terça-feira, março 23, 2021

Fica pr'amanhã

Queria escrever sobre esta dúvida que me vai roendo as unhas ao juízo: é a guerra um crime? Mas já não sei se o faça, prefiro ouvir uma guitarra eléctrica a rasgar o espaço, a fazer do tempo uma tempestade uma coisa tensa e bela, o tempo da guitarra eléctrica. A guerra que se lixe, o crime que se amanhe, a gente está diluída de tanto confinamento. Caraças.

Queria reflectir sobre se matar quem nos vem matar é passível de ser considerado crime. Mas estou a ouvir os Stooges e essa questão mistura-se num manancial desenfreado de som e fúria e a coisa já não se me afigura tão premente.

"Now I wanna be your dog"... o que me resta pensar quando esta frase me esfuranca o juízo (já sem unhas)? Nada, nadinha, népias, néribi! Agora a minha mente voga nas ondas da guitarra, vai de encontro aos tambores, abana-se nas notas estridentes do piano.

Amanhã preocupar-me-ei.

quarta-feira, março 17, 2021

Desambição

Havias de contar-me o teu segredo para que eu não soubesse o que fazer-lhe. Havias de me olhar com o espanto de quem vê o contemplado não ser capaz de abrir o presente que lhe oferecem. Havias de esquecer-me por não estar à altura de sonhar nem dos teus sonhos.

Nunca fui capaz de compreender o significado de ambição e isso inunda-me com uma timidez imensa capaz de afogar quimeras e ideias enquanto não souberem nadar. 

Não sou capaz de subir esses degraus.

Continuo no trabalho insano de semear coisas incompreensíveis no manto diáfano da poesia. E não compreendo a poesia, por isso lhe escavo as sombras e lhe deito dentro sementes que não conheço. Fico à espera de ver o que ali nasce, o que ali haverá de crescer. 

O que for será; por estranho que surja, por imenso que possa parecer, por mínimo que se revele, o que resultar desta minha desambição irá permanecer.

Não quero descer esta escadaria. Fico aqui mesmo, neste lugar imóvel onde sou.

terça-feira, março 16, 2021

Casa nossa

O sol atrai as pessoas para o exterior das suas casas. O calorzinho de uma Primavera anunciada (a Primavera está quase quase aí) aconchega e faz o corpo relaxar. Assinamos um armistício com o Planeta apesar da pandemia. Juramos amor à Terra, prometemos que tudo faremos para a proteger... de nós próprios!?

Espera lá, ecologista leitor, quando juramos tudo fazer para tornar o Planeta sustentável estamos a ser suficientemente sinceros? Haverá nesta postura um pingo que seja de altruísmo? Quer-me parecer que é uma atitude algo interesseira. O Planeta interessa-nos enquanto espaço habitável para a espécie humana. Sim, é disso que se trata, fazer obras de manutenção na nossa casa por forma a garantirmos condições de habitabilidade por um período de tempo mais alargado.

Na verdade, se metermos a mão na consciência, a Terra estaria bem melhor se a espécie humana fosse menos preponderante, mais incapaz de interferir em tão larga escala com a saúde planetária. Se fosse o Planeta a nossa principal preocupação deveríamos de encarar a possibilidade de um honroso hara-kiri à Humanidade deixando a Natureza na paz do Senhor. Ou então, num extraordinário gesto de auto-reflexão, sermos capazes de prescindir de grande parte das nossas "conquistas civilizacionais", revertendo o modo de pensarmos a vida para níveis pré-industriais. Fauna e flora haveriam de agradecer. 

Como tudo isto nem utópico é, já sabemos, vamos continuar a alargar o sexto continente, o do plástico, a envenenar a atmosfera, a produzir gado numa escala incomportável, etc.e tal. Seja como for, o calorzinho está aí e a primavera irá proporcionar-nos a trégua habitual, iludindo por momentos os fantasmas que nos atormentam.

segunda-feira, março 15, 2021

Um cadáver no meio da rua

Nos últimos tempos tenho andado com a ideia do fim da vida enfiada nos meus pensamentos. Os posts mais recentes dançaricam em volta da morte como um rancho folclórico que arrastasse os pés ao som da marcha fúnebre. Hoje, por volta da uma da tarde vi um homem morto.

Tinha saído de casa atravessando a rua para ir comprar algo que me servisse de almoço. Na paragem de autocarro, mesmo defronte à porta do supermercado, estava uma inusitada aglomeração de pessoas. 

Havia um carro da polícia e dois agentes cá fora, vários cidadãos mantinham-se em pé, como que dependurados pela nuca; divisei o que me pareceu ser alguém esticado no passeio, debaixo da cobertura da paragem, tapado por um plástico muito azul. Os pés estavam à vista. Havia ainda uma mulher sentada no passeio, junto do plástico que reflectia gloriosamente o sol primaveril.

As máscaras não me deixavam ver as expressões faciais mas também não era necessário para perceber que todos estavam constrangidos, tristes, contrastando fortemente com o sol e o canto dos pássaros escondidos na paisagem urbana. 

