domingo, junho 21, 2015

As vozes

Sinto-me azedo. Devo estar estragado. As vozes dentro da minha cabeça querem comer-me os olhos. As vozes dentro da minha cabeça querem fazer-me cego. Mas eu quero continuar a ver e faço de contas que não as ouço.

As vozes dentro da minha cabeça não podem ter a certeza de que se fazem ouvir. Vou conseguindo manter o poder da visão. As vozes na minha cabeça estão agitadas. Falam umas por cima das outras. Já não sussurram. Agora todas falam alto, algumas gritam. Mas eu aguento a confusão e continuo a olhar para o mundo.

As vozes dentro da minha cabeça querem comer-me os olhos mas, estou em crer, as vozes não têm dentes. Na verdade querem assustar-me, fazer-me acreditar que não vejo. Mas ainda agora vi um bebé a sorrir e reparei que as nuvens eram tão brancas que o céu ganhou uma maravilhosa tonalidade de azul . 

sexta-feira, junho 19, 2015

Esquecimento absoluto

Não, eu também estou de acordo.
Sim, já não existe uma luta de classes. O que é isso!?

Quando se fala em "luta de classes" há sempre algum doutor pronto a explicar que isso é uma coisa do passado, que nas actuais democracias ocidentais essa designação não faz sentido.

Pois, não poderia estar mais de acordo, a luta é coisa do passado; actualmente vivemos é uma guerra! Uma guerra de classes.

É uma guerra fria, uma guerra não declarada entre inimigos impossíveis de conciliar. De um lado o exército do Capital. Do outro lado o exército dos Contestatários. O Capital tem armamento muito superior ao dos Contestatários que, no entanto, são um exército muitíssimo mais numeroso. É a guerra da força contra o número.

Não se vislumbra a mínima possibilidade de alguém ou alguma coisa conseguir debelar a intensidade deste confronto, embora muitos estejam convencidos de que um entendimento proveitoso para ambas as partes pudesse ser alcançado. O que falta em bom senso sobra em ambição.

Há quem afirme que esta guerra vai durar enquanto houver um mínimo de organização social. Os mais extremistas destas teorias pensam que, mesmo que a nossa espécie regresse a um estado civilizacional vegetativo, a um sistema de organização de nível pré-histórico, existirá um fosso a separar uma minoria que explora a maioria e que tende a acumular os bens produzidos ou recolectados.

Mesmo que voltemos a subir às árvores para dormir uma noite mais ou menos descansada a guerra de classes não deixará de minar as nossas relações sociais, não deixará de corroer o futuro. Assim, o futuro nunca se distinguirá significativamente do passado até que ambos colidam num estrondoso novo Big Bang, um fabuloso Big Bang filosófico e conceptual que irá atirar a memória do nosso tempo para um limbo que nenhuma outra espécie jamais será capaz de aperceber.

Será o esquecimento absoluto. 

terça-feira, junho 16, 2015

Pé atrás

As coisas não são como são. As coisas são como as vamos fazendo ou como permitimos que outros as façam defronte aos nossos orgulhosos narizes. Mas há muito quem argumente que "não poderia ser de outra forma", que "o que tem de ser tem muita força" e os mais fatalistas arrumam a questão com o clássico: "é a vida, o que é que se há-de fazer !?".

"Perante factos não há argumentos"... peço desculpa mas sou obrigado a colocar uma ou duas questões antes de acenar afirmativamente que sim, que sim senhora. A verdade é que os factos nem sempre são, de facto, factos. Quantas e quantas vezes não se veio a perceber que um dado adquirido era, afinal, um dado perdido? Que uma certeza não passava de um logro, que o futuro havia sido mal desenhado e que o adivinho da moda não passava de um charlatão apoiado numa mão cheia de suposições travestidas de factos?

Ok, ok, há factos indiscutíveis. terá sido a pensar nesses que alguém criou a frase que abre o 2º parágrafo. Mas anda por aí muito gabiru que, à boleia do dito, nos quer enfiar todo o tipo de patranhas goela abaixo e olhos dentro. Eles vêm armados de gráficos, frases floridas, fatiotas bonitas, perfume e falinhas mansas. É preciso estar alerta.

Resumindo: perante factos, à cautela, o melhor é argumentar. Quanto mais não seja chegamos à conclusão de que, perante aquele facto, não há argumentos.

segunda-feira, junho 15, 2015

Ira

Por vezes é complicado engolir certos desaforos sem responder com a violência desejada. Uma educação cristã ajuda a cagar no assunto e a deixar andar o barco. Não é uma questão de oferecer a outra face, não vale a pena exagerar, é apenas ser capaz de perceber que a covardia e a pequenez de espírito também se explicam.

