segunda-feira, dezembro 30, 2019

Voto de Ano Novo

O ano velho arde de mansinho, apaga-se amanhã. Há quem acredite que a simples queda da última folha do calendário trará consigo algum estranho sortilégio, capaz de transformar a banalidade em algo novo, um tempo revigorado. Pessoalmente não vejo onde possa estar essa capacidade transformadora... a não ser que esteja dentro de nós, à espera.

Precisamos assim tanto de um pretexto que nos encoraje a mudar as coisas que desejamos mudar? Pelos vistos sim, precisamos. Poderíamos tomar decisões importantes no dia 14 de Março ou a 27 de Agosto, mas não, esperamos pelo finzinho do ano, acreditamos na magia regeneradora do relógio aliado ao calendário.

Assim sendo, que o novo ano traga consigo toda a magia do mundo!

domingo, dezembro 29, 2019

A tragédia do saco de plástico


A preocupação com as alterações climáticas que incomoda as instituições democráticas leva à tomada de medidas que defendam o ambiente. Neste sentido foi criado uma espécie de imposto, o imposto do saco de plástico; as superfícies comerciais foram obrigadas por lei a deixar de fornecer sacos de plástico gratuitos aos consumidores. Agora, quem quiser um saco de plástico paga 10 cêntimos por unidade.

No entanto, quando o consumidor se dirige à caixa para pagar as suas compras munido de um saco de pano ou de papel ou mesmo de plástico reciclado, quando coloca as suas compras no tapete rolante raros são os produtos que não estão embalados em… plástico! A carne, o peixe, as bolachas, a fruta e os legumes biológicos, até mesmo o Público, tudo está protegido por invólucros de plástico.
 
Esta incongruência é uma metáfora certeira do cinismo que caracteriza a nossa sociedade de consumo capitalista e neoliberal.

quinta-feira, dezembro 26, 2019

2020

Após uns dias a comer como se não houvesse amanhã (e, no entanto, há sempre um outro dia) sinto-me um pouco menos activo, mais passivo, embrutecido, em suma. Quando se come demasiado, a digestão concentra grandes esforços que, em condições normais, poderiam ser distribuídos por outras funções vitais; pensar, por exemplo.

Ando um bocado disperso, hesito em imaginar o ano de 2020. Se o calendário se confirmar irei participar em, pelo menos, 4 exposições de artes plásticas. É bom; não me lembro de participar em tantas exposições no espaço de um ano, muito menos de as ter agendadas com tal antecipação. Sinal de maturidade?

Se tudo se concretizar conforme os indícios, será também publicado um romance do meu amigo José Xavier Ezequiel que ilustrei. É um projecto que está concluído há bastante tempo mas que, por uma razão ou por outra, tem visto a sua edição adiada. Parece que é desta!

Outro amigo do peito, o André Louro, prepara a edição de um CD com músicas da sua autoria no projecto que dá pelo nome de Duas Chamadas Não Atendidas e que terá na capa um desenho meu. É um prazer.

Com o Teatro Ubu ando e congeminar a produção de O Último Burro, nova peça produzida pela Arte 33 e que promete momentos de grande divertimento. Em Maio (se não estou em erro) iremos repor A Inauguração com 4 espectáculos no Teatro-Estúdio António Assunção em Almada. Haverá, portanto, teatro, além das artes plásticas. Deliro!

Tudo isto em paralelo com a minha actividade docente que, a cada ano que passa, se torna menos entusiasmante mas que tento cumprir com o máximo de profissionalismo que sou capaz de investir. 2020 promete não ser monótono. Cá estarei para ver, se Deus quiser, como diz o outro.

domingo, dezembro 22, 2019

Náusea

Se há coisa que me mete nojo é a exploração da miséria alheia. Os designados "canais informativos" que enlameiam o panorama televisivo são exemplos acabados dessa nojice. De entre todos destaca-se a CMTV que leva, em glória, a coroa de Rei Vampiro.

Repetem até à exaustão as imagens mais escabrosas que conseguem filmar, os mesmos "directos", a mesma "informação" que mete o dedo na ferida alheia até esguichar sangue e pus por todos os lados. Sei bem que o mundo não é cor-de-rosa mas também me custa a admitir que seja exclusivamente cor-de-merda.

terça-feira, dezembro 17, 2019

Las brujas

Acreditar numa vida eterna prescrita aos seres humanos por uma divindade absolutamente poderosa, acreditar nisso porque não se consegue conceber que a vida acabe e que, quando acaba, pronto: é o fim - é um reflexo mental de grande soberba, configura até uma certa mania. Imaginar que o Ser Humano vai além daquilo que conseguimos perceber é pouco mais que um desejo, um anseio quase medíocre, atrevo-me a dizer. Ser incapaz de aceitar a finitude da vida não configura grande grandeza de espírito.

Falam do Tempo-tempo, não do meteorológico, falam daquele Tempo-tempo que é a matéria dos sonhos dos filósofos e dos físicos e que põe os escritores verdadeiros a escrever coisas deveras magníficas. Falam e falam muito bem. É agradável ouvi-los, cá em cima, no sótão.

