Visitar a Mona é uma espécie de ritual cumprido por gente que vem de todos os cantos deste planeta e, eventualmente, gente que vem de outros mundos que não este. Entra-se naquele palácio infinito, aquele palácio palácio pesado e pejado de objectos de arte das mais variadas proveniências cujo valor, todo somado, é muito mais do que incalculável.
O espólio do Louvre é o somatório desconcertante de sucessivos saques e roubos descarados levados a cabo por uma França que já foi imperial nos quatro cantos do tal planeta que alberga a maioria dos visitantes. Talvez por isso atraia tantos visitantes, por ser o centro, o buraco que absorve tantas coisas, vindas de todos os pontos do planeta Terra. Se um dia houver colonização espacial, decerto trarão novas relíquias para este lugar onde o tempo se transforma em pântano e arte se transmuta em fast-food para consumo imediato e digestão super rápida. A casa da Mona é uma fábrica de dinheiro.
Os visitantes da Mona, quando encontram uns cartazes a indicar a direcção e o sentido dos seus passos para que se dirijam até à sala onde ela está, lançam-se como zombies montados em galinhas com pernas poderosas através de salas e corredores e mais salas e mais corredores e mais salas, numa espiral meio demente, meio desvairada, ignorando olimpicamente a maior parte (se não a totalidade) das coisas por ali penduradas e expostas segundo uma lógica decerto inquestionável. Poucos se apercebem que, num dos corredores de acesso à sala da Mona, há mais 4 ou 5 (já não me lembro bem) pinturas do divino Leonardo. O pintor da cidade de Vinci.
Depois, lá no fim de tudo, no espaço fechado que se abre nas escarpas do deslumbramento pacóvio, lá está ela! A velha Mona do sorriso críptico, rodeada de uma multidão que fica sem saber bem o que faz ali, uma multidão a pairar num espaço mítico que, afinal, pouco tem de transcendente. Talvez por isso a maioria dos visitantes têm os braços erguidos e seguram objectos que fotografam a imagem profana mais sagrada do mundo. É um salão amplo, repleto de obras extraordinárias onde se destaca a monumental obra de Paolo Veronese representando as bodas de Canaã que é por muitos vista de costas.
O Louvre é isto mesmo, um imenso repositório de tesouros artísticos a maioria dos quais acaba ignorada pela esmagadora maioria dos visitantes que se contentam em visitar a Mona.
quarta-feira, agosto 31, 2011
terça-feira, agosto 30, 2011
Da natureza (e da arte)
Quando regressamos a um local que nos impressionou as nossas expectativas são conforme a nitidez das recordações que dele guardámos. O tempo encarrega-se de colorir e fazer brilhar as imagens ou, pelo contrário, dá-lhes contornos inesperadamente desagradáveis e obscuros; a memória está longe de ser algo em que possamos confiar plenamente.
Há uns anos atrás estive no Museu do Louvre e, nessa ocasião (ver aqui post sobre essa memória), procurara em 1º lugar "A Virgem do Chanceler Rolin", uma pinturinha de Jan Van Eyck que, na altura, me cortou o fôlego de forma tão absoluta e avassaladora que me fez chorar de comoção. A recordação que guardei foi de tal modo marcante que, neste regresso ao mesmo local, lá andei até encontrar a dita tábua pintada pelo mestre flamengo.
O tempo passou mais sobre mim que sobre a dita pintura que já vai na provecta idade de cinco séculos, mais coisa menos coisa e eu nem meio século tenho ainda. Sobre um objecto como aquele o tempo de vida já pouco poder o tempo detém mas, sobre um tipo como eu, o tempo muito pode e muito faz. A memória de um objecto luminoso e colorido como poucos (ou mesmo nenhum outro) excitava-me os sentidos. Neste reencontro tudo me pareceu diferente.
A tabuinha lá estava, rodeada por outras obras de que guardava, também, gratas recordações mas, desta vez, pareceu-me tristonha e pouco vibrante. Aguardei pacientemente que alguns visitantes munidos de "audio-guides" passassem ao ponto seguinte do seu percurso. Aproveitei para rever com detalhe a obra de Rogier van der Weyden, o "Tríptico da Família Braque" que também me apareceu escura e pouco de acordo com a memória gloriosa que dela guardava. Que raio!
