segunda-feira, julho 09, 2012

Do artifício da beleza

 João Reis (em 1º plano) interpretando o judeu Shylock

A beleza é mera aparência ou tem de apresentar substância? Pode a forma sobrepor-se em absoluto ao conteúdo?

Estas questões (que sendo duas são, afinal, apenas uma) têm andado a dançar uma valsa complicada na minha cabeça, já que a música que tentam acompanhar é mais um tango com toques de punk rock que coisa melodiosa à boa maneira vienense.

As referidas questões começaram o seu baile destrambelhado no Sábado passado, quando fui assistir à versão de "O Mercador de Veneza" encenada por Ricardo Pais e que tive oportunidade de ver no Teatro Municipal de Almada.

É certo que não sou a personagem mais aconselhável para fazer uma crítica razoável de um espectáculo teatral. Falta-me muita coisa para poder ser eficaz na minha leitura. Mas a minha sensibilidade estética tem uns pózinhos de não-sei-quê e o facto de conhecer um pouco mais ou menos a peça de Shakespeare (mais pra menos que pra um pouco mais) permite-me esta atitude algo temerária de afirmar que o encenador quis fazer uma coisa e saiu-lhe outra.

Pretensiosismo meu, decerto e sem sombra para dúvida razoável, mas está dito, está dito! Que se lixe.

Ninguém me encomendou o sermão e não pretendo qualificar o trabalho de ninguém com estas linhas, quero apenas deixar aqui uma reflexão que me continua a dançar nas curvas da mioleira, dois dias após ter assistido à referida função. Estou a ver se me livro desta coisa para poder pensar noutras que irão igualmente deixar-me a nadar em dúvidas, como um pato de borracha amarelinha que nada flutuante no banho perfumado de um bebé.

Ricardo Pais dividiu a peça em duas partes bem distintas. As desventuras de Shylock, o célebre judeu que pretendia tirar um bife do peito manso do cristão António por juros vencidos de uma dívida por pagar, amontoam-se na 1ª parte desta versão. É o sumo da peça que se bebe todinho ali, no espaço de uma hora, mais coisa menos coisa.

A 2ª parte, apesar de mais curta, pretende, tanto quanto me foi dado entender, mostrar a beleza dos episódios que se debruçam sobre a paixão e o amor, numa exibição pouco conseguida de pretensa beleza visual e de texto melodioso,

Nem os actores a quem foi distribuída a função tiveram peito para elevar as intenções do encenador, nem a acumulação de situações melífluas resultou em nada mais que uma valente seca. Tanta beleza compactada acaba por chatear.

Fiquei a matutar sobre a possibilidade de a coisa mais bela do texto de Shakespeare ser a horrível maldade de Shylock e o seu discurso arrasador quando compara os judeus à restante humanidade. Os artifícios do amor, apesar da graciosidade feminina e das palavrinhas almofadadas, apesar dos jogos de luzes e da musiquinha em fundo, lamento dizê-lo, não resultaram feios: resultaram horríveis.

7 comentários:

Beto Canales disse...

Interessante ... O Mercador , independente de qualquer coisa, deveria ser visto por todos...

Silvares disse...

Beto, o Mercador de Veneza tem coisas...

Anónimo disse...

Coitado dos diretores de teatro, com você como crítico!

Erick Melino disse...

Belo texto!

Silvares disse...

Eduardo, sou apenas um espectador. Se fosse crítico talvez não tivesse um discurso tão explicito.

:-)

Erick, grato.

Lais Castro disse...

O que para mim é louvável no teatro é que, de certa forma, você sai da peça com ela dentro de você... para o bem ou para o mal., Para mim, isso é o que importa. Ótimo texto.

Silvares disse...

Lais, o teatro tem muitas faces...

:-)