Percebi que o homem estava morto. Fiquei por momentos a olhar a cena e depois entrei no supermercado. Fiz as minhas compras, paguei na caixa automática e quando saí havia uma carrinha funerária estacionada. Dois homens retiravam um caixão de plástico cinzento que colocaram no chão. Um deles pegou num braço do cadáver, sempre coberto por aquele plástico azul, azulão brilhante sob o peso da luz do sol. A mulher sentada desaparecera, as pessoas haviam-se afastado uns passos como se o corpo sem vida as repelisse suavemente. Voltei as costas e dirigi-me para casa.

Tudo era silêncio, apenas se fazia ouvir o ruído dos motores dos automóveis que passavam. A seguir abriria a porta do prédio, subiria as escadas e haveria de preparar o almoço para mim e para a minha família. Quem foi aquela pessoa que morreu ali, no meio da rua. Que vida estava a ser recolhida pelos gatos-pingados naquele caixão de plástico cinzento, macabra metáfora da nossa existência?

Terei sentido nos dias anteriores a proximidade da morte? Foi isso que me levou a escrever textos tão deprimentes? Nos próximos dias tentarei esquecê-la. Vou tentar focar-me na vida.

sexta-feira, março 12, 2021

Ingenuidade

Há uma certa esperança de que o futuro possa vir a ser melhor do que aquilo que designamos por passado. Essa esperança é o combustível dos sonhos, alimenta mil razões para que não desistamos de ser, que não desistamos de viver. Mas sabemos também que esse tal futuro alberga o dia e a hora da nossa morte. 

Assim, pode parecer paradoxal que ansiemos o tempo do nosso fim, esperando que, algures entre o momento que vivemos e aquele em que seremos coisa morta, haja um tempo de redenção, de concretização de projectos mais ou menos grandiosos que, de algum modo, haverão de nos satisfazer. Fosse a vida coisa eterna e a alegria de atingir um determinado objectivo de vida seria como explodir infinitamente no gozo de continuarmos a ser.

Como resolver esse paradoxo de querermos aproximar-nos do nosso fim enquanto perseguimos as quimeras que inventamos para preenchermos o tempo que vivemos? Continuo a tentar convencer-me que a vida que vivo só faz sentido se contribuir para a construção de uma Humanidade mais completa, mais capaz de conviver com o planeta e consigo própria numa lógica de liberdade individual plasmada no bem comum. Isto exige alguma ingenuidade, mas permite-me continuar a sonhar.

terça-feira, março 09, 2021

(Suspiro)

Cada dia a mais é um dia a menos. Qual o sentido de avançar em direcção a um ponto de paragem absoluto, correr em direcção ao fim? Podemos refrear o ritmo, evitar as rectas escolhendo curvas, dançar um pouco (dançar uma morna) descansando da corrida. A verdade é que nem optando por ficarmos parados evitamos o passar do tempo. O tempo é um tapete rolante que nos conduz até ao dia em que todos os outros dias perdem para nós o sentido.

quinta-feira, março 04, 2021

Uma choldra

 Não gosto de bater no ceguinho mas, por vezes, o ceguinho merece e... aí vai disto! Hoje estava a ver televisão, era quase a hora da papa. Na TVI dois apresentadores meio mongas iam desfiando os casos do dia: um rapaz que matou o pai à facada, uma idosa que havia falecido num lar ilegal que tentou ocultar o facto aos familiares da defunta. Este com direito a ligação em directo ao local onde um repórter ia começar a debitar as banalidades do costume, começando por repetir exactamente aquilo que havia sido dito em estúdio. Este é o género de televisão que me repugna e mudei de canal.

Fui cair na SIC e, qual não é o meu espanto, também aqui se estava a discutir o caso do filho que esfaqueou o pai. Outros apresentadores (também um homem e uma mulher, imagino que seja necessária a paridade para garantir as boas intenções da estação), outros comentadores (tal como na TVI uns camelos arrogantes a arrotar postas de pescada, como se fossem anjos vingadores). Ainda não estava eu refeito da surpresa de encontrar o mesmo tema quando, mudando de assunto, lá vêm com a história da velhinha e do lar ilegal e ainda, suprema coincidência, ligam em directo para o repórter no local.

Que merda é esta!?

Depois haverá de aparecer um apresentador de telejornal com cara de cu e ar enjoado a dizer que os casos de ansiedade e sofrimento psicológico têm aumentado de forma assustadora entre a população portuguesa. Claro que nos explicam que isso se deve ao confinamento e à puta da pandemia. Duvido que sejam as únicas causas. Esta televisão vampírica há-de ter muitas culpas no cartório e o pior é que, mesmo depois de a pandemia ser controlada e o confinamento ter acabado, esta porcaria vai continuar a sugar os sentimentos das pessoas, contribuindo para o mal-estar generalizado. Com grandes audiências.

Os telespectadores são como os zombies da série The Walking Dead, doidinhos por fincarem o dente em carne fresca. As estações televisivas são como bordéis onde as meninas são oferecidas, não às carícias, mas à dentuça dos consumidores.

Uma choldra.