Se João Miguel Tavares pudesse vir um bocadinho para dentro da minha
cabeça, depressa compreenderia, com total nitidez de contorno, que a sua
conversa sobre a realidade ser de direita (ler aqui) é uma refinada tolice. Claro que se
fosse eu a viajar para dentro do cérebro de João Miguel Tavares decerto veria o
mundo ao contrário daquilo que vejo, cá deste lugar que sou eu.
Poderia argumentar, por exemplo, que optar por estabelecer os
opostos numa nova dicotomia, ricos vs.
classe média, afirmando que “os verdadeiramente pobres são os que morrem
silenciosamente no Mediterrâneo”, é um insulto a milhões de portugueses que não
sonham o que seja isso de “classe média” porque são tão pobres como muitos dos
que se afogam no Nosso Mar. Sei que o João Miguel Tavares não quer insultar
ninguém mas, visto de dentro da minha cabeça, aquela sua dicotomia modernaça é uma
coisa sem sentido. Para mim, que vivi a infância em pleno salazarismo, há
pobres, ricos e remediados; uma espécie de tradução para a vida quotidiana da
distinção entre paraíso, inferno e purgatório que me ensinaram nas sessões de
catequese. Depois da revolução entraram novas classificações sociais: os
camponeses e os operários ganharam forma, comecei a ouvir falar de luta de
classes e a coisa fazia todo o sentido. Fazia sentido naquele tempo e continua
a fazer sentido nos dias que agora correm, apesar das toneladas de maquilhagem
que lhe atiram para cima da tromba, na tentativa de fazer com que ela (a luta
de classes) deixe de ser verdadeira e se assemelhe a uma prostituta barata em
fim de carreira.
E depois temos a TINA que, vista daqui, é uma espécie de canga como a
que se arriava no cachaço das bestas que haviam de puxar o arado. Agora há tractores
e jovens agricultores, já não há carros de bois e alcoólicos analfabetos, mas a
vontade de lutar por uma vida melhor não deixa de ser parte da realidade. Agora
há pulseiras electrónicas e prisões domiciliárias mas a sede de justiça nem por
isso é saciada. Quando me lembro da miséria absoluta que era o meu país há 40
anos percebo como agora vivemos incomparavelmente melhor. Também percebo que,
para se ter operado tamanha transformação, foi necessário gritar muito, fazer muita
greve, atirar muitas calhoadas à TINA e levar umas quantas bastonadas no
toutiço. Nada do que temos hoje nos foi oferecido de mão beijada nem vai durar
para sempre. É por essas e por outras que recuso a ideia de que a realidade
seja de direita; a direita precisa de ser ajudada a exercer a justiça. É um
favor que a esquerda lhe costuma fazer e vice-versa.
Na minha juventude aprendi muitas coisas encostado a balcões de tasca,
ouvindo bêbados e todo o género de filósofos analfabetos. Foi na tasca que
aprendi que a realidade é o que nós fizermos dela. Nas aulas de Filosofia a
coisa ficava muito confusa.
2 comentários:
Gosto de ler este blog e gosto de ler o JMT;
Para reflexão dos que lêm este blog, só alerto para que pensem em que países se vive melhor; naqueles em que as "conquistas da classe operária" foram/ e são a regra e as lutas são como em Portugal: .de vitoria em vitoria até a derrota final(basta ver os sucessivos discursos de 1º maio) ou aqueles onde o capitalismo "imperialista" tem sido regra. Comparem só os números, deixem as narrativas de fora e meditem sobre os factos.
A questão, caro António, não é onde se vive pior ou melhor. A questão é que se não tivermos nada, seja num país capitalista ou num país socialista, não vejo grande diferença. Da parte que me toca nem tenho grandes problemas. Para mim é fácil reflectir e produzir um discurso ponderado e distanciado pois tenho uma boa casa, a barriguinha vai crescendo com o passar dos anos, a minha família vive bem. O problema dos que não têm nada (ou têm muito pouco) é igual seja aqui, seja na China ou no Paraguai. São os tais "famélicos da terra" da letra da Internacional...
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