quinta-feira, março 31, 2022

Sombria profecia

     A guerra faz com que tudo o mais se torne quase, quase irrelevante. Na sua voracidade, a besta da guerra, engole tudo o que encontra pelo caminho e mesmo as coisas que não lhe passam à frente apressam-se a precipitar-se-lhe na profundíssima garganta. A guerra tem na pança montanhas de ossadas e de coisas esquecidas.

    As questões ambientais serão das vítimas mais notáveis e menos notadas nos últimos tempos. Envolvidos em lutas encarniçadas e na habitual vertigem consumista (a inflacção ainda é apenas um fantasma em construção) parecemos esquecer-nos das juras de amor que vínhamos fazendo ao Planeta. Qual o significado e o impacto desta guerra descabelada relativamente à Natureza?

    Um dia que se faça o rescaldo da coisa (se esse dia chegar) haveremos de somar esta desgraça a todas as outras que temos vindo a acumular ao longo das últimas décadas. Talvez esse dia amanheça sobre um planeta de horizontes sombrios, ruínas infinitas e ventos inóspitos.

sexta-feira, março 25, 2022

O apocalipse segundo São Merdoso

     E se as bombas voarem, quais aves migratórias, doidas, em todas as direcções? 

    Bombas que se cruzam nos céus da Europa como autocarros em hora de ponta na baixa da cidade. Bombas como formigas nos seus incansáveis carreiros. Bombas que, depois de caírem, cumprindo finalmente o tenebroso destino, serão como pontos finais semeados de forma cirúrgica sobre uma página agora negra, rendilhada com a forma da Europa.

    O déspota terá acreditado cumprir a missão que Deus lhe confiou no exacto momento em que a bomba (a sua bomba particular, a bomba com o seu nome inscrito, aquela bomba estupidamente vingadora), a bomba rebentar pulverizando-o em incontáveis átomos que irão misturar-se na poeira cósmica do mais completo esquecimento. Adeuuuuusssss...

    E o planeta, momentaneamente moribundo, acredita numa lenta recuperação, agora que está menos exposto à cegueira do homem, do homem branco pelo menos, esse que se varre a si próprio da crosta terrestre; Deus Pai vencido pela Mãe Natureza. O Grande Deus Branco enfiado no buraco por aqueles que O inventaram.

    Os velhos deuses irão regressar um pouco por todo o Mundo, livres da sombra pesada e negra do Deus opressor, o Deus único e absoluto, morto e enterrado com as suas bolsas de valores e iates de luxo, as suas catedrais de consumo e os seus papas dourados, o Deus da opulência desmesurada que matou e destruiu milhões de seres humanos de todas as cores, formas e feitios, a brutalidade gananciosa do monstro enfim derrotada e pronta a ser esquecida na imensidão do Cosmos. 

    Aleluia!

    (espero sinceramente que as bombas não voem mas adorava assistir à queda do déspota e do seu Deus: o Deus da Fúria, o Deus da Guerra, o Deus da Ganância)

quinta-feira, março 24, 2022

Pessoas

    Há pessoas que brilham. Quando sorriem, quando olham em frente, concentradas, distraídas, há pessoas que brilham. Pessoas que te fazem feliz, de quem sentes falta e que, quando regressam a ti, são momentos de felicidade. Há pessoas assim.

    Há pessoas obscuras. Caladas, sombrias, pessoas que sugam a luz e a transformam em dor e inquietação. Pessoas que te fazem sofrer, de quem não sentes falta nenhuma. Há pessoas assim.

    Há pessoas tansparentes. Pessoas que nunca estão aqui. Pessoas que não são brilhantes nem obscuras. Há muitas pessoas assim.

quarta-feira, março 23, 2022

Versando a merda

    Tem dias. Tem dias em que me apetece esganar uma série de pessoas virtuais. Raramente tenho ganas de apertar o gasganete a pessoas reais. Mas também acontece. Penso que esta diferença de atitude tenha a ver com a forma como cada um me aparece à frente ou algo que com isso se pareça. Mas sim, a paciência perde-se, a paciência também se perde. Como se perde um molho de chaves ou se perde o juízo. É fácil.

    Uma vez perdida a paciência entramos no domínio do delírio. É como dar velocidade a um monte de merda com 100 quilos (ou 2200 ou 5005, qual o peso a partir do qual um monte de merda se descontrola?) e esperar que aquela gente que está lá em baixo, ao fundo da ladeira, não fique muito salpicada com a porcaria resultante do embate. Já perdemos o controle, não adianta nada estar a desejar o que quer que seja. A merda vai acontecer.