Mas a coisa fica a roer cá dentro, caraças. A vontade de rebentar... deve ser isto o tal pecado da Ira.

Apesar de não acreditar no Inferno nem em sítios desse género, o melhor é ignorar certas coisas que são ditas por quem ainda tem muito que viver e, certamente, muito também para aprender. Tal como eu.


sábado, junho 13, 2015

Último dia

Último dia de aulas. Sentado no recreio observo os alunos da minha escola a brincar. O sol confere um aspecto festivo a tudo aquilo, juntando-se à excitação do final do ano lectivo, a criançada faz um escarcéu magnífico.

Os mais pequenos correm, saltam, atiram água uns aos outros, gritam, berram, abrem os braços aos céus enquanto passam à minha frente em nítido excesso de velocidade.

Os mais ou menos grandes ensaiam pueris jogos de sedução. As raparigas parecem mais conscientes das regras do jogo do que os rapazes, que as seguem como que pairando um palmo acima do chão.

Os mais crescidos parecem apenas um pouco impacientes para que tudo termine e possam ir às suas vidas, finalmente fora do recinto escolar.

Ali sentado, observando em silêncio, sinto-me como se estivesse em casa a assistir na televisão a um programa da National Geographic sobre a vida selvagem.Sorrio, apercebo-me que estou feliz.

quarta-feira, junho 03, 2015

Porcaria nas ruas

As ruas estão a ficar com um ambiente mais poluído. A porcaria sai dos tubos de escape de carros, motos e autocarros. Os detritos característicos de uma sociedade de consumo atapetam os passeios e enfeitam as bermas das ruas alcatroadas. Papéis das mais variadas proveniências, restos de coisas mais ou menos identificáveis; lixo, porcaria, ruído e mau cheiro. Ok, nada de extraordinário - tudo normal!

Mas as ruas estão a ficar mais poluídas. Há um novo tipo de lixo a incomodar os transeuntes e a emporcalhar os passeios. São os missionários evangélicos, ansiosos por espalhar a palavra do Senhor.

Homens e mulheres de aspecto mais ou menos limpo, mais ou menos arranjado, mas sempre com aquele olhar de falcão disfarçado de pinto, que vão proliferando pelas ruas e avenidas deste subúrbio a que chamo casa.

Olhando bem, vendo a forma como se aprumam ao lado dos expositores que colocam à vista dos transeuntes, brochura na mão, a forma como conversam uns com os outros, como tentam passar uma imagem de bonomia e felicidade, olhando bem, noto que tudo aquilo não é mais que fachada.

Tal como todos os outros (os pecadores) estes seres iluminados pela centelha divina pretendem apenas alguém que os ouça, alguém que lhes dê atenção; tal como todos os outros pretendem ser amados e, se possível, suprema felicidade, ser admirados! Isso sim, caraças... aleluia para isso!!!

A admiração é um bálsamo infalível para as feridas da alma.

O meu problema com estas personagens é que elas não acreditam na liberdade, não são boas pessoas, estão sempre dispostas a apontar o dedo e acender as chamas do inferno para grelhar quem não acredita nas patranhas que elas fingem ser reais.

Esta malta actua como actuariam os vampiros: uma vez mordida, a vítima transforma-se num deles, sem apelo nem agravo, para toda a Eternidade. Que porcaria.

terça-feira, junho 02, 2015

Portas

Paulo Portas a pretender passar uma imagem de estadista: homem grave, ponderado e circunspecto, que coloca os superiores interesses da nação à frente das suas ambições, é uma das anedotas mais grosseiras a que assisti.

Portas está para o espectáculo da política como Paulocas, o palhaço, que tenta assumir a profundidade dramática de Hamlet segurando na mão direita o crânio de um bacalhau a escorrer azeite,

Portas alertando o povo para os perigos que os seus adversários políticos representam quando está em causa o futuro da nação, é um número de tal modo grotesco que, um atirador de facas que falhe o balão e perfure o peito da partenaire presa na roda, arrancará não mais que um ténue sorriso amarelo ao espectador aterrado.

Paulo Portas não é mais que um embaraço, o troca-tintas que escrevinha SMS e já ninguém leva a sério. Portas é um cadáver político, irrevogável suicida, um Lázaro regressado à vida da coisa pública pela mão de Passos Coelho que escolheu ser o que é: um autêntico Cristo oferecido em sacrifício para redimir os pecados de um povo inteiro que vive acima das suas possibilidades.

Passos ressuscitou Portas quando lhe ofereceu o lugar de vice-primeiro ministro. Mas, tal como Lázaro, quem regressa dos mortos exala um fedor insuportável e os vivos tapam o nariz à sua passagem.