Vem-me à cabeça aquela frase em espanhol: "no creo en brujas pero que las hay las hay".

segunda-feira, dezembro 16, 2019

Espírito Natalício

Oh, quanta compaixão humana é destilada pelas boas almas nesta época natalícia. O amor é tanto que quase o podemos morder caso batamos a dentuça. Os sorrisos, tantos dentes, tantas palavras bonitas. Os olhinhos das crianças brilham sob as luzes que enfeitam as árvores e as ruas. O mundo rejubila, as aves parecem voar com maior graciosidade, até os tubos de escape dos automóveis ganham contornos quase benevolentes, soltando fumozinho, puf, puf, puf... pópó, faz a buzina.

O Pai Natal lá está, no Pólo Norte, a explorar os duendes que, nos tempos que correm, são chineses, são vietnamitas, paquistaneses, são nativos do Bangladesh, gentinha diligente que trabalha, incansável, por quase nada. E o nosso Natal está garantido, todos podemos comprar presentes a baixo custo. A miséria alheia tem a sua beleza.

sexta-feira, dezembro 13, 2019

O que é a vida?

Vinha eu a pensar na vida quando vejo dois homens transportando uma peça de mobiliário à força de braços. Pareceu-me perceber qualquer coisa; pareceu-me perceber que é conveniente termos objectivos específicos e compreensíveis, de preferência objectivos alcançáveis, coisas que orientem a nossa existência. Para aqueles homens transportar a mobília, para mim entrar na tabacaria e comprar o jornal. Depois de cumpridas estas tarefas a vida exige que se descubra qual a tarefa seguinte, como num jogo infantil de caça ao tesouro. Uma pista leva a outra e assim sucessivamente.

Nunca deixamos de ser crianças a brincar à vida e a jogar todos os dias com o tempo e, no caso dos mais imaginativos, a brincar também com o espaço.

Será a morte o final da infância humana? Será o último suspiro um primeiro reflexo de saudade pelo que fomos e nunca mais voltaremos a ser?

segunda-feira, dezembro 09, 2019

Zombies sociais

Não tenhamos dúvidas: o inimigo da Humanidade é a estupidez! A estupidez é a irmã mais velha da ignorância, uma e outra alimentam-se mutuamente e crescem e ganham influência e tornam-se importantes ao ponto de infectarem a sociedade humana de forma irreversível. Bem podemos tentar debilitar a praga mas é como tentar apagar um incêndio mijando-lhe em cima.

Decerto já escrevi algo sobre isto num post anterior mas nunca é demais repetir o alarme.

Aqueles que estão infectados pela estupidez apresentam diferentes sintomas; há-os dóceis, há-os agressivos, passivos, activos ou assim-assim, é como na série Walking Dead, onde um zombie morde uma pessoa normal transformando-a também em morto-vivo. Os estúpidos são zombies sociais. Os que ainda não foram conspurcados pela estupidez bem podem defender-se tentando espetar algum juízo na cabeça de um estúpido mas não é fácil lutar.

As redes sociais são perigosos canais desta patologia estupidificante. Estupidez, maldade, ignorância agressiva, a informação é replicada sem qualquer verificação de validade. Uma mentira é repetida ad nauseam e nem assim se transforma em verdade. Quando alguém prova a um estúpido que a mentira que ele ajudou a propagar não passa disso mesmo, uma refinada calúnia, ele encolhe os ombros e procura uma nova patranha que substitua a anterior. Para um estúpido a verdade e a mentira equivalem-se em validade. Os estúpidos maldosos e os estúpidos ambiciosos são do piorio e são muito numerosos.

Eu sei que não é fácil nem é coisa que se peça assim, sem aviso, mas imploro-te, garboso leitor, benevolente leitora, luta contra a estupidez com quanta força tiveres. Não é uma questão ideológica, é uma questão cultural. Trata-se de lutar a favor de uma sociedade mais humana, ser humano.

sexta-feira, dezembro 06, 2019

Tempo e espaço

Esta manhã apercebi-me que quando estou a ler desapareço no tempo (embora permaneça no espaço). O mesmo acontece quando desenho e pinto, o tempo perde o significado pretensamente exacto que lhe é conferido pelos relógios. Flutuo algures. O meu corpo permanece no espaço (da cozinha, da sala, do sótão) mas eu flutuo algures, flutuo em lugares (poderei designar esses espaços por "lugares"?) aparentemente exteriores.

É como um transe, imagino.

Ler, escrever, pintar, são actividades que normalmente envolvem um mínimo de movimentos. O corpo permanece num espaço muito limitado, não se desloca de forma significativa e o cérebro fervilha processando informação quebrando a película rígida que separa diferentes dimensões e eu sou levado.

Leio as frases escritas acima e nada daquilo merece rótulo de "realidade". Embora constituam uma sequência de ideias e conjecturas a carecer de confirmação, tudo aquilo me faz sentido e quase sou capaz de acreditar que o meu Ser não é uno, que há partes de mim que se separam em determinadas ocasiões e existem momentaneamente em diferentes estratos espaciotemporais.

