quarta-feira, janeiro 26, 2022

Tocar como Midas

     O tão celebrado "toque de Midas" mostra bem a estupidez que reina sobre os nossos destinos. A maravilhosa capacidade de transformar em ouro tudo aquilo que a mão toque é, na verdade, uma tremenda maldição para quem a possua. O "toque de Midas" é uma sentença de morte para o seu portador e um risco terrível para quem dele se aproximar. Comer ouro não é possível, conviver com estátuas de ouro um infinito aborrecimento. O "toque de Midas" é um toque mortal.

    O próprio Midas implorou aos deuses que o livrassem daquela maldição mas a nossa sociedade continua a valorizar o dito toque. Somos burros? Sim, somos. Muito burros mesmo. Perante o brilho do ouro tendemos a ficar embrutecidos, a ganância devora-nos a razão. 

    A moral deste mito poderá estar relacionada com a voracidade infinita dos poderosos e a sua infinita capacidade para querer mais e nunca se darem por satisfeitos, mesmo que detenham uma fortuna impossível de quantificar. O mundo está cheio de reis Midas cujo toque transforma as vidas de milhões de pessoas em calvários de miséria.

    Midas não transforma em ouro tudo o que toca. Midas transforma tudo numa mistela de merda, dor e miséria. Este é o verdadeiro dom dos que tocam como Midas.

sexta-feira, janeiro 21, 2022

Amanhã

     Organizar o tempo que há-de vir é tarefa para atenuar as dores causadas pelo presente que se vive. Se o dia de hoje se apresenta pouco prometedor podemos sempre pensar no dia de amanhã, imaginar o mês que vem, apontar no calendário, rabiscar na agenda, esboçar o futuro é calmante.

    O facto de podermos desaparecer pelo caminho nem sequer nos ocorre. Planear o futuro confere-nos um levíssimo perfume de imortalidade, uma garantia de que haverá tempo para lá da noite que se avizinha. E algo para preencher esse devir.

    Como diz a canção dos Ornatos Violeta: "ouvi dizer que o mundo acaba amanhã e eu tinha tantos planos pra depois..."

segunda-feira, janeiro 17, 2022

Imaginação ruminante

    

Saudade morta; técnica mista, tamanho A3; Janeiro de 2022

    A coisa nem sempre é fácil, por vezes é mesmo bastante difícil. Partir para cima de uma narrativa visual sem qualquer plano pré-determinado poderá parecer uma insensatez. Na verdade não é. Na verdade isso faz parte de um processo. Chamo-lhe "hibridização anárquica" e expliquei-o aí atrás num post qualquer (fui procurar e encontrei esse tal post no dia 30 de Julho de 2009!). Releio o texto e fico satisfeito. Parece-me que o processo fica bem explicado.

    Entretanto passaram 12 anos e picos sobre o texto referido e continuo a produzir imagens seguindo o mesmíssimo processo. Criar imagens sem pretexto é uma actividade que me apaixona. Normalmente sou uma pessoa pouco aventureira, gosto de ficar por casa, sou um tipo dado a confinamentos. Se não tiver outras  metas a atingir posso fazer 2 ou três desenhos num dia... ou não fazer nenhum ("ai que prazer não cumprir um dever, ter um livro pra ler e não o fazer").

Diversos títulos; à esquerda a matriz criada segundo o processo de hibridização anárquica em tamanho A3, os outros 2 desenhos são em suporte de papel com 50X65 cm, o do centro a canetas de gel, o da direita com tinta da China.

  Os produtos deste processo anárquico acabam por estar na origem de trabalhos muito mais ordenados, feitos a partir de projecções de fotos que tiro aos ditos desenhos selvagens. Aí a questão coloca-se muito mais ao nível da técnica. Algumas coisas podem ser alteradas (normalmente há alterações) outras acrescentadas. É uma anarquia mais suave.

    Tudo isto é fruto de uma sensibilidade sem freio, deixada a pastar nos prados imensos da imaginação. Uma sensibilidade ruminante e pascácia que me faz pensar sobre a vida intelectual das vacas e das ovelhas. Serão animais assim tão desinteressantes?

domingo, janeiro 16, 2022

Incapacidade

     Por vezes sinto a falta de Fé. Se bem me lembro houve um tempo em tive Fé, penso que em Deus. Hoje não tenho Fé nenhuma, pelo menos nada que possa perceber dentro de mim. Talvez por ser algo que perdi há tanto tempo não lhe sinto grandemente a falta, nem me sinto órfão por não conhecer Aquele que é, em princípio, o meu Deus. Diz o povo que "quem não sabe é como quem não vê".

    Imagino que a minha falta de Fé seja responsável pelo pouco crédito que dou aos que batem no peito durante a missa, que vejo como gorilas em busca de consolo para a sua bestialidade. Quero crer que alguns desses desgraçadinhos instantâneos sejam sinceros e acreditem, de facto, naquele ritual. Também me custa muito imaginar um Deus burocrata, de livrinho em punho, registando o deve-e-haver dos nossos pecados.

    Bem que gostava de ter Fé em Deus, a sério que gostava. Mas não sou capaz.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

Eternidade

     É duvidosa a qualidade daquilo que nos é oferecido embrulhado em papel rasqueiro, com o laçarote abatido e as cores comidas pela luz do sol. Pelo embrulho não há ali grande promessa. Um a um vamos evitando deitar-lhe a mão, ninguém quer desfazer o laçarote. Uns assobiam para o ar, outros distraem-se com uma mosca que passa. Mas a coisa está ali. Misteriosa, escondida no meio da sala à vista de toda a gente. Indesejada...?

