Ontem sofri o "ataque" de uma memória mais enterrada no passado que um tesouro de duendes.
Trata-se de uma memória tão difusa que, hoje, ao recordar aquela recordação, fiquei a hesitar sobre se ela me pertence ou a terei pedido emprestada à fértil imaginação com que Deus Nosso Senhor presenteou a minha meninice.
Lembrei-me de um dia ter visto (na Feira de São Mateus, em Viseu?) o Homem Mais Alto do Mundo, o Gigante de Moçambique.
Dei por mim, pequenito, de mão dada a alguém (o meu pai?) dentro de uma tenda de lona mal iluminada com chão de terra batida.
Num pequeno palco de madeira por pintar estava sentado um homem enorme, com uns pés que não pareciam poder ser verdadeiros de tão descomunais. Ao seu lado outro homem, este tão pequenino que, tal como os pés do gigante, também parecia mentira.
O homem pequeno movia-se e sorria com um frenesim próprio da curta distância que separava as diferentes partes do seu corpo.
Alguém falava mas o som das suas palavras não era mais que um ruído de fundo. A imagem do Gigante absorvia tudo o que o rodeava, as coisas à sua volta faziam pouco sentido.
O Gigante levantou-se, muito devagar, em terrível esforço, levantou-se até ficar ali, de pé, meio torto, descaído para o seu lado direito. Tinha um olhar triste e ausente, como se não estivesse ali, o que conferia uma aura ainda mais irreal a toda a cena.
Não tenho a certeza se eu estava mais espantado do que triste, talvez ambas as coisas, em doses equilibradas. Era o primeiro homem negro que via em toda a minha vida e logo havia de ser aquele incrível Gigante.
A minha recordação não é mais do que isto. O resto posso apenas imaginar.
Esta vaga recordação fez-me pensar sobre a natureza estrambólica das imagens que produzo. Que influência poderá ter este episódio na construção do meu imaginário? Se conseguisse recuar no tempo, mergulhando no lodo espesso das memórias, o que iria eu encontrar que pudesse explicar a atracção que tenho pela disformidade, o carinho que sinto pelas coisas feias, o quase amor que destilo pelas coisas horríveis?
Talvez seja melhor continuar esquecido. Talvez esta memória não me pertença. Talvez o meu imaginário seja feito de recordações roubadas. Talvez toda a bizarria que sempre encontro de cada vez que pinto ou desenho seja fruto do momento actual. Talvez seja melhor deixar o passado dormindo a sua morte.
8 comentários:
Pode não ser, mas pode, perfeitamente, ser lembranças de infância! Essa historinha vem bem a calhar em sua biografia de artista!
Ah, agora percebo tudo!
o meu amigo e grande artista Azeitona também ficou tão impressionado com o gigante de Moçambique que uns anos depois de o ter visto teve mesmo de o materializar para lhe dar nova vida, olha(olhem) aqui:
http://the-dear-hunter.blogspot.pt/2011/09/o-mundo-segundo-emilio-azeitona.html
chiça, esqueço-me que esta não é bem a minha cara, mas a nossa.
eu sou o tal dear coiso, Zé para os amigos
Eduardo, vou anotar a ideia.
Jorge, esta é, apenas, uma história.
Zé, o Gigante do Mestre Azeitona é mesmo o Gigante!
Uma boa história não combina com "apenas".. (no comentário)
Beto, ainda estou a pensar no teu comentário.
Tão, tão, tão bonito, este teu post.
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