Há coisas em que acreditamos mas não somos capazes de provar.

quinta-feira, dezembro 05, 2019

Deus-coisa

Somos tantos! Diz o povo que "cada cabeça sua sentença" e nós somos tantos!!! É milagroso que consigamos conviver e perdurar em sociedade. Quem busca provas da existência de alguma coisa que possamos designar como "Deus" não precisará de procurar muito para as encontrar; basta que olhe em volta e veja.

Deus, a existir, será aquilo que nos une, a coisa inominável de que todos comungamos e faz de nós seres humanos capazes de amar e de conviver de forma pacífica. Esse Deus não tem qualquer possibilidade de se aperceber daquilo que somos ou o que fazemos. É um Deus-coisa, não um velhote com dotes escultóricos, capaz de moldar o barro enquanto se vê ao espelho para depois lhe insuflar uma alma vá-se lá saber como.

Os que acreditam na versão do velhote imaginam-no uma espécie de Voz, do Big Brother televisivo, uma personagem metediça e policial que escrutina cada peido que damos. Omnipresente.

Atribuem-lhe também o dom da omnipotência, a capacidade de nos julgar e enviar com despacho para o Inferno ou, então, recolher-nos junto a Si no Paraíso. E somos tantos! Deus não terá mãos a medir embora me pareça que os que não acreditam Nele lhe poupam trabalho e levam logo todos com o selo do fogo eterno independentemente do que tenham feito com a sua vida e com a vida dos outros. Este Deus-burocrata não tem tempo a perder com infiéis, balde com eles! E são tantos!!!

O Deus-coisa tanto existe como não. Está ligado a nós todos e liga-nos uns aos outros mas não tem consciência própria, não tem corpo nem se parece com um imperador, muito menos se assemelha a um juíz. O Deus-coisa está tão longe de tudo isto!

segunda-feira, dezembro 02, 2019

Esboço de manifesto

Ver crianças e adolescentes nas manifestações pelo clima com os seus cartazes, o seu entusiasmo, a sua capacidade de acreditar, dá um aperto no coração. Mas, por outro lado, faz despontar uma sementinha de orgulho. A luta é ainda mais desigual do que a luta que David travou contra Golias.

Acreditar em causas é próprio da juventude. Ter fé desmesurada numa ideia que sentimos ser justa está-nos na massa do sangue. Quem nunca teve uma fúria destas dentro de si deve consultar um psicólogo ou dirigir-se ao padre da paróquia para tentar perceber o que está errado.

Talvez devido à queda de cabelo e à profusão de rugas na face, sinto uma pequena angústia quando observo a juventude em delírio sonhador. Isto porque a vida teima em deixar-me um tanto desanimado, céptico, vai-me fazendo venenoso. Cada dia que passa mais tenho dificuldade em acreditar numa mudança positiva.

No entanto, apesar de não conseguir acreditar, estou longe do ponto em que irei desistir de fazer a vida negra aos que considero como filhos-da-puta e à sua voragem animalesca. Posso estar desanimado mas não estou morto. 

domingo, dezembro 01, 2019

Sonho de Natal

A cada dia que passa mais se aproxima o Natal. Época de concórdia e aconchegozinho familiar, o Natal presta-se às mais tépidas ternurices e propicia juras de amor ao Próximo dignas de figurarem no livrinho de deve-e-haver de Deus, Nosso Senhor. Muitos católicos aproveitam para marcar pontos positivos no lento e tortuoso caminho em direcção ao Paraíso.

Será de esperar que, nos próximos tempos, abrande a maledicência, diminua a agressividade e aumente a reflexão meditativa, capaz de nos pôr a pensar na vida como se fôssemos pálidos unicórnios ou inocentes passarinhos. Só faltará a neve a tombar lentamente sobre a paisagem, a oferecer longos momentos de bucólica contemplação em louvor ao Criador.

O mundo fica até mais redondinho.

sexta-feira, novembro 29, 2019

Sexta-feira negra

Não querendo armar-me em virgem ofendida sempre vos digo que o conceito da Black Friday é uma coisa, a meus olhos, repulsiva. Traz consigo uma perspectiva desumanizadora da nossa sociedade que me incomoda. Funciona como espelho e reflecte um bicho demasiado disforme.

A substituição do cidadão pelo consumidor (tema várias vezes abordado aqui, no 100 Cabeças) já não me cheira bem. Haver um dia em que o consumidor é transformado em animal selvagem é coisa que fede.

Nas caixas de mensagens do meu telemóvel e do e-mail vão caindo missivas enviadas por diversas lojas que anunciam acontecimentos extraordinários. Descontos estratosféricos, facilidades de crédito inimagináveis, ofertas irrecusáveis, tudo para o meu bem, tudo porque, como me dizem, sou importante para as empresas comerciantes.

É o Capital a sorrir-me mas, no seu sorriso, vejo um esgar alucinado.

quinta-feira, novembro 28, 2019

14 anos de idade

É hoje (hoje é dia 28 não é?) o aniversário deste blogue. Estamos em Novembro, certo? Sim, 28 de Novembro, catorze anos atrás, se bem faço a conta, postei o primeiro texto aqui, no 100 Cabeças. Este é o post 2076.