Quando o espaço em redor da "Virgem..." se desocupou tomei o meu lugar. Sentia um direito especial para a contemplação daquela obra-prima da pintura universal. Afinal de contas fizera-me chorar na ocasião do nosso primeiro encontro e, desta vez, a química extraordinária que entre nós se havia estabelecido estava mais fraquinha que uma vela a tentar brilhar junto de um holofote.
Olhei e voltei a olhar. Mudei de posição, torci a cabeça, semicerrei os olhos e... nada! A magia não estava ali. Senti-me inquieto, incomodado mesmo. Olhei em volta mas não notei nada de especial nas outras pessoas. Tudo parecia estar dentro da mais aborrecida das normalidades.
Reli o post que escrevi em Março de 2006 sobre esta pintura e fiquei (estou) a pensar.
Talvez as condições de iluminação da sala agora sejam diferentes (tenho a sensação de que se trata de outra sala!), não posso afirmar nada de concreto. Talvez não seja possível repetir uma sensação tão marcante e avassaladora como aquela que quase me derrubou da primeira vez que vi "A Virgem...", talvez...
Agora sinto-me um pouco triste. Não encontrei outra vez aquela sensação de extraordinária felicidade que tivera anteriormente. Talvez nunca mais a encontre. É como recordar a primeira paixão. Lembras-te, estimado leitor? Lembras-te de sentir o coração aos pulos, o olhar desorientado, o corpo a ser atraído para a pessoa amada como se ela fosse um irresistível ímane que atraísse a tua carne, que atraísse todo o teu ser e te sugasse a alma? Há quanto tempo não experimentas essa sensação?
Há coisas que se sentem uma vez na vida. O resto será sempre saudade.
Há uns anos atrás estive no Museu do Louvre e, nessa ocasião (ver aqui post sobre essa memória), procurara em 1º lugar "A Virgem do Chanceler Rolin", uma pinturinha de Jan Van Eyck que, na altura, me cortou o fôlego de forma tão absoluta e avassaladora que me fez chorar de comoção. A recordação que guardei foi de tal modo marcante que, neste regresso ao mesmo local, lá andei até encontrar a dita tábua pintada pelo mestre flamengo.
O tempo passou mais sobre mim que sobre a dita pintura que já vai na provecta idade de cinco séculos, mais coisa menos coisa e eu nem meio século tenho ainda. Sobre um objecto como aquele o tempo de vida já pouco poder o tempo detém mas, sobre um tipo como eu, o tempo muito pode e muito faz. A memória de um objecto luminoso e colorido como poucos (ou mesmo nenhum outro) excitava-me os sentidos. Neste reencontro tudo me pareceu diferente.
A tabuinha lá estava, rodeada por outras obras de que guardava, também, gratas recordações mas, desta vez, pareceu-me tristonha e pouco vibrante. Aguardei pacientemente que alguns visitantes munidos de "audio-guides" passassem ao ponto seguinte do seu percurso. Aproveitei para rever com detalhe a obra de Rogier van der Weyden, o "Tríptico da Família Braque" que também me apareceu escura e pouco de acordo com a memória gloriosa que dela guardava. Que raio!
Quando o espaço em redor da "Virgem..." se desocupou tomei o meu lugar. Sentia um direito especial para a contemplação daquela obra-prima da pintura universal. Afinal de contas fizera-me chorar na ocasião do nosso primeiro encontro e, desta vez, a química extraordinária que entre nós se havia estabelecido estava mais fraquinha que uma vela a tentar brilhar junto de um holofote.
Olhei e voltei a olhar. Mudei de posição, torci a cabeça, semicerrei os olhos e... nada! A magia não estava ali. Senti-me inquieto, incomodado mesmo. Olhei em volta mas não notei nada de especial nas outras pessoas. Tudo parecia estar dentro da mais aborrecida das normalidades.
Reli o post que escrevi em Março de 2006 sobre esta pintura e fiquei (estou) a pensar.
Talvez as condições de iluminação da sala agora sejam diferentes (tenho a sensação de que se trata de outra sala!), não posso afirmar nada de concreto. Talvez não seja possível repetir uma sensação tão marcante e avassaladora como aquela que quase me derrubou da primeira vez que vi "A Virgem...", talvez...
