Ontem comprei uma camisa que, mais tarde, verifiquei ser "made in Bangladesh". A primeira coisa que me veio à cabeça: terá sido fabricada por algum dos que morreram na derrocada daquele prédio que matou mil pessoas?
Não me buliu o coração nem um bocadinho e isso deixou-me um pouco incomodado. Se calhar não sou tão solidário como imaginava, não me preocupo com a espécie humana com o desvelo que se impõe a uma boa alma. Comprei a camisa porque era barata. Fiquei com ela porque o "made in Bangladesh" está escondido na etiqueta e não revela ao mundo essa minha nódoa moral?
Na verdade, o que se passou foi que quando reparei no pormenor da origem da camisa já estava no balcão, a pagar. Já tinha uma factura e digitara os números do meu cartão de débito na maquineta. Não me apeteceu dizer à empregada (que tinha cara de se preocupar mais com revistas cor-de-rosa do que com jornais "sérios") que não queria aquela camisa porque... porquê? Sou mais preguiçoso do que solidário.
Quando saí da loja tive uma iluminação! Talvez aquela camisa tivesse sido fabricada por Reshma, a rapariga que sobreviveu 17 dias sob os escombros do prédio que vitimou outras mil pessoas, entre colegas e nem tanto. Fiquei mais sossegado. Decerto que trazia no saco uma peça saída das mãos da rapariga protegida por Deus. É assim que os fracos se convencem que são mais ou menos fortes?
Leio que o salário médio de um operário no Bangladesh é de 29 euros (ver aqui). A camisa custou 12. Ou seja, quantas camisas daquelas faz um operário por dia já que duas e uns trocos pagam o seu ordenado mensal? É melhor nem pensar nisso, comprei uma coisa daquelas, para onde vai o dinheiro que paguei?
A tragédia fez com que o governo decidisse rever as condições laborais e a tabela salarial destes quase-escravos. As empresas que exploram o trabalho destas pessoas fazem valer o velho ditado "casa roubada, trancas à porta" e anunciam que irão investir nas condições de segurança das fábricas. Pouco perderão, igual a nada.
Se a morte de mil operários teve o condão de por em movimento todas estas acções o que aconteceria se tivessem morrido dois mil? Ou três mil... quantas pessoas precisam de morrer para que se faça justiça social? Quantas pessoas precisam de morrer para que o capitalismo selvagem fique manso, nem que seja por breves momentos?
6 comentários:
Excelente texto! O mesmo posso dizer sobre os tênis Nike. Tive um made in Vietnam.
pois... a conversa até podia ir mais longe, quantos despregados temos nós por cada fábrica de roupa que fechou e se deslocou para esses países onde os salários são ainda mais baixos que os nossos?
o capitalismo é um monstro voraz e insaciável que se alimente de operários/escravos asiáticos, desempregados europeus, pequenas empresas de todo o mundo e tudo o que lhe aparecer pela frente...
ainda se ao menos mordesse a própria cauda...
Tantas questões e tão pouco tempo, que temos de correr a trabalhar, ou somos excluídos sociais.
Como é que podemos ser solidários com essa gente, mais escrava que nós, para além dos desabafos? Como podemos ser solidários com eles e com os nossos vizinhos e connosco? Deixavas de comprar a camisa porquê? Trocavas por Made in Portugal? E havia? O operário entende as tuas preocupações? Se não entende, deves tê-las? Deves tê-las independentemente disso? Quantas pessoas já morreram e vão morrer, para que tudo vá ficando na mesma? Estas mortes não são vistas como danos colaterais no percurso para a problemática "justiça social"? Esta não é um patamar que tanto parece ser atingido, como vai desvanecendo?
Eu acho que o problema não é só do capitalismo selvagem, é também da selvajaria das mentes ignorantes e formadas no convencimento e na arrogância. Com curso e sem curso.
Mas tenho de ir a correr, dormir, porque amanhã tenho trabalho todo o santo dia, onde posso esquecer tudo isso no meio de mil problemas, 998 de caca, mas que fazem de mim um profissional ativo.
É preciso não exagerar nas críticas a ponto dos fabricantes deixarem de produzir seus produtos nesses países. Aí sim essas populações vão morrer de fome. Não quero com isso dizer que sou a favor de mão de obra "escrava". O que defendo é o direito desses trabalhadores escolherem o que melhor lhes apetece. E que por menor que seja o salário, me parece que são os melhores que podem desejar. Sem eles, seria a fome literalmente.
Eduardo, isso parece-me ver a coisa com um desfoque muito grande. É olhar para o detalhe sem ver o conjunto, nem esgravatar no conceito.
Que críticas afetam, verdadeiramente, os interesses industriais e financeiros, a ponto de os levarem a ter uma prática de responsabilidade social? Apenas a regulação do estado, operativamente e a educação e prática cívica das populações, ideologicamente.
De resto, o dinheiro não tem cor, nem cheiro, nem rosto, desvanece-se...
Ana, é difícil, nos dias de hoje, não comprar nada que não seja oriundo desses "paraísos laborais".
Zé, já em várias ocasiões aqui foi afirmado que a única verdadeira Internacional, a que vingou contra ventos e marés, é a Internacional Capitalista. Eles uniram-se.
Luís, Eduardo, de facto há uma opção para os que trabalham por salários de miséria nos Bangladesh mundo fora: ou são explorados ou vegetam, famélicos. É uma opção de merda, convenhamos.
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