Tenho seguido
com alguma curiosidade a polémica (no jornal Público) entre João Miguel Tavares e Pacheco Pereira a
propósito da intervenção de Nuno Palma na convenção do MEL. O debate, que se
desejava, vai-se transformando em discussão acalorada, que se dispensava. Nuno
Palma também não se fica e vão sendo trocados epítetos vagamente coloridos,
arremessados de um lado para o outro com mais violência do que pontaria.
Se bem
compreendi o problema foi Palma ter afirmado que o Estado Novo combateu o
analfabetismo lusitano com maior eficácia que a 1ª República e que convergiu
com a Europa em PIB per capita de
forma mais eficaz que em grande parte do regime democrático. Estas afirmações
serão sustentadas por números e percentagens. Eu vivi a “primavera marcelista”
bem como os últimos anos do inverno que a precedeu. E tenho algumas memórias:
da ausência de saneamento básico, dos pés descalços, das caras sujas, dos putos
que bebiam bagaço para aquecer e depois não conseguiam aprender grande coisa na
escola, de uma sardinha ser refeição para três, tenho memória do machismo
alcoólico, das estradas miseráveis que desembocavam invariavelmente em
povoações de aspecto lúgubre habitadas por mulheres vestidas de negro que
tinham os filhos na guerra, das ruas de terra batida com galinhas deixadas à
solta e caganitas de ovelhas; tenho muitas memórias e, entre elas, uma sensação
de felicidade infantil.
Até à Revolução não me lembro de alguma vez ter ouvido
a palavra “comunista”, lembro-me de chamar “cabeça de abóbora” ao Presidente da
República (em voz baixa e por entre risinhos), lembro-me do respeito absoluto
devido à inquestionável Santa Madre Igreja. Lembro-me das loas a Salazar e da
história do Macaco do Rabo Cortado nos livros de leitura que traziam também a
impressionante narrativa do aio Egas Moniz com a corda ao pescoço.
Lembro-me de
um país pobre, habitado por gente maioritariamente miserável que, mal pôde,
emigrou em massa para as “franças” em condições ditadas pelo mais profundo
desespero. Todas estas recordações me fazem pensar que, das duas uma, ou a
Europa com a qual convergimos nesses tempos era igualmente miserável ou então o
PIB teria, em certos e determinados países, destinos diferentes daqueles que o
Estado Novo lhes dava. Quanto à questão da alfabetização não me custa nada
admitir que o Estado Novo tenha feito muito melhor trabalho que a 1ª República,
mas não tenho memórias que me ajudem a pensar no assunto.
Ainda assim penso
poder afirmar que, nesse aspecto particular, o regime Democrático tem sido
muitíssimo mais eficaz do que foi o salazarismo. Estou em crer que, se
trabalharmos com memórias vívidas, não há comparação possível entre o Estado
Novo e o regime actual mas caso reduzamos a memória à frieza dos números talvez
possa haver formas de desencantar alguma virtude à Outra Senhora.
carta enviada ao director do Público