14 anos em idade de Blogue corresponderá a quantos anos em termos de vida humana? Há quem saiba estabelecer uma relação entre a idade dos gatos e a dos seus acompanhantes, a idade dos cães e a idade dos seus mestres, é só fazer a continha. Quanto aos Blogues...

14 anos é a idade média dos meus alunos actualmente. Ou seja, aqueles a quem tento ensinar qualquer coisinha nos dias que vão correndo estariam a nascer quando este Blogue dava os primeiros passinhos. O que poderá isto significar? Só pode significar... absolutamente nada!

Vá lá, não sendo tão drástico na apreciação, significa que passaram exactamente 14 anos e que 14 anos são, exactamente, isso mesmo.

Estou a escrever este texto num computador numa sala na minha escola. Há uma fila de 4 mesas viradas para a parede, em cada uma seu computador. Tenho uma colega à minha esquerda que fala para uma outra, à minha direita como se eu não estivesse aqui, entre elas. A minha defesa é constituída por uns auscultadores ligados ao telemóvel e música em volume exagerado (neste momento estou a ouvir Charlie don't surf dos Clash).

Estou também equipado com generosas doses de paciência e de boa educação. Tão generosas são as doses que suporto esta grosseria sem cuspir viperinamente à colega do lado um "fecha a matraca", que era o que me apetecia fazer. Mas não, quando era puto ainda fui tomar chá a casa da prima umas duas ou três vezes acompanhando a minha avó e sempre aprendi uma ou outra coisinha que agora me ajudam a fazer de conta que esta merda não me incomoda. O que faria eu há 14 anos atrás se estivesse numa situação como esta?

Era bem possível que fizesse exactamente isto, escrever um post no 100 Cabeças.

terça-feira, novembro 26, 2019

Dilúvio de bolso

Chove que Deus a dá! Lá fora cai um pequeno dilúvio, muito apropriado tendo em conta a dimensão do país. Um dilúvio a sério afogava-nos a todos. Quando cai uma chuvinha assim há logo uma trupe de gajos que vêm afirmar: Estão a ver!? Qual desertificação qual carapuça!!!

Tenho a sensação de que estes caramelos estão todos borrados de medo e que a possibilidade de estarmos de facto a passar por uma fase de alteração climática severa lhes tira o sono. Isso explica a forma entusiástica como celebram cada gota de chuva, como se fosse a prova do erro dos arautos do desastre climático.

Lá fora a chuva continua a cair. No entanto há zonas do país que continuam em situação de seca extrema.

domingo, novembro 24, 2019

Querer

O Ser Humano que estamos a construir está cada vez mais desumanizado. Instalada a angústia neoliberal: a necessidade voraz de consumir, de ser através do ter, a transformação do Ser humano em "capital" humano... é demasiado! E as esquerdas respondem aos pontapés no próprio cú.

Precisamos de saber aquilo que queremos MESMO, não pode ser tudo! Temos de saber do que estamos dispostos a prescindir de modo a alcançarmos a distribuição generalizada daquilo que consideramos essencial. Se pretendermos tudo ao mesmo tempo não teremos nada, a não ser decepção e desumanização total.

O neoliberalismo está a dar as últimas, prestes a assumir uma nova forma, definitivamente monstruosa e destruidora. Precisamos de nos preparar para o embate.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Raposas na capoeira

"O sono da razão engendra monstros" a frase mágica que Goya registou para a posteridade e que, pessoalmente, me serve de retrato para a inteligência humana e para as suas construções. Este intróito em zigue-zague pretende trazer à luz algumas preocupações que me assaltaram ontem, ao ver algumas reportagens da manifestação das forças de segurança à porta da Assembleia da República.

O que vi? Polícias em manifestação, uns de punho erguido outros de braço estendido. Velhinhas e velhinhos com cartazes de apoio e polícias embevecidos com tais manifestações de carinho. Mais polícias e agentes da GNR em manifestação com os seus dirigentes debitando as habituais palavras de circunstância. Nota: todos os que vi pareciam bem barbeados, bem lavados e penteadinhos (muitos têm a cabeça rapada à skinhead), vestidos com aprumo suficiente para não assustarem quem emprenhe pelos olhos. Depois começaram a aparecer uns gajos com t-shirts do movimento zero.

Aí foi o momento da rataria sair da toca. Apareceu o Telmo Correia, apareceu o André Ventura. Um só falou para as câmaras de TV o outro teve direito a púlpito com o movimento zero a guardar-lhe as costas e a aplaudir as habituais atoardas da personagem. Foi aí que uma ideia mórbida se me atravessou, ao comprido, na mona: e se estivermos a permitir que a PSP se torne um coio de nazis e fascistas? Não é ideia nova, antes preocupação antiga mas uma coisa é sonhar, outra é ver com os próprios olhos, uma coisa é suspeitar, outra é ter a certeza.

Já participei em diversas manifestações e lutas sindicais. Já fui olhado com desconfiança (acho que os nossos embates com o estado nunca chegaram a provocar ódio entre os que discordavam das nossas formas de reivindicar direitos) e já me apercebi que aquilo que pretendemos dizer nem sempre é aquilo que fazemos ouvir. Oxalá esteja enganado mas estas movimentações dos zeros são inquietantes. É que são zeros à direita e anda por aí muito filho da puta.

quinta-feira, novembro 21, 2019

Mais e menos

Pretender nivelar a sociedade é tarefa que nem mesmo Deus, Nosso Senhor, encara com entusiasmo. A complexidade da coisa deixa os cabelos em pé a um careca. Mas há quem acredite ser possível, há quem tente organizar-se, há quem insista e não desista da ideia de que é possível construir uma sociedade mais justa.

