quarta-feira, janeiro 12, 2022

Eternidade

     É duvidosa a qualidade daquilo que nos é oferecido embrulhado em papel rasqueiro, com o laçarote abatido e as cores comidas pela luz do sol. Pelo embrulho não há ali grande promessa. Um a um vamos evitando deitar-lhe a mão, ninguém quer desfazer o laçarote. Uns assobiam para o ar, outros distraem-se com uma mosca que passa. Mas a coisa está ali. Misteriosa, escondida no meio da sala à vista de toda a gente. Indesejada...?

    Sentado de costas para o embrulho tento desesperadamente alhear-me dele. Mas é complicado. Sinto passos atrás de mim. Será que é agora que vai ser aberto? E se for aberto, o que estará lá dentro? Transpiro um pouco. Não há qualquer som que se assemelhe ao rasgar do papel. Sapatos na alcatifa, peidos nas calças, arrotos nas gargantas... pouco mais.

    Se o  embrulho fosse bonito, se a coisa tivesse um aspecto apetitoso, decerto já alguém haveria reclamado a sua posse. Sinto um impulso. Sinto que não virá mal ao mundo se me levantar dando meia volta, encarando o pacote, avançando para ele. Sinto que poderei rasgar o papel, abrir o embrulho e apoderar-me do que quer que ele contenha. Em princípio, caso o conteúdo seja insuportavelmente repulsivo, poderei sempre rejeitá-lo. Mas, tal como veio assim se foi o impulso.

    Olho de soslaio dois ou três figurões que me estão próximos. Eles olham-me do mesmo modo furtivo. Estamos nisto vai para uma eternidade.

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