    A verdade é que devemos tentar evitar o descontrolo, evitar a rebentação do monte da merda. Se não queremos sujar o mundo não devemos fazer o primeiro gesto, empurrar o balde de merda é má ideia. Isto não é ser moralista (embora não veja grandes problemas com o moralismo), isto é ser higiénico. Como o papel.

    

sexta-feira, março 18, 2022

O mundo de relance

     Vivemos durante anos imaginando que as nossas sociedades democráticas evoluem continuamente em direcção a uma certa ideia de perfeição. Essa perfeição engloba, entre outros valores e ideais, a defesa das minorias, a liberdade religiosa e de expressão, o estado social, uma distribuição da riqueza progressivamente mais justa.

    A justiça básica destes valores parece-nos inquestionável, logo irrefutável. A esmagadora maioria dos cidadãos estaria de acordo com esta evolução em direcção ao paraíso na Terra. Assim sendo, tornou-se quase desnecessário lutar por aquilo em que acreditamos. O natural desenrolar da História haveria de encarregar-se de ir colocando cada coisa no seu devido lugar.

    Mas, na verdade, nunca foi bem assim. Há uma luta constante, uma imparável necessidade de estar atento, reivindicar, questionar, tomar partido e nunca desistir de fazermos aquilo que é, para nós, correcto. Surpreendentemente, ou talvez não, surgem todos os dias adversários que põem em causa a justeza dos nossos ideais e dos nossos valores. Mais surpreendentemente ainda esses adversários são eleitos pelas populações. 

    Temos, espalhados pelo mundo, autocratas e candidatos a tiranos que governam a vida de milhões, que são apoiados e idolatrados pelos que os elegem, que são inimigos dos nossos ideais e dos nossos valores. Põem em causa os direitos das minorias, segregando-as, impõem uma religião perseguindo aqueles que acreditam noutros deuses, calam e reprimem as vozes discordantes, fomentam a desigualdade social e concentram a riqueza nas mãos de supostas elites que vampirizam literalmente milhões de deserdados da sorte.

    As democracias estão em perigo.

quinta-feira, março 17, 2022

Responsabilidade (absoluta insegurança absoluta)

 
     Escolher trabalhos para uma exposição é uma estranha tarefa. De cada vez que chego a um consenso comigo próprio sobre quais deverei seleccionar, imediatamente sou acometido por uma nuvem de dúvidas que me enxameiam o juízo numa forma difícil de suportar. Porque me sinto tão inseguro?

    Talvez tenha expectativas demasiado altas em relação a mim, à minha persona artística, ao meu trabalho, talvez seja isso ou o seu contrário. A verdade é que decidir sobre o que expor se revela algo próximo da tortura. Imagino que um curador seja desejável nestas circunstâncias: alguém que decida por nós, alguém que suporte o fardo da decisão. Não seria mal visto, não senhor.

    Na minha condição de artista amador não posso aspirar a muito mais do que isto mesmo: responsabilidade e absoluta insegurança absoluta.

segunda-feira, março 14, 2022

E a morte?

     Terá dito Leonardo de Vinci que "a pintura é uma coisa mental". Mais isto menos aquilo, consideremos que sim, que o mestre terá dito que a pintura é uma coisa mental. 

    Conta-se que a frase lhe terá saído após uma queixa dos monges do convento de Santa Maria delle Grazie que reclamavam do facto de ele passar mais tempo embasbacado a olhar para a parede do que a mexer em pincéis e tintas. Será uma das muitas anedotas que se contam sobre pintores e pintura mas deixou uma marca muito profunda no modo como imaginamos que a produção artística se movimenta numa espécie de fronteira entre este mundo e um outro, no qual as formas se encontrarão em estado puro.

    Esta manhã ia caminhando pelo parque quando me veio à cabeça esta frase e, por arrasto, a questão que ela encerra. Especado perante uma árvore tentando captar-lhe a forma, as subtis diferenças de cor e de tom que a luz matinal proporcionava ao meu olhar, pensei na famosa questão: estaria eu, naquele momento, a pintar?

    Entre aquilo que imaginamos e aquilo que pintamos está o nosso corpo. Nem sempre a ideia encontra correspondência na forma, as nossas limitações impedem que a coisa seja tão perfeita quanto a imaginamos. Quando pintamos perseguimos uma ideia, uma espécie de sonho, que se nos adianta sempre, que raramente conseguimos alcançar. Pintar é mais ou menos como pretender atingir a linha do horizonte numa paisagem interminável: dirigimo-nos para ela mas nunca a alcançamos; é o horizonte, caraças!