Agora sinto-me um pouco triste. Não encontrei outra vez aquela sensação de extraordinária felicidade que tivera anteriormente. Talvez nunca mais a encontre. É como recordar a primeira paixão. Lembras-te, estimado leitor? Lembras-te de sentir o coração aos pulos, o olhar desorientado, o corpo a ser atraído para a pessoa amada como se ela fosse um irresistível ímane que atraísse a tua carne, que atraísse todo o teu ser e te sugasse a alma? Há quanto tempo não experimentas essa sensação?
Há coisas que se sentem uma vez na vida. O resto será sempre saudade.
segunda-feira, agosto 29, 2011
Não morri (na blogosfera) estive de férias
Após uns dias de férias na cidade de Paris, França, estou de regresso a casa e ao 100 Cabeças.
Paris, a Grande, a Enorme, a desmesurada cidade imperial das avenidas infinitas e dos milhentos palácios. Paris, a cidade do Louvre e de centenas de museus e catedrais e dos comedores de baguettes, Paris, capital, apenas, de França e não do mundo inteiro como por vezes os parisienses parecem imaginá-la.
Este regresso à Cidade Luz permitiu-me revisitar locais e rever objectos dos quais já só guardava memórias. Memórias agora reavivadas, memórias revigoradas que irão, com o passar do tempo, perder outra vez o seu brilho e voltar ao estado de vagas recordações que é a forma como conseguimos recuperar à distância o que guardamos nas prateleirazinhas do nosso cérebro.
Uma das coisas que trouxe de volta no avião foi a constatação de que prefiro a arte que é janela à arte que é espelho. Prefiro portas que se abrem no espaço e no tempo a objectos que me devolvem o olhar e me fazem reflectir sobre o que vejo sem me oferecer a contemplação de algo mais, algo mágico para lá do objecto.
Este é um tema que pede mais conversa e exige novos posts sobre ele. Por agora fico-me assim mesmo, a curtir apenas o regresso que é uma das grandes conquistas que se fazem quando viajamos.
Paris, a Grande, a Enorme, a desmesurada cidade imperial das avenidas infinitas e dos milhentos palácios. Paris, a cidade do Louvre e de centenas de museus e catedrais e dos comedores de baguettes, Paris, capital, apenas, de França e não do mundo inteiro como por vezes os parisienses parecem imaginá-la.
Este regresso à Cidade Luz permitiu-me revisitar locais e rever objectos dos quais já só guardava memórias. Memórias agora reavivadas, memórias revigoradas que irão, com o passar do tempo, perder outra vez o seu brilho e voltar ao estado de vagas recordações que é a forma como conseguimos recuperar à distância o que guardamos nas prateleirazinhas do nosso cérebro.
Uma das coisas que trouxe de volta no avião foi a constatação de que prefiro a arte que é janela à arte que é espelho. Prefiro portas que se abrem no espaço e no tempo a objectos que me devolvem o olhar e me fazem reflectir sobre o que vejo sem me oferecer a contemplação de algo mais, algo mágico para lá do objecto.
Este é um tema que pede mais conversa e exige novos posts sobre ele. Por agora fico-me assim mesmo, a curtir apenas o regresso que é uma das grandes conquistas que se fazem quando viajamos.
terça-feira, agosto 16, 2011
A fronteira de mim próprio
Há dias em que, à noite, me deito a pensar seja lá no que for. No dia seguinte, quando acordo, tenho a sensação que deixei algo importante no sonho. Esforço a memória mas não consigo recordar, não consigo trazer comigo aquelas matérias que tanto trabalho me deram durante o tempo em que estive adormecido. Coisas que, por qualquer razão, ficaram retidas na alfândega de Despertar. É como se houvesse alguma coisa (uma entidade?) a regular o tráfego de informação entre este mundo e o outro, a impedir o contrabando de segredos que transformariam a nossa existência em algo impossível de acontecer e ser vivido. Coço a cabeça, semicerro os olhos, torço o pescoço mas... nada! Ficou lá tudo. Sobra apenas esta sensação que pode nem ser verdadeira, que pode ser apenas uma réstea de sonho a ser ainda sonhado, um momento prolongado entre lá e cá, comigo no meio, o meu cérebro transformado em nada mais que mera fronteira. Há dias em que acordo a sonhar que sonhei algo que não consigo recordar.