Aqui reside uma das subtilezas da ideia. Não sei quando aconteceu mas já é raro ouvir falar em "sociedade justa", o conceito foi substituído por "uma sociedade mais justa" e é na palavra "mais" que encontramos a chave do portão.

O tal "mais" implica que o objectivo não seja aniquilar a injustiça mas sim debelá-la, poderíamos mesmo pensar que o grande sonho, o sonho capaz de nos aproximar do Paraíso na Terra é o de construir uma sociedade menos injusta.

E chegamos à dura e cruel realidade. A chave não é, na verdade, a palavra "mais" mas sim a palavra "menos".

Dir-me-ão que "menos injustiça" corresponde a "mais justiça". Pois bem, não estou certo disso. Creio que poderemos reduzir enormemente a injustiça e, ainda assim, ficarmos bem longe da justiça mínima exigível a uma sociedade humana digna e que ainda é para lá que caminhamos, a passo de caracol.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Um momento de felicidade

Hoje senti um entusiasmo particular durante as aulas. Expor aos alunos (muito jovens, 14-15 anos) processos e esquemas de representação do corpo humano, começando pela expressão facial, abriu uma via de comunicação que se revelou surpreendentemente profícua.

Noto que um pouco de erudição ainda capta a atenção da plateia e, sobretudo, conhecimento de causa produz um efeito de quase encantamento capaz de proporcionar comunhão de pensamento reflexivo. Há momentos assim, momentos compensadores.

Sentir que estou de facto a comunicar algo que alarga os horizontes da plateia numa sala de aulas deixa-me perceber, por brevíssimos momentos, um certo sentido para a vida que trago dentro de mim. Foi bom. Para mim foi mesmo bonito!

quinta-feira, novembro 14, 2019

Fábula da Sabedoria

Sentados em redor da mesa rectangular, uns de frente para os outros, continuamos a debater o aspecto que tem o espaço vazio. A nossa percepção da coisa é recolhida através do olhar. Olhamos o espaço vazio com tanta força, tanta concentração (alguns chegam mesmo a semicerrar os olhos) que dificilmente nos conseguimos aperceber daquilo que estamos a ver realmente.

Estamos a ver o plano de fundo; vemo-lo desfocado, impreciso, no entanto procuramos explicação para aquilo que somos incapazes de compreender. Vale o esforço, falham os resultados, sobra-nos o mundo que temos.

Pobres daqueles que ignoram o vazio, são tomados por tolos.

As pessoas inteligentes não têm dúvidas e nunca (ou raramente) se enganam. Toda a hesitação é por elas resolvida recorrendo à sua inexcedível inteligência. A cada problema resolvido corresponde tempo ganho, dinheiro em caixa, riqueza adquirida e sabedoria... sabedoria... sabedoria!?

Entre o tolo e o inteligente ergue-se uma torre enorme e sem nome, paredes lisas como marfim, apenas uma abertura, uma frincha estreita que é a porta. Dentro da torre não há nada, apenas o tal vazio e, além do vazio, existe a ausência de luz, a mais completa escuridão. Na verdade esse vazio é percepcionado como sendo a essência do Universo pelas pessoas inteligentes que, por serem inteligentes, são consideradas sábias. A ausência de luz permite uma maior concentração aos sábios e provoca algum desconforto naqueles que são tolos.

As pessoas inteligentes, os sábios, afirmam ser capazes de compreender o espaço vazio (na verdade não vêem nada, muito menos no interior da torre) ao ponto de proporem modelos que traduzam essa ausência  em algo palpável, normalmente recorrendo a complexas conjugações de algarismos, números e símbolos cabalísticos. É coisa só para iniciados.

Na verdade esses sábios, pessoas inteligentes que conhecem a magia dos números, estão a construir modelos do interior de si próprios e não daquilo que julgam estar a ver. Quando muito conseguirão proporcionar um vislumbre da forma como percepcionam o plano de fundo, até mesmo aos tolos que manifestem interesse suficiente em tais assuntos. Poderemos sempre questionar o espelho como fez a Rainha Má.

Esta fábula não tem fim porque sempre que surge um sábio há, pelo menos, um tolo que o persegue ou admira ou tenta compreender. Sempre que um novo modelo é oferecido ao mundo que pretende explicar há uma multidão de basbaques prontos para tudo: acreditar, duvidar e refutar. Assim o processo é reiniciado, o vazio volta a merecer toda a atenção. História sem fim enquanto houver Humanidade.

Ao tolo cabe um estranho papel.

terça-feira, novembro 12, 2019

A vida como ela é

É um bocadinho assim-assim, incomoda-me! Ouvir uma coisa dessas e ficar impassível, sem rir ou sem barafustar... é complicado. Apetece-me logo dizer "pois, pois, conversa da treta, é o que é" ou algo do género que um gajo tem dificuldade em calar a revolta cá dentro, não vá o esforço provocar alguma hérnia. Mas, prontos, um gajo tem de comer e calar. É a sina do povo.

