segunda-feira, janeiro 15, 2024

Pressentimento

     Os dias sucedem-se como se os respirasse. Como se no céu batesse um coração azulado, como se no ar transpirassem pesadelos ainda por sonhar. Sinto minguar a confiança depositada na arte que produzo; mingua sem razão e sem aviso, vejo-a a desaparecer no fundo de um poço sem fundo.

    Porquê, como pode acontecer tal coisa?

    Talvez o expliquem as linhas definidas pelo vôo dos pássaros ou as inusitadas formas das nuvens que dançam no peito do céu ao ritmo do coração azul que nele vai batendo. Ainda ontem me senti pleno de fé, mas hoje...

    ... hoje olhei mais o chão do que repousei nos ares o meu olhar, pressenti pesadas aves presas a ramos de árvores por desenhar, aves de morte rodopiando numa espiral em direcção ao sol, na direcção de Deus, do olhar divino, abutres que sobem, sobem, sobem, até que são já pardais, são moscas, mosquitos, pontos projectados na perdição dos dias que se sucedem como se os respirasse.

    Como se no céu batesse um coração azul rodeado de fantásticas nuvens disfarçadas de sonhos por sonhar. E eu sinto a confiança que regressa. Volto a acreditar na minha obra, mais do que acredito naquilo que penso que sou, no que fui, no que serei.

    Sei que uma vez chegado ao meu destino serei nada. Ficará aquilo que fiz, nunca nada quem eu sou, meros vestígios de quem fui.

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