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segunda-feira, agosto 15, 2011
Uma porta confusa
Começar o dia lendo o jornal é uma estranha forma de entrar no mundo enquanto dele se foge em simultâneo. Porque a leitura exige algum recato e uma certa concentração. Desligamos do mundozinho mais próximo, do lugar onde estamos estacionados, para podermos mergulhar no universo algo abstracto da informação. É uma porta por onde se entra ao mesmo tempo que se sai, o que me faz ter uma estranha e quase indecifrável sensação de que, por um infindável e curtíssimo momento, cada lugar pode ser o mesmo que todos os outros lugares não sendo igual a mais lugar nenhum. Confuso não é? Também acho. Não sei bem o que quero dizer com isto mas, como o tinha registado no meu caderninho de apontamentos, achei por bem verter aqui este pedaço de prosa próximo do intragável.
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domingo, agosto 14, 2011
sábado, agosto 13, 2011
Um livro muito bom
Uma pessoa leva o tempo que leva a encontrar certas coisas que lhe parecem estar destinadas a ser encontradas. "a máquina de fazer espanhóis" é um livro que me faz imaginar que é assim, que há destino e que está escrito e pronto. Trata-se de um livro que já foi lido por milhares de pessoas e que eu estou agora a ler. Não é novidade para as pessoas que já o leram mas está a sê-lo para mim. E é uma coisa absolutamente deslumbrante. O autor é valter hugo mãe que assina e escreve assim mesmo, tudo com minúsculas. Uma personagem interessante. Parece-me.
quinta-feira, agosto 11, 2011
Os monstros
A partir de agora, quando as crianças não queiserem comer a sopa poderemos ameaçá-las com os hooligans caso o papão já não faça efeito. Cada época tem direito aos seus próprios monstros e, nos últimos dias em Inglaterra, assistimos ao nascimento de toda uma nova estirpe de coisas más. Os bandos desvairados que têm posto a ferro e fogo as terras de Sua Majestade funcionam como estranhos espelhos da sociedade em que vamos vivendo.
Os bandidos são de géneros variados e diferentes proveniências. Vão desde crianças de tenra idade a rapariguinhas em idade escolar ou homens feitos, com responsabilidades em casa e família para educar. São de várias estratos sociais, uns pobres, outros nem por isso, alguns são assim-assim. A barbárie eclodiu em Londres mas depressa alastrou a outras cidades, um pouco por todo o reino. Isto mostra que o fenómeno é complexo e com múltiplas razões de ser.
O que tem toda esta gente em comum (ler aqui)? O que liga estas pessoas, aparentemente tão distintas? Meu deus, o que se passa? Ao que parece as motivações dos amotinados não são de ordem social, não têm a ver com questões raciais, não estamos perante um fenómeno de reivindicação de melhores condições de vida. Ao que tudo indica, os distúrbios generalizados por toda a Inglaterra estão relacionados com o mero e simples saque.
Sim, parece que é isso: saque, pirataria em terra firme. Tudo começou com um protesto junto a uma esquadra de polícia em Tottenham após a morte de um cidadão às balas da polícia mas a coisa descambou. Os bandos de delinquentes rapidamente concentraram as suas atenções em lojas de bens de consumo e foi isso que lhes serviu de motivação principal: consumir.
Os bandidos são, afinal de contas, consumidores que, de outro modo, não teriam acesso aos bens que tanto desejam. Vai daí, toca a partir, a pilhar, a incendiar, numa orgia consumista saída das profundezas do inferno. São monstros, terríveis monstros em busca de consumo fácil. Só isso. Tão simples e tão aterradoramente poético. Má poesia, mas, ainda assim, poesia urbana.
Os bandidos são de géneros variados e diferentes proveniências. Vão desde crianças de tenra idade a rapariguinhas em idade escolar ou homens feitos, com responsabilidades em casa e família para educar. São de várias estratos sociais, uns pobres, outros nem por isso, alguns são assim-assim. A barbárie eclodiu em Londres mas depressa alastrou a outras cidades, um pouco por todo o reino. Isto mostra que o fenómeno é complexo e com múltiplas razões de ser.