Um tipo come e cala, cala e come, come e cala, cala e come, não é vida que se deseje para ninguém quanto mais para si próprio. De tanto comer e calar um gajo aproxima-se do abismo da revolta e fica a pensar seriamente na possibilidade de saltar e cair lá bem no meio da luta. Mas hesita-se que uma pessoa tem medos, um gajo tem receios. Vai ficando a cirandar por ali, à beirinha do precipício. Mas saltar... já é outra conversa.

Um gajo tem os tomates para usar quando são necessários e aplicá-los naquilo para que servem. E quando se depara com uma injustiça daquelas ou uma incompetência como esta é difícil ficar impassível, sem rir ou sem barafustar... é complicado.


domingo, novembro 10, 2019

Amigos

Os amigos não são melhores nem piores. Como podemos ter um "pior amigo"?

Os amigos são tudo o que temos.

sábado, novembro 09, 2019

Eternidade

Tudo estava devidamente inerte. Era essa a ordem natural daquelas coisas que, imóveis, absorviam a luz, absorviam os sons, coisas que quase chegavam a respirar, como se estivessem vivas. Olhá-las era arriscar a sanidade. Ignorá-las era como perder a razão de viver. O que fazer, então?

Decidiu não fazer nada. Absolutamente nada. De olhos fechados avançou pela inóspita paisagem. Cada passo carregava um universo de possibilidades. Sabia que avançava (ou recuaria?) mas isso era apenas um detalhe sem a mínima importância.

À medida que caminhava, olhos fechados, coração apertado, apercebeu-se de uma estranha rigidez que lhe ia tolhendo os músculos, uma secura desconhecida na boca, quase sentia terror, mas porquê? Cada novo passo era mais pesado que o anterior, cada momento era mais longo, até que parou por completo, incapaz de avançar. Assim ficou.

A tentação foi mais forte que a razão, a voz que lhe impunha o fechamento das pálpebras hesitou por um momento e ele abriu-as revelando o extenso vale de areia azul. Também ele era, agora, uma daquelas coisas. Estático compreendeu que assim permaneceria até que o tempo lhe dissolvesse a vida.

sexta-feira, novembro 08, 2019

Melancolia

Na escuridão o mundo é outra coisa. Sem luz não há cores e, sem cores, as coisas são tão diferentes! Na escuridão, a menos que sejas cego, reina a dúvida; a escuridão é o império da incerteza. Em terra de cegos a escuridão é clareza de espírito?

Ah, as palavras, as coisas estúpidas que elas nos obrigam a dizer.

Uma estranha melancolia percorre-me o peito. É como uma brisa soprada dos lados do deserto, um suave sopro que passeia dentro de mim com uma indolência insultuosa. Tento ignorá-la mas nada, não sou capaz. Afinal ela passeia-se lá muito dentro de mim, no fundo do meu coração, na escuridão inacessível do meu ser. E, na escuridão, o mundo é outra coisa.

Sorrio na direcção do meu interlocutor. Ele continua a falar. Apercebo-me de que não se havia interrompido. As palavras brotando da sua boca como água de uma fonte. Compreendo que lhe basta o meu sorriso, um ou outro gesto de assentimento que lhe garanta haver da minha parte alguma conexão com o seu discurso. Fraca garantia o satisfaz.

E é assim: palavras e mais palavras, sons que ecoam na realidade dos objectos circundantes e me devolvem a verdade distorcida; uma verdade que me enforma e auxilia na construção do mundo tal como julgo vê-lo. Até do meu olhar eu já duvido pois sei bem que quando a luz se vai e se instala a escuridão o mundo é outra coisa.

quinta-feira, novembro 07, 2019

Um búzio

Os dedos dos pés na areia húmida traziam-lhe recordações de infância a cada passo que dava. Um búzio de dimensão generosa parecia aguardá-lo mais adiante; estático, como se se banhasse, ora visível ora escondido na espuma que o mar ia babando sobre a praia. O búzio parecia chamá-lo.

Respondendo ao apelo avançou, baixou-se, a perna esquerda esticada, em equilíbrio sobre a flexão da perna direita, apanhou o búzio. Tomou-lhe o peso, sentiu-lhe a textura e encostou-o ao ouvido para ouvir a voz do mar (coisa estúpida de se fazer ali, com os pés dentro de água e o mar todo a falar-lhe tão perto).

Mas o que ouviu foi estranho, foi como um grito, não foi aquele murmúrio surdo que esperava, a voz habitual dos búzios, nada disso, foi uma coisa aguda, um som que lhe alfinetou a alma, que o inquietou, que lhe causou um arrepio tremendo. Olhou espantado a abertura do búzio que lhe havia largado dentro do ouvido aquele som horripilante.

