quinta-feira, novembro 21, 2024

Bom dia

     Não deveria esquecer-me de que todos os dias podem começar como este começou. Começou com a leitura de uma das conferências de Borges publicadas em Sete Noites (esta versando a Divina Comédia). Não tanto pela imensa erudição que irradia das palavras escritas, não tanto pela beleza rítmica da forma (que mesmo na tradução para português não é perdida), não tanto pelo poço celestial do conteúdo: os dias deviam começar desta forma pois é leitura que me faz recordar o prazer que é estar vivo.

    Dou por mim a pensar como seria agradável que após a hora da nossa morte pudéssemos continuar a ler; como seria agradável que o universo continuasse para lá da cortina dos sentidos, uma infindável biblioteca, como o terá sonhado Borges; dou por mim a pensar que o inferno decerto será semelhante ao silencioso deserto de ideias que imaginei ainda há pouco.

sábado, novembro 16, 2024

Amanhã é dia do Senhor

     Celebrar o Nada, adorar o Vazio, eis a essência de todas as religiões. Ora tentamos preencher as lacunas criadas pela ausência de raciocínio, ora as ignoramos, afirmando tratar-se a ignorância de um mistério. Não fosse a religião manifestação da nossa absoluta incapacidade para compreender o mundo, poderíamos imaginá-la fruto de algum tipo de construção intelectual destinada a preencher o Nada, destinada a agitar o Vazio.

    A religião será, então, uma emanação da nossa impotência, da nossa incapacidade para encontrarmos justificação para sermos aquilo que somos (mesmo que não sejamos capazes de o compreender). 

    Estou convencido de que, sendo nós bichos como os outros, não existe o Nada, muito menos o Vazio; isto dispensa por completo Deus de ser o que imaginamos que Ele seja, o que decerto muito O aliviará. Isto porque Deus, a existir, não seria capaz de evitar esta mesma sensação de perda constante, esta angústia de não encontrar um sentido para o que quer que seja. Afinal de contas, não fomos nós criados à Sua imagem e semelhança?

sábado, novembro 09, 2024

A felicidade num buraco

     Ficar na sombra não é das coisas mais fáceis a que um gajo possa aspirar. A tentação de deitar um cornicho de fora é muito forte. Querer banhar a fronte na luz do sol, mostrar o sorriso, explicar a quem esteja a ouvir como somos gajos espectaculares, a compulsão da exposição social fala alto. Mas não tão alto que abafe a tendência natural para a anulação do ego. Quando esta existe.

    Uma educação católica em meio rural cava profundas valas onde semeamos modéstia com uma eficácia tal que a colheita dura a vida toda. E tentamos mudar, tentamos deixar a agricultura, imaginar outras actividades, mas nada funciona. Campónio uma vez, campónio a vida toda. Nunca deixarei de ser um campónio. Tempos houve em que a constatação dessa evidência me incomodou. Nos tempos que correm a condição de eterno campónio enche-me de orgulho. Vai na volta esse orgulho não é mais que auto-defesa. É bem possível que assim seja. 

    A passagem do tempo fornece a cada um de nós a possibilidade de vestir uma armadura mais ou menos eficaz contra os temores que o mundo vai sendo capaz de nos infundir. O mundo que se infunda! Que se infunda esta merda toda. Vou cavar um buraquinho onde possa aninhar-me confortavelmente, como imaginei a toca da raposa Salta Pocinhas, heroína imbatível da minha mais tenra infância. E nesse buraquinho serei feliz, até ao esquecimento absoluto.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Um lugar infecto

     O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Para eles o ouro não chega a ser uma miragem. Nunca sairão daquele lugar infecto. "Que é o único lugar a que têm direito", pensou o homenzinho no guichet enquanto contava notas de 5 e 10 euros.

    O Pedinte e o Troglodita são extremos de uma linha sinuosa. O Pedinte não desiste da existência. Estende a mão, implora baixinho. Podemos não o ver mas não é porque seja invisível. É por sermos cegos. 

    O Troglodita é um gajo um pouco perigoso. Não percebe bem nada do que o rodeia. Tem feelings, por vezes feelings muito ásperos; tem sentimentos confusos. Antipatiza naturalmente com o Pedinte talvez por sentir que há, entre eles, algum tipo de competição. Por atenção? Por espaço? O Troglodita não compreende nada.

    "São umas bestas!" - o homenzinho do guichet não passa de um miserável (a vários níveis) mas contemplar aqueles dois maltrapilhos, que vivem e cagam no meio da rua, fá-lo sentir-se um nadinha poderoso. O suficiente para se imaginar uma personagem importante.

    O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Nunca sairão daquele lugar infecto.