sábado, novembro 07, 2020

Do auroque ao santo de pau carunchoso (2.º episódio)

(no episódio anterior): "A hipótese mais arreigada na nossa tradição imaginativa é a de que os nossos antepassados fariam aqueles bonecos com a finalidade de mimetizarem a sua captura executando umas momices quaisquer com paus e lanças, tanto quanto a imaginação contemporânea nos permite imaginar que fizessem. Certamente dançando em círculos e soltando urros assim à maneira dos grandes símios. Seria aquilo que se chama uma arte propiciatória."

Essa interpretação mostra como é complicado percebermos o que quer que seja que tenha acontecido lá para trás (se no tempo histórico é muito complicado, que dizer daquilo que aconteceu no tempo pré-histórico?), o nosso olhar não alcança tão longe. Talvez possamos colocar uma única certeza: a arte tem sempre uma utilidade qualquer. Seja uma utilidade objectiva ou algo que não faça grande sentido ou que não tenha mesmo sentido nenhum, arte que é arte ajuda a resolver alguma questão, a endireitar um pouco este mundo, implica uma dose de magia, propicia bons augúrios ou ajuda a marcar um trilho em direcção aos infernos que virá a ser percorrido pelos nossos inimigos. A arte nunca é inútil.

Mais adiante, quando começámos a desenvolver a capacidade de relacionar a nossa imaginação com a capacidade de moldar materiais, fossem pictóricos ou escultóricos, os deuses ganharam forma e vieram habitar o espaço connosco. Surgiram estatuetas, espíritos de outros mundos trazidos para o nosso convívio, pedaços de magia absoluta, objectos sagrados, objectos tabu, objectos capazes de rivalizar com o Sol ou com cordilheiras imensas, bosques sagrados, florestas místicas, objectos capazes de ofuscar a Lua, impregnados pela sua magnífica beleza, objectos repositórios da fúria dos ventos, representações abstractas da foça do trovão ou da generosidade de Gaia. 

A relação entre a nossa imaginação e a nossa capacidade plástica corporizou-se na criação de objectos sagrados ao ponto de precisarmos de construir espaços artificiais que servissem de habitação às representações das divindades. Imagino que tenha sido mais ou menos assim que surgiu a ideia do Templo. A escultura, com a sua tridimensionalidade, revelou-se a técnica mais capaz de revelar as formas divinas.

 

(continua)

 

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