Matina
Temos necessidade
de defender com unhas e dentes os nossos mais pequeninos. O papão
multiplica-se, como hidra de corpos malévolos, leva-os o vento e os espalha
pelos quatro cantos da realidade e da memória virtual. As crianças ficam melhor
quando restam em casa, protegidas das bestas que por aí andam à solta, livres e
alegremente largadas neste mundo e no outro; as bestas estão sempre prontas a
fincar o dente em algum pedaço de carne mais tenrinha. São gulosas, as putas.
As filhas-da-puta das bestas nunca ficam de barriga cheia: devoram tudo o que
apanham a jeito e, pelo jeito que levam, logo digerem o que antes paparam e
cagam de imediato o que ainda há pouco digeriram; vivem num estado de infinita
caganeira, o que é incomodativo e contribui fortemente para as tornar ainda
piores do que más. Assim cresce uma besta, filha e mãe do papão, e este mundo
fica mais perigoso, mais parecido com o outro, o ar que respiramos acordados a
misturar-se no que expiramos quando adormecidos e esquecidos das agruras da coisa.
Os nossos pequeninos precisam de nós. Estejamos atentos.
O menino deixava-se ir no
colinho do pai que tinha cara de bruto e semblante sombrio, vincado de rugas ou simplesmente indisposto pelo facto de ser manhãzinha tão cedo. O
sol, aquela hora, fazia ainda alguma falta. Mais tarde haveria de sobrar em
calor e suor. A verdade é que nunca estamos satisfeitos com a meteorologia ou,
então, precisamos apenas de um pretexto para não emudecermos quando encontramos
outro ser vivo semelhante a nós e ficamos face a face, como o boi e o palácio.
A mãe ia mais atrás, a fazer sons carinhosos e a dizer coisinhas fofas em
direcção à cabecinha do menino que se encostava de forma comovente ao ombro
bruto do pai com rugas e preocupação antecipada pelo suor que o sol haveria de
multiplicar mais tarde, quando a manhã avançasse sobre as montanhas e o Monte
Olimpo.
O pai do menino não dormira descansado. Talvez por isso levasse aquela
cara de cú a postar bosta da grossa. Sonhara com o papão a fazer mal à criança.
Um daqueles sonhos lixados nos quais sentimos tudo e não vemos quase nada. Um
sonho daqueles onde os nossos medos são apenas sombras gelatinosas que teimam
em não fazer sentido. A única imagem sólida fora a do filho a chorar, a berrar,
a espernear, a gritar como um cabrito desmamado, o filho envolto em sombras,
ameaçado por nuvens informes, como se aquele mundo fosse o interior de uma
garrafa translúcida repleto de fumo soprado por um deus drogado com uma droga
impossível de conceber por um simples mortal; e as drogas já são o que são!
O homem despertara profundamente
incomodado. Acordara antes que a ameaça se tivesse concretizado, sem perceber
que ameaça era aquela, sem saber se preferia dormir ou mergulhar de novo na
realidade; ele não se apercebia de que a sua dúvida era se ao acordar adormecia
e ao adormecer acordava, ou talvez fosse o contrário e estivesse tudo de pernas
para o ar. Estas coisas podem contribuir seriamente para a perda de juízo, caso
não sejamos capazes de compreender que raio de dúvida nos mordisca a sanidade
mental, como rato a roer pacientemente as folhas de uma enciclopédia, ao longo
de anos. Tal como o rato não fica mais inteligente por comer páginas de
conhecimento, também a loucura não fica igual a nós por nos devorar a
imaginação e as ideias mas é assim que nós ficamos loucos. O homem acordou
violentamente depositado na cama por uma onda de pesadelo monstruosa, o corpo
torcido, encharcado em suor. Os lençóis empapados mostravam-lhe como tinha sido
longa a árdua luta, Camões a salvar a sua obra, Ulisses amarrado ao mastro,
exemplos pequeninos quando comparados com o que o homem havia acabado de viver
no outro mundo.
O menino não parecia particularmente seguro de si. Talvez aquela
expressão um tanto desligada, um pouquinho estúpida, até, talvez aquela fosse a
cara de todos os dias do menino ou apenas a cara que o menino costumava ter
pela manhãzinha, impossível afirmar o que quer que seja com segurança de doutor
catedrático. A cabecinha encostada, as sobrancelhazinhas arqueadas, a boquinha
húmida e um fiozinho de baba que continuava a ligar o menino ao sonho de que
fora arrancado pela mão suave da mãe. O menino não tinha ainda desenvolvido
percepção exacta (quem a desenvolveu?) que lhe permitisse distinguir este mundo
do outro.
O pai abriu a porta do carro. A mãe fez mais uma festinha, repenicou
outro beijinho. O menino a viajar na confusa sensação de que os monstros estão
por todo o lado. Mais um abracinho, mais uma ternurice, “adeus meu tesouro, até
mais logo”, os bracinhos esticados num gesto de desespero infantil. O beijo
seco dos pais pôs fim ao momento que viviam, selado pelo bater da porta. O pai,
ao volante, haveria de recordar uma última vez toda a confusão que enforma o
mundo a que chamamos “realidade”. Arrancou a passo de caracol, levando o filho
preso no banco de trás, para segurança geral. A mãe ficou em terra, a ver
partir os seus amores, docemente enleada por um ser gigantesco que não via mas
que sabia estar ali, com ela, a dizer adeus, a secar-lhe a garganta, tudo
amalgamado, pernas, pelos, ossos, sangue, verdade e mentira feitas mundo, o
mundo todo a que ela pertencia e continua a pertencer.
O carro desapareceu na curva. A mulher voltou para trás. O dia
prosseguiu até agora.
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