O que tem toda esta gente em comum (ler aqui)? O que liga estas pessoas, aparentemente tão distintas? Meu deus, o que se passa? Ao que parece as motivações dos amotinados não são de ordem social, não têm a ver com questões raciais, não estamos perante um fenómeno de reivindicação de melhores condições de vida. Ao que tudo indica, os distúrbios generalizados por toda a Inglaterra estão relacionados com o mero e simples saque.
Sim, parece que é isso: saque, pirataria em terra firme. Tudo começou com um protesto junto a uma esquadra de polícia em Tottenham após a morte de um cidadão às balas da polícia mas a coisa descambou. Os bandos de delinquentes rapidamente concentraram as suas atenções em lojas de bens de consumo e foi isso que lhes serviu de motivação principal: consumir.
Os bandidos são, afinal de contas, consumidores que, de outro modo, não teriam acesso aos bens que tanto desejam. Vai daí, toca a partir, a pilhar, a incendiar, numa orgia consumista saída das profundezas do inferno. São monstros, terríveis monstros em busca de consumo fácil. Só isso. Tão simples e tão aterradoramente poético. Má poesia, mas, ainda assim, poesia urbana.
quarta-feira, agosto 10, 2011
Sonho de uma noite de Verão
Hoje acordei com o rosto vestido de cores muito desmaiadas. Ao entrar na pastelaria, para tomar o meu café queimado, não sabia ainda se deveria falar com o empregado de balcão sobre o tempo que fazia, se de futebol ou do sentido da vida, coisa que se me revelara, para meu eterno espanto, durante o sono da noite anterior.
Fiquei-me pelos resultados futebolísticos da véspera e sobre a questão, não tão pouco metafísica quanto isso, de raramente haver coincidência entre o desejo do adepto e as realizações, sobre o relvado, da equipa que nos bombeia o sangue nas veias.
Percebi que, mais por pudor que por dúvida fundada, dificilmente poderia revelar a quem quer que fosse a revelação extraordinária que me visitara o sonho da noite anterior. Penso que foi logo ali que comecei a esquecer o sentido da vida, coisa que quase toda a gente tem por segredo divino. Isso, porque falar de futebol é bem mais fácil que jogá-lo e falar de coisas transcendentes não acompanha muito bem o cafézinho matinal, por muito queimado que seja e açúcar que lhe deitemos dentro.
Se assim não fosse (se falar da beleza fosse fácil) muitos de nós haveriam de se dedicar à prática quotidiana da Filosofia, como Sócrates na ágora. No café, no mercado, na paragem de autocarro, havíamos de filosofar sem remorso nem receio de sermos tomados por lorpas.
Talvez até pudessemos colher aquelas floritas amarelas que crescem bravias nos montículos de sujidade que se erguem com timidez entre os prédios e levá-las na mão sem ter vergonha dos olhares por trás dos cortinados e do vento, tão ligeiro. Talvez pudessemos levar as floritas na mão, como uma criança que transporta um motivo de orgulho contra o peito (uma rã ou um gafanhoto ou um passarinho caído em desgraça) com aquele gesto que, em simultâneo, protege e revela ao mundo uma coisa que não espanta ninguém mas faz de nós o mais feliz dos animais em volta.
Fiquei-me pelos resultados futebolísticos da véspera e sobre a questão, não tão pouco metafísica quanto isso, de raramente haver coincidência entre o desejo do adepto e as realizações, sobre o relvado, da equipa que nos bombeia o sangue nas veias.
Percebi que, mais por pudor que por dúvida fundada, dificilmente poderia revelar a quem quer que fosse a revelação extraordinária que me visitara o sonho da noite anterior. Penso que foi logo ali que comecei a esquecer o sentido da vida, coisa que quase toda a gente tem por segredo divino. Isso, porque falar de futebol é bem mais fácil que jogá-lo e falar de coisas transcendentes não acompanha muito bem o cafézinho matinal, por muito queimado que seja e açúcar que lhe deitemos dentro.