Atirou o búzio para longe, restituindo ao mar aquele segredo estridente. Ele que ficasse com aquilo, que raio! Voltando as costas às ondas continuou a caminhar. Os dedos dos pés na areia húmida traziam-lhe recordações de infância a cada passo que dava.

quarta-feira, novembro 06, 2019

Discurso directo

Nunca te aconteceu, amável leitor, sentires que aquilo que tens para dizer é urgente e verdadeiro mas que, quando o disseres, nem todos os que te ouvirem vão ficar agradados? É claro que sim, que já te aconteceu, faz parte da vida de todos nós. É a opção entre falar ou ficar calado.

Agora imagina um dado adicional; aqueles que te vão ouvir de nariz torcido têm poder sobre ti. Aqueles que vão sentir as tuas palavras como alfinetes espetados debaixo das unhas podem decidir sobre assuntos que te interessam e podem impedir-te de vires a ser um pouco mais feliz (ou menos infeliz, é como naquela cena do copo meio cheio ou meio vazio).

Vão dizer-te que não se morde a mão que te dá de comer. Pessoalmente respondo: depende.

domingo, novembro 03, 2019

Contra o chumbo, marchar, marchar!


Assistimos à enésima arremetida ministerial contra as retenções no ensino básico. A redução espectacular dos chumbos que se verificou desde que Brandão Rodrigues é ministro não basta, queremos mais, queremos melhor! Enquanto houver uma retenção que seja, descanso e auto-satisfação não serão opções.

Novos estudos fornecem velhas conclusões: a retenção é selectiva, é precoce e cumulativa, levando na enxurrada do insucesso os filhos de famílias mais pobres, menos estruturadas e com menor capacidade de acesso a bens culturais. Haja esperança, até ao final desta legislatura o salário mínimo aumentará para 750 euros.

Velhas conclusões sugerem velhas soluções: acompanhamento individualizado, sistematização de programas e currículos, envolvimento activo dos diferentes actores educativos mas, sobretudo, apostar no empenho de professores e directores escolares reforçando a sua autonomia. Desta vez é que é!

Nas salas de aula continuarão a reunir-se turmas demasiado numerosas, os programas e currículos serão, como sempre, extensíssimos e desajustados, a carga burocrática do trabalho dos professores continuará kafkiana e com tendência a contribuir para o enlouquecimento de uma classe profissional envelhecida e, dizem, desmotivada.

Não obstante, no final da legislatura os resultados serão animadores, verificar-se-á que as taxas de retenção diminuíram, que o abandono escolar recuou e o ministro poderá sorrir, confiante de ter realizado um bom trabalho.

No universo dos números e das percentagens tudo está bem quando acaba bem. Verificar se a luta contra a ignorância e a estupidez teve sucesso será algo mais difícil de avaliar e não interessa a (quase) ninguém.


Carta enviada ao Director do jornal Público a 3 de Novembro de 2019

Escrito na rua

 Grito, Novembro de 2019



Quando sinto a esperança a fugir de dentro de mim faço um desenho.

Alguns dos meus desenhos são como abraços com os quais tento retardar a fuga da esperança. Outros são rasteiras, são murmúrios, são gritos.

Os meus desenhos são feitos de esperança que, como sabemos, é a última coisa a morrer. Mas a esperança, como todas as coisas, no fim morre também.

segunda-feira, outubro 28, 2019

Batalha final

É um rumor, um som distante, uma batida, tum-tum-tum, uma batida que se aproxima, tum-tum-tum, cada vez mais próxima, marcial, uma batida que marca o presente, obstinada na marcação do futuro, tum-tum-tum...

Impossível ignorar esta marcha implacável. Os marchantes não se vislumbram ainda mas é com angústia (e talvez algum terror) que se adivinham. Já vejo a poeira que levantam erguendo-se acima da linha do horizonte, eles estão aí. Tum-tum-tum, são tambores guerreiros anunciadores dos exércitos que se aproximam.

Do lado contrário chega-me aos ouvidos um outro rumor, ban-ban-ban, outra batida, não menos marcial, se vai afirmando e se aproxima. Inexoravelmente. Ban-ban-ban, de um lado, tum-tum-tum do outro. Dois exércitos em marcha sincopada movimentam-se na direcção exacta do local onde me encontro.

Olho o pulso. O relógio está parado. É hora.

quinta-feira, outubro 24, 2019

Trípticos

Nascer, crescer, morrer. Este é o ciclo de vida para tudo o que existe. Sejam animais, estrelas ou nações; tudo nasce, tudo cresce, tudo acaba por morrer. Talvez mesmo o Universo esteja sujeito a este tríptico existencial.

Veio esta reflexão a reboque de estar eu a relembrar o ciclo dos "estilos artísticos" tendo por modelo o estudo da arte grega que é habitualmente dividido em três períodos: arcaico, clássico e helenístico.

Sendo o período arcaico o do nascimento e aprendizagem, a busca de uma linguagem própria (com forte influência egípcia); o período clássico o do estabelecimento dos cânones que representa o apogeu da arte grega, a afirmação das características distintivas e grandiosas que irão perdurar na memória histórica; finalmente o período helenístico, marcado pela degradação dos cânones, pela ultrapassagem dos dogmas, pela inventividade individual em oposição às regras uniformizadoras estabelecidas no período clássico.

