terça-feira, junho 15, 2021

Se bem me lembro

 

Tenho seguido com alguma curiosidade a polémica (no jornal Público) entre João Miguel Tavares e Pacheco Pereira a propósito da intervenção de Nuno Palma na convenção do MEL. O debate, que se desejava, vai-se transformando em discussão acalorada, que se dispensava. Nuno Palma também não se fica e vão sendo trocados epítetos vagamente coloridos, arremessados de um lado para o outro com mais violência do que pontaria. 

 Se bem compreendi o problema foi Palma ter afirmado que o Estado Novo combateu o analfabetismo lusitano com maior eficácia que a 1ª República e que convergiu com a Europa em PIB per capita de forma mais eficaz que em grande parte do regime democrático. Estas afirmações serão sustentadas por números e percentagens. Eu vivi a “primavera marcelista” bem como os últimos anos do inverno que a precedeu. E tenho algumas memórias: da ausência de saneamento básico, dos pés descalços, das caras sujas, dos putos que bebiam bagaço para aquecer e depois não conseguiam aprender grande coisa na escola, de uma sardinha ser refeição para três, tenho memória do machismo alcoólico, das estradas miseráveis que desembocavam invariavelmente em povoações de aspecto lúgubre habitadas por mulheres vestidas de negro que tinham os filhos na guerra, das ruas de terra batida com galinhas deixadas à solta e caganitas de ovelhas; tenho muitas memórias e, entre elas, uma sensação de felicidade infantil. 

Até à Revolução não me lembro de alguma vez ter ouvido a palavra “comunista”, lembro-me de chamar “cabeça de abóbora” ao Presidente da República (em voz baixa e por entre risinhos), lembro-me do respeito absoluto devido à inquestionável Santa Madre Igreja. Lembro-me das loas a Salazar e da história do Macaco do Rabo Cortado nos livros de leitura que traziam também a impressionante narrativa do aio Egas Moniz com a corda ao pescoço. 

Lembro-me de um país pobre, habitado por gente maioritariamente miserável que, mal pôde, emigrou em massa para as “franças” em condições ditadas pelo mais profundo desespero. Todas estas recordações me fazem pensar que, das duas uma, ou a Europa com a qual convergimos nesses tempos era igualmente miserável ou então o PIB teria, em certos e determinados países, destinos diferentes daqueles que o Estado Novo lhes dava. Quanto à questão da alfabetização não me custa nada admitir que o Estado Novo tenha feito muito melhor trabalho que a 1ª República, mas não tenho memórias que me ajudem a pensar no assunto. 

Ainda assim penso poder afirmar que, nesse aspecto particular, o regime Democrático tem sido muitíssimo mais eficaz do que foi o salazarismo. Estou em crer que, se trabalharmos com memórias vívidas, não há comparação possível entre o Estado Novo e o regime actual mas caso reduzamos a memória à frieza dos números talvez possa haver formas de desencantar alguma virtude à Outra Senhora.

 

carta enviada ao director do Público

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