Se assim não fosse (se falar da beleza fosse fácil) muitos de nós haveriam de se dedicar à prática quotidiana da Filosofia, como Sócrates na ágora. No café, no mercado, na paragem de autocarro, havíamos de filosofar sem remorso nem receio de sermos tomados por lorpas.
Talvez até pudessemos colher aquelas floritas amarelas que crescem bravias nos montículos de sujidade que se erguem com timidez entre os prédios e levá-las na mão sem ter vergonha dos olhares por trás dos cortinados e do vento, tão ligeiro. Talvez pudessemos levar as floritas na mão, como uma criança que transporta um motivo de orgulho contra o peito (uma rã ou um gafanhoto ou um passarinho caído em desgraça) com aquele gesto que, em simultâneo, protege e revela ao mundo uma coisa que não espanta ninguém mas faz de nós o mais feliz dos animais em volta.
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terça-feira, agosto 09, 2011
segunda-feira, agosto 08, 2011
Luta de classes
Portugal, Egipto, Espanha, Israel, Inglaterra; as manifestações populares ganham formas e características particulares mas haverá algo de comum entre elas? Os problemas variam ligeiramente; desemprego entre as camadas mais jovens da população, dificuldades em conseguir um modo de vida que possa ser considerado digno, desencanto perante a realidade, desajustamento entre o sonho e a realidade. O mundo em que vivemos não é nada parecido com aquele em que julgamos viver. A constatação desse facto provoca a revolta e a rua é o palco de todas as representações desse desencanto.
Se isto a que assistimos não é uma luta de classes à escala global, alguém me explique que raio de coisa é esta? Se isto a que assistimos entre o almoço e o jantar não é a revelação da falência do sistema capitalista selvagem que engole o nosso modo de vida e a utopia civilizacional de matriz social-democrata que nos permitiu sonhar com uma Europa unida, alguém que me explique que porcaria é esta.
Deixámo-nos enganar, deixámo-nos seduzir por um modelo consumista de matriz hedonista e entregámos os nossos valores humanistas em troca de uma mão-cheia de gadgets made in Taiwan. Trocámos o sonho americano (que era muito semelhante ao sonho europeu) pelo pesadelo chinês e é isso que iremos viver. Nós e todos os outros.
Desigualdade, injustiça social, desequilíbrio na distribuição da riqueza, perda de direitos básicos, o retrato da realidade que nos apoquenta dificilmente poderia ser pintado com tons mais obscuros. A solidariedade é transformada numa anedota de mau gosto.
Por todo o planeta assistimos a manifestações que reclamam apenas uma e a mesma coisa, seja no mundo árabe ou na Europa, todos clamamos por justiça! Esse é o denominador comum: queremos justiça, queremos pôr fim à corrupção e à impunidade daqueles que, sob o manto diáfano do capitalismo, contribuem diariamente para atiçar este incêndio que está a consumir o mundo contemporâneo até o deixar num monte de cinzas fumegantes. Estamos em luta contra a única Internacional que sobreviveu à antiga (e reconhecida) luta de classes: a Internacional Capitalista. Enquanto não formos capazes de identificar o inimigo comum com a clareza que se impõe estaremos à beira do abismo civilizacional. É tempo de recuperar e reenquadrar o conceito de luta de classes.
É necessário refrear o ímpeto capitalista que transforma este mundo numa selva onde a única lei que perdura é a lei do mais forte.
domingo, agosto 07, 2011
Pode um filme aterrorizar alguém?
Hoje fui ver "Insidious", o filme de terror. Antes de qualquer outro tipo de considerações gostaria de deixar um pequeno tema de reflexão: que tipo de filme pode aterrorizar uma pessoa adulta? Bom, a resposta parece estar na ponta da língua: depende da pessoa adulta! Sim, talvez a pessoa seja o factor principal para a erupção do terror. O filme, as imagens, o som, a cadência narrativa, o momento do saltinho na cadeira, tudo isso são elementos potenciadores do terror.
