Adaptar o Rei Ubu para o Teatro na Gandaia foi a
coisinha mais apaixonante que me foi permitida experimentar desde que
ando a fazer pelo teatro. A princípio senti-me um pouco (muito)
intimidado; era o respeitinho a fazer-me tremer as manitas sobre o
teclado, o não querer defraudar o autor, nem a tradição, muito menos a
grandeza da coisa, enfim, estava um tanto ou quanto acagaçado. Li
versões que fui encontrando, observei longamente milhentas imagens das
milhentas encenações que pululam nas páginas da Net, nada me descansava,
antes pelo contrário. Quanto mais penetrava o espírito da coisa mais me
parecia estar com o rabo à mostra. Sentia uma espécie de frio nas
nalgas, o nariz enregelado mas… eu seja corno, havia que meter mãos à
obra e deixar pruridos merdosos no fundo da gaveta: ou bem que somos
homens ou então somos ratos ou outra merda qualquer, gâmbias de Deus!
Acredito piamente que a arte é uma massa informe (uma coisa plástica)
que se encontra eternamente em suspensão à espera que alguém lhe deite a
unha e faça dela uma coisa nova. Uma forma artística depende do tempo e
do lugar em que vê a luz, não há vacas sagradas. Traduzir um texto é
sempre reescrevê-lo. Perante o Ubu não havia que temer. Afinal de contas
trata-se de um texto tão desopilante que se pode fazer dele quase tudo o
que se queira desde que se mantenha fidelidade absoluta à brutalidade
daquele gajo hediondo que tem como objectivo principal viver acima das
suas possibilidades à custa do sofrimento alheio. Uma personagem
clássica, aquele Ubu.
Como referências tinha o exemplo da banda que
dá pelo nome de Pére Ubu e o dos punks de um modo geral, admirava de
toda a minha alma os dadaístas nas suas múltiplas e corrosivas formas de
expressão artística (ah, o grande Dada Max!), sentia-me capaz de fazer
alguma coisa concreta e consequente com aquela massa plástica que o
texto de Jarry colocava à minha frente, só me faltava o atrevimento que,
confesso, não será o meu ponto mais forte nem mais óbvio. Lá me
convenci a meter mãos à obra; primeiro titubeante, às apalpadelas,
depois, à medida que ia avançando, cada vez mais convicto e mais feliz
por me permitir a liberdade de comungar daquela intemporalidade
maravilhosa que ia descobrindo a cada passo. Quando terminei percebi que
participara na gestação de uma coisa selvagem.
Entreguei o texto à
Ana Nave confiando na sua capacidade de dar vida ao texto mais abstruso,
a sua extraordinária capacidade de fazer o teatro acontecer. Agora
havia que aguardar.
Passaram meses de ensaios. Domingos e
segundas-feiras. O grupo de actores foi-se ajustando, tal como o texto. A
tal massa informe a ganhar contornos visíveis. A Rafaela Mapril tornou
reais as figuras das personagens com esplendorosos figurinos, o Zé Rui
iria ser o responsável por esculpir o espaço cénico a golpes de luz,
tudo se conjugava daquela forma próxima da magia que é própria do
Teatro.
Quando assisti ao primeiro ensaio geral fiquei embevecido.
Apesar de todas as irregularidades e arestas por limar a coisa tinha a
força que imaginara: grotesca, excessiva, brutal, potencialmente
repelente mas plena de força, carregada de um vigor e de uma boçalidade
capazes de incomodar os espíritos sensíveis, tal qual imaginara que
poderia ser. Acredito que o resultado deste trabalho apaixonado não
envergonharia o próprio Jarry, passe a imodéstia.
No dia da estreia
compreendi que das duas uma: o espectador iria amar aquele objecto
teatral ou odiá-lo, não me parece que a magnífica representação de todos
os actores que estiveram em palco possa ter proporcionado sentimentos
próximos da indiferença aos que assistiram, sentados na plateia do
António Assunção.
Não há agradecimentos a fazer. O Rei Ubu não se agradece, faz-se!