Sentei-me num lugar qualquer, próximo da janela.Sentei-me ali só para sentir a paisagem já que a sujidade é tanta que de transparente o vidro só tem a translucidez. Lisboa, do outro lado do rio, é uma sombra luminosa quando olhada através da janela do cacilheiro. Dali olhada Lisboa é um borrão, sete colinas indefinidas, a capital de um Portugal meio desfocado, que é o que Portugal vai sendo nos dias que flutuam muito mais do que correm, como seria de bom tom.
A meu lado está um cidadão com aquele ar sizudo que tão bem assenta aos cidadãos da nação lusa. Tem aquela expressão grave de quem está a par das dores do mundo tanto quanto se sente enfastiado por saber tudo o que de importante o mundo tem para oferecer aos comuns mortais. Segura na mão uma daquelas coisas que são uma espécie de telemóvel.
Digo uma espécie de telemóvel porque o cidadão a meu lado entrega-se a uma actividade frenética. Parece-me que joga um jogo. O cidadão não despega dele os olhos nem o larga das unhas que saltitam no écrãzinho espelhado com uma rapidez estonteante. Pipópópipóóó, faz o objecto. Logo a seguir uns momentos de silêncio e, depois, pic, pic, pic, ao ritmo dos toques com que o meu vizinho o matraqueia, pic, pic, pic, pipópópipóóó.
Finjo que não reparo, é evidente, e tento olhar para Lisboa que o barco já vai navegando. Mas a cidade lá está, fantasmática e desinteressante por não se poder ver quase nada da sua afamada beleza luminosa. Olho em frente e uma jovem cidadã segura outro objecto daquele género, um paralelipípedozinho mágico. Do dela sai um fio que o liga às orelhas. Muito hirta, escondida atrás de uns óculos muito escuros, a rapariga parece uma estátua vagamente grega, mais na brancura que na forma.
Vou olhando um e outro dos meus companheiros naquela curta viagem e a maioria está absorta com uma maquinetazinha qualquer. Uns falam para ela, outros olham-na com concentração, outros afagam-na ou batem-lhe com alguma leveza, como continua a fazer o meu vizinho. As pessoas estão ali e não estão. Estão juntas mas nítidamente afastadas. A experiência da travessia do Tejo não tem quase nada em comum para os que, como eu, se sentam no ventre da barcaça que corta suavemente a ondulação do rio.
Olho outra vez através da janela, a margem norte está já quase ali. Levanto-me e percebo que o horizonte deixou de ser uma prioridade para os cidadãos. Os seus olhares caem-lhes logo à frente do nariz, um pouco acima do umbigo. Os olhares encerram-se nos écrãzinhos das maquinetas e ignoram o mundo que os rodeia. Teremos nós perdido os horizontes? Talvez os tenhamos esquecido! Apenas e simplesmente.
1 comentário:
Se perderam não sei, mas que o texto é uma delícia, isso é! Bom Domingo!
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