É interessante comparar este ciclo dos estilos à vida e desenvolvimento de um ser humano: a infância e a adolescência como períodos de aprendizagem mais intensa; a idade adulta como período de afirmação e convencimento de se ter chegado a algum lado, de sermos capazes de encontrar conclusões convincentes para a definição daquilo que somos; finalmente a 3ª idade.

Aqui, a comparação da recta final da nossa vida com o período helenístico talvez não seja a coisa mais óbvia mas não deixa de ser uma proposta aliciante: fazermos dos nossos últimos tempos tempos de rebeldia e transgressão relativamente àquilo que imaginámos ser anteriormente. 

terça-feira, outubro 22, 2019

O Canibalismo Cósmico

Reagindo à hipocrisia dos cultivadores da bondade industrial enlatada que a vendem à semelhança das antigas bulas papais, suportados em esmagadoras campanhas publicitárias, surge uma nova vontade sinuosa que emana lentamente do lixo gorduroso das cidades, do lixo tecnológico indestrutível, que se eleva serpenteante dos ambientes anormais dos micro-climas poluídos e das mutações genéticas aberrantes por eles provocadas. É uma vontade quente que envolve os objectos em auras luminosas semelhantes a auréolas divinas, retirando-lhes frieza, enquanto renova o seu sentido mágico valorizando mensagens simbólicas que lhes são inerentes.

No aspecto criativo essa vontade manifesta-se numa iconologia caótica que decorre naturalmente do súbito crescimento desmesurado dos dados disponíveis e captáveis, produzidos freneticamente pelo mundo tecnológico moderno. Trata-se da procura constante da reconstrução de processos simbólicos e narrativos. Reinventam-se métodos e objectivos.

Os criadores do actual fim-de-século que habitam  a sociedade tecno-industrial não aguardam o futuro, vivem-no tão intensamente no dia-a-dia que este se embrenha no passado, formando um tempo único e compacto. Assim é perfeitamente possível hibridizar na arte contemporânea sinais temporalmente tão distantes como as obras de Jheronimus Bosch e Jackson Pollock ou Mozart e Frank Zappa. É um método criativo que mistura e adapta todos os tipos de técnicas e informações extraordinariamente variadas.

Gera-se uma arte subversora do Belo que se metamorfoseia até ao infinito na busca do objectivo primordial: a Universalidade Mágica.

O Canibalismo Cósmico é um ritual criativo baseado na libertação dos dogmas e na crença de que a hibridização anárquica é a suprema forma organizativa.

Rui Silvares
Novembro 1989

sexta-feira, outubro 18, 2019

Uma coisa na ponta dos dedos

Olhar para um écran de televisão e ver o que se vai passando na Catalunha deixa-me uma estranha sensação alojada no peito. Ontem dei por mim a pensar baixinho que, se estivesse em Barcelona, decerto seria um dos muitos milhares que povoavam as ruas. Mesmo não sendo catalão, decerto estaria ali.

A questão não é legal, a questão é política. É uma questão de Liberdade para decidir. Escrevo estas palavras e percebo que tenho o coração na ponta dos dedos, que, se calhar, as coisas são muito mais complicadas, que não percebo nada do que se passa, que haverá explicações racionais capazes de desarmar os meus sentimentos com a facilidade de quem rouba um chupa-chupa a uma criança. Mas não há nada a fazer. Coração é coração.

Em miúdo, li o Spartacus, de Howard Fast. O livro marcou-me para a vida. Mais do que A Ilha do Tesouro ou As aventuras de Huckleberry Finn, outras das obras que me aconchegaram a adolescência. A luta dos escravos pelo direito de serem livres impressionou-me, mas o que mais me deixou a pensar foi a sua derrota e o castigo absoluto que sofreram.

Na minha mente juvenil formou-se uma coisa que nunca mais me abandonou. Não sei explicar bem o que é mas sei que é essa coisa que me leva o coração para a ponta dos dedos quando escrevo que a questão catalã é uma questão de Liberdade.

quinta-feira, outubro 17, 2019

Comunistas? Fascistas?

Podemos nós olhar para Kim Jong-un, o príncipe coreano,  montado no seu cavalo branco, rodeado por neves místicas e ver nele um comunista? 

Podemos nós olhar para a China de Xi Jinping e ver um país comunista?

Porque ficam tão indignados os militantes do Partido Comunista Português sempre que alguém põe em dúvida a bondade de Vladimir Putin, esse ser que resulta do cruzamento entre um czar e um ogre? 

E Maduro, lá na sua gaiola dourada venezuelana, a esbracejar desesperado, governando ao sabor de paixões pessoais, a sobreviver muito mais do que a deixar viver? É ele o rosto da utopia comunista?

São todos personagens tão diferentes, com orientações políticas tão personalizadas e patrióticas que, a meu ver, nada os une. Vejo-os tão semelhantes uns aos outros como vejo Trump e Bolsonaro semelhantes a Órban e a Kaczinsky. Vejo homenzinhos perdidos nos seus labirintos individuais. 

Não vejo comunistas, nem fascistas, vejo apenas gente que não compreende os outros, gente que não ama, muito menos é amada, gente que imagina a sua loucura como sendo a expressão máxima do Ser Humano. 

Vejo neles escumalha, ausência de expressão do Ser Humano.