solidez inabalável do quotidiano. Compreendeu que tudo se iria desmoronar nos próximos instantes e ele nada poderia fazer para impedir a hecatombe. Compreendeu que aquilo que estava a acontecer iria transformar por completo o seu papel neste mundo e no outro.
Foi nesse instante que se viu a si próprio sentado onde estava, estupefacto. Viu claramente que era dois corpos com uma só e a mesma alma e a inteligência do mundo dividida em duas. Sentiu uma vertigem. Planou. Por momentos sentiu-se a planar para logo regressar a um dos seus dois corpos, continuando dentro do outro, o que estava ali sentado com extrema dificuldade em abarcar a brutalidade do momento.
O outro ele encostava-se calmamente ao parapeito de uma janela aberta no vazio entre os dois mundos simultâneos que, percebia agora, sempre habitara sem saber. Olhava-se, sentado naquela estúpida cadeira, como se sempre ali tivesse estado, esperando este momento decisivo. Aquela coisinha inquietante sempre habitara o aconchego do seu peito e agora, finalmente, nascia. Nascia no dia e no momento da sua própria morte.
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