O medo é diferente do susto. O medo permanece, o susto não é mais do que um momento, uma picadinha na alma que até nos pode fazer rir. De nervos. Os filmes de terror assustam mais do que infundem medo ou pavor no espectador. Se isso acontecer, se um filme for capaz de lhe deixar uma sensação de mal-estar depois de ter saído da sala de cinema, o melhor, caríssimo leitor, será desistir de ver esse tipo de filmes. Fazem-lhe mal. É por isso que, normalmente, estes filmes são para maiores de 16 anos e não é aconselhável deixar criancinhas ver coisas deste calibre.
Voltando a "Insidious" poderei dizer que é um filme de género, com os condimentos do costume. Alguns sustos, fotografia interessante, banda sonora a propósito, enfim, um objecto que revela uma competência industrial muito aceitável mas que falha no capítulo do terror, propriamente dito. Bom para trincar pipocas com mais força do que o habitual.
Tem aquele problemazinho de mostrar com demasiado pormenor os elementos aterradores, ao ponto de os transformar em bonecos pouco assustadores. Sou de opinião que um bom filme de terror deve esconder mais do que revelar, deve deixar à nossa imaginação a possibilidade de encontrar o motivo do horror. Mas, estou em crer, isso não é fácil e decerto vende muito menos pipocas!
O medo é diferente do susto. O medo permanece, o susto não é mais do que um momento, uma picadinha na alma que até nos pode fazer rir. De nervos. Os filmes de terror assustam mais do que infundem medo ou pavor no espectador. Se isso acontecer, se um filme for capaz de lhe deixar uma sensação de mal-estar depois de ter saído da sala de cinema, o melhor, caríssimo leitor, será desistir de ver esse tipo de filmes. Fazem-lhe mal. É por isso que, normalmente, estes filmes são para maiores de 16 anos e não é aconselhável deixar criancinhas ver coisas deste calibre.
Voltando a "Insidious" poderei dizer que é um filme de género, com os condimentos do costume. Alguns sustos, fotografia interessante, banda sonora a propósito, enfim, um objecto que revela uma competência industrial muito aceitável mas que falha no capítulo do terror, propriamente dito. Bom para trincar pipocas com mais força do que o habitual.
Tem aquele problemazinho de mostrar com demasiado pormenor os elementos aterradores, ao ponto de os transformar em bonecos pouco assustadores. Sou de opinião que um bom filme de terror deve esconder mais do que revelar, deve deixar à nossa imaginação a possibilidade de encontrar o motivo do horror. Mas, estou em crer, isso não é fácil e decerto vende muito menos pipocas!
sexta-feira, agosto 05, 2011
Há sempre uma esperança qualquer
Conta-se aquela história do gajo que se atira da janela de um 40º andar e, mal se lança no vazio, de imediato se arrepende de se ter lançado. À medida que se aproxima do chão vai pensando "já caí 20 andares e, até aqui, tudo bem... já caí 30 andares e, até aqui, tudo bem" quando toca o solo deixa de pensar o que quer que seja mas, até esse momento fatídico, foi alimentando rapidamente uma esperança qualquer de que pudesse acontecer alguma coisa absolutamente extraordinária que o mantivesse deste lado da vida.
Olho para as noticias que todos os dias vão dando conta do desmoronamento económico da União Europeia e das tentativas insistentes de alguns dos seus dirigentes em apagar este incêndio incontrolável que ameaça deixar em cinzas fumegantes o sonho das últimas décadas de construir na Europa uma nação comum a todos os europeus. Esses dirigentes fazem-me recordar o suicida da história que contei mais acima.
Era um sonho bonito mas, olhado de dentro, começa a transformar-se em pesadelo. Falta-nos quase tudo para podermos continuar a sonhar. Talvez seja tempo de despertar e olhar em volta. Ou acordar e manter os olhos cerrados.
Olho para as noticias que todos os dias vão dando conta do desmoronamento económico da União Europeia e das tentativas insistentes de alguns dos seus dirigentes em apagar este incêndio incontrolável que ameaça deixar em cinzas fumegantes o sonho das últimas décadas de construir na Europa uma nação comum a todos os europeus. Esses dirigentes fazem-me recordar o suicida da história que contei mais acima.
Era um sonho bonito mas, olhado de dentro, começa a transformar-se em pesadelo. Falta-nos quase tudo para podermos continuar a sonhar. Talvez seja tempo de despertar e olhar em volta. Ou acordar e manter os olhos cerrados.
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