The Burning Heads, técnica mista, exemplo de uma criação resultante do processo de "hibridização anárquica" por mim realizada há uns anos atrás. Quando partimos para o processo de criação de um objecto não fazemos ideia do lugar a que iremos chegar.
Damos voltas e mais voltas e lá voltamos nós, à esquina do círculo do tempo, esse local improvável onde tudo o que não pode ser verdade encontra fortes probabilidades de se materializar num corpo até aí inexistente. Antigamente era nas encruzilhadas que as bruxas enterravam poderosos feitiços, esperando depois o efeito das suas acções. Nem sempre corria conforme o previsto, que isto da feitiçaria não é ciência e, mesmo a ciência, se parece demasiado vezes com coisas abstrusas e incompreensíveis. Coisas que, ganhando um nome, deixam de o ser e encontram um lugar, nem sempre confortável, entre os objectos e os factos. Quando assim é, deixam de ser "coisas" e ganham um nome que as coloca numa prateleira qualquer da casinha imensa que é o nosso entendimento do mundo. Isto é verdade para a ciência como para a feitiçaria e, obviamente e por maioria de razão, para a arte (a mera designação "arte" é "coisa" mais do domínio do fantástico que da realidade objectiva, como vem sendo matraqueado ao longo de dezenas de posts aqui, no 100 Cabeças).
Esta introdução traz-nos quase à porta de saída. Vem ela a propósito da uma entrevistazinha de Leonel Moura que acabei de ler aqui agora mesmo. A entrevista roda em volta da última obra escrita dé Moura, intitulada "30 Gramas", numa referência à imortal obra de Piero Manzoni, a celebérrima Merda de Artista.
O que me motivou a construir esta prosa arrevezada foi a passagem da dita entrevista que a seguir transcrevo: "Desde muito jovem sempre li livros sobre ciência e gosto de tentar perceber algumas coisas. O que mais me deu a volta à cabeça foi perceber que as coisas não funcionam em processos lineares ou consequentes. Percebi que tudo funciona numa base caótica, aleatória e de repente é que as coisas se transformam e dão origem a algo que nós conhecemos. Todo o sistema da produção de arte em que se concebe uma coisa com processos lineares até chegar a um quadro é completamente obsoleto. Tenho de fazer obras de arte em que eu desencadeio o processo mas não sei no que vão dar porque isso é que se aproxima da realidade natural. "
Concordo quase completamente com esta hipótese de Moura. Há muitos anos que, também eu (quantos de nós, meu Deus!?), cheguei a esta conclusão, se bem que por outras vias e travessas. Uma das vias para eu aqui chegar até foi um livro sobre ciência, o muito citado "Caos" de James Gleick, onde li pela primeira vez a célebre teoria do "efeito borboleta" e outras enormidades maravilhosas. Nessa altura, juntamente com alguns gajos como eu, escrevemos um pequeno manifesto (entretanto perdido) intitulado "Canibalismo Cósmico" onde expunhamos de uma forma mais ou menos ordenada, algumas ideias sobre o processo criativo que chamámos de "hibridização anárquica".
Agora, ao ler a passagem acima transcrita da entrevista de Leonel Moura, recordo a sensação que me inundou quando reli e matutei sobre o texto que, então, tinha escrito. A sensação nítida de que aquilo que, naquele momento, era para mim uma revelação absoluta e luminosa, já havia sido percepcionado por muitos outros, antes de mim e haveria de voltar a sê-lo, ao longo do tempo e por muitos anos, sempre que alguém chegasse àquela esquina do círculo do tempo.
"Hibridização anárquica" era o nome que eu tinha dado à "coisa", puxando-a para o lado de cá da existência, trazendo-a a este universo paralelo, moldando-a numa forma algo imperfeita e inconstante. Essa coisa regressa uma e outra vez, com formas mais ou menos semelhantes. As latinhas de merda de Manzoni ou o Urinol de Duchamp são formas supremas de materialização dessa revelação eterna. Eu terei criado formas mais modestas de a manifestar neste mundo através dos meus trabalhos mas, caramba, também tenho o meu orgulho, sou um animal igual aos outros, senti necessidade de o reafirmar. Também eu fui capaz de enquadrar o círculo quando percepcionei uma das suas infinitas esquinas. E sou vaidoso ao ponto de o recordar aqui, quase publicamente.
5 comentários:
Olha o Carapau Staline imigrou para aqui...
(quanto ao resto não percebo nada, eu é mais armas...)
Cio
E por que não?
O Carapau é irmão do 100 Cabeças. Não imigrou, veio apenas fazer uma visita.
Eduardo, pois, porque não? Se começo a desfiar aqui as minhas lucubrações teóricas isto vai ficar meio confuso e algo sombrio. mas, como você diz, porque não?
Bem, eu como não percebo bem o que está em causa, vou indo de mansinho.
Mas... Mas sem deixar de deixar uma deixa.
Esse caos que é referido, quer dizer o quê? Que não vale pensar no que gostaria de fazer amanhã, porque não há maneira de saber se o consigo concretizar? Então andamos todos enganados!
De facto não tenho hipótese de saber, inequivocamente, se as coisas acontecem como previ, mas, na maior parte dos casos acontecem, genericamente, semelhantes ao que se projectou, principalmente porque se deixa uma certa latitude de satisfação, mesmo que algumas expectativas não se cumpram.
A realidade é caótica, de acordo com a "Teoria do Caos", mas não é também estatística? E aqui não entram as tradicionais relações de consequência, causa e efeito, embora actualizadas em relação ao pensamento mais básico, ou primário.
Tenho sempre uma certa dificuldade em aceitar uma nova teoria que começa por afirmar que as outras estão erradas.
Sabes bem que não sou propriamente um robô pintor (aprendi mais algumas coisas bastante interessantes sobre o significado primitivo da expressão "robô" que depois te conto) mas o que quero dizer é que a criaçao artística (seja lá isso o que for) tem algo de caótico. A teoria do caos adaptada à criaçao nao afirma o erro de nenhuma teoria anterior. Antes ajuda a erradicar umas quantas possibilidades de erro. Já me viste trabalhar as vezes suficientes para dispensares o post que se segue mas, apesar de tudo, tento explicar aí o que tentei dizer neste, de forma algo desajeitada.
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