    Desci a rua em direcção a casa e pensei que, na verdade, tudo é uma coisa mental. Até a vida. Mas... e a morte?

sexta-feira, março 11, 2022

Isolamento

     As coisas normais já não faziam sentido. Sentado numa esplanada manhosa olhava os carros que rolavam na rua alcatroada com se fossem barcos deslizando nas suaves águas do rio. Uma cerveja fresca, outra, uma mijadela na casa de banho. Enquanto lavava as mãos olhou-se no espelho.

    A face reflectida pareceu-lhe estranha, pouco familiar. Deveria ser ele próprio mas, de um modo subtil, era uma outra pessoa. Os traços faciais permaneciam inalterados mas aquela expressão... parecia-lhe de uma outra pessoa. Tirou dois toalhetes de papel e secou as mãos o melhor que foi capaz. Saiu para a rua.

    Os carros continuavam a rolar, uma chuva miudinha ia molhando tudo incluindo os tolos. Caminhou sem destino prévio sabendo que, quando chegasse a algum lado, estaria acompanhado por aquele novo habitante que transportava dentro de si. Nunca mais se sentiria isolado.

quinta-feira, março 10, 2022

No país da ditadura

     Sei que a minha opinião é manipulada. Não sei se essa manipulação é deliberada ou se decorre,inocentemente, do facto de eu ir recolhendo dados de forma mais ou menos aleatória que são filtrados por agências noticiosas antes de me serem fornecidos. Este processo resulta confuso e permite-me criar uma visão dos acontecimentos muito pessoal e muito pouco objectiva. Eu sei que é assim e sei que é assim com todas as pessoas que, como eu, vivem a sua vida num lugar pacífico como é Portugal.

     Tenho uma nítida percepção da fragilidade das minhas opiniões. Talvez por isso não as defenda de forma particularmente apaixonada; até porque é frequente que novos dados alimentem dúvidas que vêm inquietar as minhas pseudocertezas. A dúvida alimenta-me o quotidiano.

    Apesar de tudo, adoro uma boa discussão. As melhores discussões são as que mantenho com pessoas que têm a mesma postura que eu, pessoas capazes de duvidar de si próprias, capazes de introduzir novos dados na discussão, por vezes de forma caótica, pessoas capazes de deixar vaguear o raciocínio até chegarem a lugares inesperados, formulações imprecisas, pensamentos imperfeitos; pessoas para quem tudo o que é necessário é que a discussão continue.

    Quando alguém atinge o estado petrificado da certeza absoluta, quando alguém está convencido de que a sua perspectiva do mundo não admite qualquer tipo de dúvida, não há discussão possível. Quando isso acontece estamos no país da ditadura.

terça-feira, março 08, 2022

Um mundo pior

     Penso que queria falar de outra coisa, não tenho bem a certeza. Não tenho a certeza sobre o que queria falar nem se aquilo que vou dizer é ou não acerca de uma outra coisa, acerca de um assunto diferente. A guerra, a guerra, a guerra, não nos sai da cabeça e aos ucranianos não lhes larga o pêlo. Confuso? Também acho.

    Desde que a guerra na Ucrânia estalou penso de vez em quando no que aconteceria se Trump ainda fosse presidente dos EUA. Ele diz que estivesse ele de cu postado na cadeirona da Casa Branca, Putin não se atreveria a invadir o país vizinho. Tretas.

    Trump vai dizendo as maiores enormidades sem que lhe caia a peruca. Como não conseguiu torcer por completo o mundo em que vivemos, criou a sua própria rede social onde a verdade é  o que ele quiser. Desse lugar imponderável não tenho tido eco, já dos seus discursos "live" tenho lido ou ouvido isto ou aquilo (ver aqui últimas enormidades). É aterrador imaginar que esta besta poderá ser reeleita dentro de alguns anos.

    Peço-te agora, amigo leitor, que faças um pequeno exercício masoquista. Imagina o mundo dentro de 3 anos. Putin e Xi Jinping serão líderes dos seus países (a menos que Deus exista e resolva atirar-lhes uns raios que os partam). Kim Jong-un continuará a reinar na Coreia do Norte. Nas arábias nada mudará. E, cereja no topo do bolo, um Trump reeleito nos EUA.