    Sentado de costas para o embrulho tento desesperadamente alhear-me dele. Mas é complicado. Sinto passos atrás de mim. Será que é agora que vai ser aberto? E se for aberto, o que estará lá dentro? Transpiro um pouco. Não há qualquer som que se assemelhe ao rasgar do papel. Sapatos na alcatifa, peidos nas calças, arrotos nas gargantas... pouco mais.

    Se o  embrulho fosse bonito, se a coisa tivesse um aspecto apetitoso, decerto já alguém haveria reclamado a sua posse. Sinto um impulso. Sinto que não virá mal ao mundo se me levantar dando meia volta, encarando o pacote, avançando para ele. Sinto que poderei rasgar o papel, abrir o embrulho e apoderar-me do que quer que ele contenha. Em princípio, caso o conteúdo seja insuportavelmente repulsivo, poderei sempre rejeitá-lo. Mas, tal como veio assim se foi o impulso.

    Olho de soslaio dois ou três figurões que me estão próximos. Eles olham-me do mesmo modo furtivo. Estamos nisto vai para uma eternidade.

domingo, janeiro 09, 2022

Ambições

     Estando o ano no seu início um gajo tem um ou outro momento de paragem em que lhe dá pra pensar. Pensar na vida, talvez, ou pensar numa coisa qualquer (que acaba sempre por ter a ver com a vida, caso contrário um gajo estaria a ter pensamentos de pessoa morta). Então foi aí que pensei: "sou um artista, ou lá o que sou... um pintor!" pensei um bocadinho melhor no que faço para viver e reformulei: "aquilo não são bem pinturas e eu, bem vistas as coisas, não sou bem um pintor". Pois não.

     Nem pinturas, nem pintor. Desenhos e professor e será tudo muito mais justo, como uns slips no lugar de uns boxers. Pode alguém ser quem não é? Pergunta o Sérgio Godinho. Ser, ser, acho que não, mas pode parecer (que muitas vezes é ainda melhor do que ser), respondo eu, que estou a matutar no Sentido da Vida a ver se descubro alguma promessa de Ano Novo que seja coisa que me não envergonhe. Mas não sai nada. Estou com prisão de mente.

    A páginas tantas já me sinto enfastiado de estar a fingir que sou capaz de me interessar pelo futuro. Não sou. Nem sequer sou capaz de ser ambicioso. Digo eu. Um copito de tinto e uma bela fatia de presunto já me deixariam sorridente. Isso e o meu pai bem disposto, a minha filha sempre jovem e a minha esposa sempre linda e jovial. Ah, caraças, afinal sou muitíssimo ambicioso!!!

sábado, janeiro 08, 2022

Palestrando

     O homem mantinha-se vertical, aparentando uma solidez invejável. Os seus braços desenhavam suaves arabescos e a voz, profunda como o eco de um poço, produzia um efeito hipnótico arrebatador. Na sala todos se sentiam maravilhados. Todos, excepto o homem que se mantinha vertical e desenhava com os braços suaves arabescos.

     As pessoas sentadas em filas de cadeiras perfeitamente alinhadas apresentavam excêntricas deformidades: tentáculos, guelras arquejantes, olhares desorbitados, dentuças amarelentas, beiços salivantes. O homem produzia um esforço sobre-humano para manter a compostura, não perder o fio narrativo, conseguir falar, não gritar, não fugir, não matar.

    A palestra durou exactamente uma hora, conforme o previsto. Quando terminou, o palestrante, ouviu os aplausos e ficou surpreendido por ver que todos os presentes tinham um par de mãos que batiam com maior ou menor entusiasmo. Uma senhora vestida com extraordinário bom gosto sorriu-lhe de uma forma especial. Ele sorriu de volta.

segunda-feira, janeiro 03, 2022

Virar páginas

     Começa um ano novo e toda a gente desata a virar páginas. Imagino que as virem no sentido do fim da narrativa que estão a seguir, sim, porque podemos virar páginas voltando para trás. Da parte que me toca prefiro conceber a minha história numa única página. Uma página grande, imensa, toda riscada com um diagrama caótico e confuso, repleta de pequenos textos, desenhinhos, setas para cima e para baixo, espirais ascendentes, manchas indefinidas, eu sei lá, uma página que seja um mundo, o meu mundo.

    Há dentro de mim discretos desejos que espreitam por detrás de vícios antigos, outros tentam não incomodar os meus sólidos e gordos preconceitos. Sinto o sopro de ténues possibilidades de mudança que, bem vistas as coisas, não dependem tanto da passagem do ano, antes vão brotando de uma passagem do tempo mais vasta, indiferentes às páginas do calendário, agarradas aos ponteiros de relógios  pendurados nas paredes da minha imaginação.

    Se a minha imaginação tem paredes é bom que lhes abra amplas janelas.

    E pronto: cada dia uma página virada, cada promessa uma página a virar, cada mentira uma página rasgada. Imaginamos a nossa vida como se fosse um livro. Quando os livros desaparecerem por completo as vidas dos nossos descendentes serão muito diferentes. Decerto não haverá virar de página no final de cada ano, talvez nem haja nada para ser virado, talvez tudo se organize numa linha recta infinita, como a Recta dos Números. Ou talvez não.