    Voltando ao início deste post, não sei se imaginar isto tem qualquer tipo de relação com a guerra na Ucrânia. Sei que tem a ver com um mundo pior, um mundo muito pior...


domingo, março 06, 2022

A guerra é a guerra

    Crime de guerra? O que pode ser isso? A guerra, em si própria, é o maior de todos os crimes. Um “crime de guerra” faz pouco ou nenhum sentido. O que esperamos de soldados que entram em combate? Que respeitem o inimigo que desejam matar? “Desculpa lá inimigo, eu não queria fazer isto mas prometi lealdade ao meu país, ao meu líder, ao meu povo, prometi lealdade a tudo menos a mim próprio, vou matar-te mas, acredita, faço-o terrivelmente contrariado.” PUM!  

    Se um soldado assassinar um civil a tiro é um crime deliberado. Se matar uma mão-cheia de civis disparando um míssil transviado teve azar. Simplesmente. 

    Anuncia-se que há pessoal do Tribunal Penal Internacional a viajar para a Ucrânia na tentativa de recolher provas de possíveis crimes de guerra. Muito sinceramente parece-me a coisa mais inútil de entre o rol interminável de coisas inúteis relacionadas com a guerra. Com esta ou com outra qualquer. O que se espera? Levar a tribunal os responsáveis por mais esta carnificina? Ponham o Putin na fila, há mais uns quantos assassinos em massa à frente dele mas jamais algum será julgado.      

    A força exerce-se sobre os fracos.

sexta-feira, março 04, 2022

Culpa

     Não, não! Não era aquilo que havia imaginado. Tudo correra mal e o resultado vergonhoso estava ali, diante dele, como uma cicatriz indisfarçável, impossível de ignorar. O que fazer agora? Como explicar a quem quer que fosse os tortuosos caminhos que o haviam conduzido até ali, até ao desastre absoluto?

    Arrepelou os cabelos puxando-os para a nuca, sentiu uma transpiração miudinha, um rubor que não conseguia perceber: vergonha? Fúria? Largou o corpo numa estranha dança toda feita de gestos tensos, braços para um lado, pernas para o outro. Agachou-se. 

    No chão, entre areias e poeiras, um carreiro de formigas executava alguma tarefa conjunta no seu característico passo apressado; "putas das formigas!" pensou.

    E destruiu o carreiro, pisando, saltando, pontapeando, todas as formigas foram exterminadas. Enquanto limpava o sarampo aos insectos na sua demência insecticida alheou-se da angústia que sentia. Por momentos imaginou que tudo estava resolvido. Rapidamente se apercebeu que não, que estava tudo exactamente na mesma. A culpa fora sua.

quinta-feira, março 03, 2022

Ser pelos fracos

    As reacções à guerra na Ucrânia têm estranhos contornos. As pessoas vão-se dividindo, umas a favor, outras contra, creio que poucas ficarão indiferentes. Há uma certa necessidade de declararmos a nossa posição e, nesta guerra, talvez por ser na Europa, poucos são os que não escolhem um dos lados. A neutralidade tem aspecto de vaca magra.

    Pessoalmente sinto uma profunda aversão em relação a Vladimir Putin, já várias vezes declarada aqui no 100 Cabeças. Quanto aos líderes ucranianos não posso dizer que morra de amores por eles mas não consigo ficar indiferente à agressão de que estão a ser vítimas. Haverá muitos telhados de vidro sobre o território da Ucrânia, acredito piamente, mas como aceitar a brutalidade agressiva do urso russo? Nesta guerra tomo o lado dos mais fracos, como sempre. Sou pelos fracos.

    A forma como os meus amigos comunistas se enfileiraram ao lado do carrasco russo deixou-me incomodado. Agora vêm dourar a pílula, jurando a pés juntos que são contra a guerra (serão pacifistas?) que nunca apoiaram a passagem do rolo compressor da máquina guerreira de Putin pelo território ucraniano, etc. e tal. Mas a sensação que fica, porventura ampliada pelos mass media, é a de que se trata de jogo de cintura tentando fugir com o rabo à seringa. O ódio (tal como o amor) à NATO faz razia no bom senso.

    Nestas coisas há muita fé à mistura. Precisamos de acreditar numa narrativa que nos é oferecida. As questões que colocamos dificilmente obtêm respostas inequívocas, caem sobre nós palavras inflamadas, pancadas no peito e vozearia tonitruante. Ficamos impressionados, tendemos a acreditar. Mas não sou capaz de deixar de pensar que em estado de guerra, tal como na religião o reino do céu, é aos pobres de espírito que está prometida a verdade.