sexta-feira, abril 29, 2016

Matina

                Matina
Temos necessidade de defender com unhas e dentes os nossos mais pequeninos. O papão multiplica-se, como hidra de corpos malévolos, leva-os o vento e os espalha pelos quatro cantos da realidade e da memória virtual. As crianças ficam melhor quando restam em casa, protegidas das bestas que por aí andam à solta, livres e alegremente largadas neste mundo e no outro; as bestas estão sempre prontas a fincar o dente em algum pedaço de carne mais tenrinha. São gulosas, as putas. As filhas-da-puta das bestas nunca ficam de barriga cheia: devoram tudo o que apanham a jeito e, pelo jeito que levam, logo digerem o que antes paparam e cagam de imediato o que ainda há pouco digeriram; vivem num estado de infinita caganeira, o que é incomodativo e contribui fortemente para as tornar ainda piores do que más. Assim cresce uma besta, filha e mãe do papão, e este mundo fica mais perigoso, mais parecido com o outro, o ar que respiramos acordados a misturar-se no que expiramos quando adormecidos e esquecidos das agruras da coisa. Os nossos pequeninos precisam de nós. Estejamos atentos.
                O menino deixava-se ir no colinho do pai que tinha cara de bruto e semblante sombrio, vincado de rugas ou simplesmente indisposto pelo facto de ser manhãzinha tão cedo. O sol, aquela hora, fazia ainda alguma falta. Mais tarde haveria de sobrar em calor e suor. A verdade é que nunca estamos satisfeitos com a meteorologia ou, então, precisamos apenas de um pretexto para não emudecermos quando encontramos outro ser vivo semelhante a nós e ficamos face a face, como o boi e o palácio. A mãe ia mais atrás, a fazer sons carinhosos e a dizer coisinhas fofas em direcção à cabecinha do menino que se encostava de forma comovente ao ombro bruto do pai com rugas e preocupação antecipada pelo suor que o sol haveria de multiplicar mais tarde, quando a manhã avançasse sobre as montanhas e o Monte Olimpo.
O pai do menino não dormira descansado. Talvez por isso levasse aquela cara de cú a postar bosta da grossa. Sonhara com o papão a fazer mal à criança. Um daqueles sonhos lixados nos quais sentimos tudo e não vemos quase nada. Um sonho daqueles onde os nossos medos são apenas sombras gelatinosas que teimam em não fazer sentido. A única imagem sólida fora a do filho a chorar, a berrar, a espernear, a gritar como um cabrito desmamado, o filho envolto em sombras, ameaçado por nuvens informes, como se aquele mundo fosse o interior de uma garrafa translúcida repleto de fumo soprado por um deus drogado com uma droga impossível de conceber por um simples mortal; e as drogas já são o que são!
 O homem despertara profundamente incomodado. Acordara antes que a ameaça se tivesse concretizado, sem perceber que ameaça era aquela, sem saber se preferia dormir ou mergulhar de novo na realidade; ele não se apercebia de que a sua dúvida era se ao acordar adormecia e ao adormecer acordava, ou talvez fosse o contrário e estivesse tudo de pernas para o ar. Estas coisas podem contribuir seriamente para a perda de juízo, caso não sejamos capazes de compreender que raio de dúvida nos mordisca a sanidade mental, como rato a roer pacientemente as folhas de uma enciclopédia, ao longo de anos. Tal como o rato não fica mais inteligente por comer páginas de conhecimento, também a loucura não fica igual a nós por nos devorar a imaginação e as ideias mas é assim que nós ficamos loucos. O homem acordou violentamente depositado na cama por uma onda de pesadelo monstruosa, o corpo torcido, encharcado em suor. Os lençóis empapados mostravam-lhe como tinha sido longa a árdua luta, Camões a salvar a sua obra, Ulisses amarrado ao mastro, exemplos pequeninos quando comparados com o que o homem havia acabado de viver no outro mundo.
O menino não parecia particularmente seguro de si. Talvez aquela expressão um tanto desligada, um pouquinho estúpida, até, talvez aquela fosse a cara de todos os dias do menino ou apenas a cara que o menino costumava ter pela manhãzinha, impossível afirmar o que quer que seja com segurança de doutor catedrático. A cabecinha encostada, as sobrancelhazinhas arqueadas, a boquinha húmida e um fiozinho de baba que continuava a ligar o menino ao sonho de que fora arrancado pela mão suave da mãe. O menino não tinha ainda desenvolvido percepção exacta (quem a desenvolveu?) que lhe permitisse distinguir este mundo do outro.
O pai abriu a porta do carro. A mãe fez mais uma festinha, repenicou outro beijinho. O menino a viajar na confusa sensação de que os monstros estão por todo o lado. Mais um abracinho, mais uma ternurice, “adeus meu tesouro, até mais logo”, os bracinhos esticados num gesto de desespero infantil. O beijo seco dos pais pôs fim ao momento que viviam, selado pelo bater da porta. O pai, ao volante, haveria de recordar uma última vez toda a confusão que enforma o mundo a que chamamos “realidade”. Arrancou a passo de caracol, levando o filho preso no banco de trás, para segurança geral. A mãe ficou em terra, a ver partir os seus amores, docemente enleada por um ser gigantesco que não via mas que sabia estar ali, com ela, a dizer adeus, a secar-lhe a garganta, tudo amalgamado, pernas, pelos, ossos, sangue, verdade e mentira feitas mundo, o mundo todo a que ela pertencia e continua a pertencer.

O carro desapareceu na curva. A mulher voltou para trás. O dia prosseguiu até agora.

quinta-feira, abril 28, 2016

Cansaço

Percorro o Facebook e leio mensagens que variam entre a lamechice mais enjoativa e a violência intelectual mais mesquinha. Sinto-me cansado. Precisava de algum conforto após um dia de trabalho cansativo mas não foi ali que o encontrei.

Pego num livro que estou quase a acabar de ler. Páro a duas páginas do fim. Sinto-me cansado, nem vontade tenho para chegar à última palavra daquelas quase duzentas páginas. O que se passa comigo?

Experimento o jornal... qual quê!

Tento imaginar algo para fazer e ponho-me a escrever estas linhas. Mas também a escrita me parece um peso insuportável.

...



domingo, abril 24, 2016

Hoje era Domingo

Comprei o jornal e um maço de tabaco. Paguei com o meu cartão de débito. Percorri os corredores do centro comercial até entrar na FNAC. Hoje era Domingo, dia de contar contos às crianças no palcozinho do bar. O bar repleto e barulhento (os alarmes estão sempre a apitar, estridentes como alfinetes a espetarem-se-nos no cérebro). As crianças, no palco, estão hipnotizadas, os pais, embevecidos, observam. Aquele lugar não é para mim.

Saio da FNAC e dirijo-me ao Starbuck’s. Um café e um muffin de mirtilo. Sento o cú numa poltrona confortável a abro o jornal. Hoje era Domingo. O Alentejo, a Uber, a nova temporada de A Guerra dos Tronos, vou lendo notícias e artigos até que um título capta a minha atenção: “A crise da água que está a ameaçar a Índia”. A descrição dos factos é aterradora. Crianças que morrem percorrendo territórios secos em busca de água. Populações inteiras que migram em busca de água; conflitos, refugiados…

Olho pela vitrina e vejo duas crianças a reclamar qualquer coisa. Caras feias, caras tristes, os pais, severos, esticam dedos, pregam moral. De súbito sou assaltado por uma sensação de incomodidade. Penso nas crianças do outro lado do vidro e tento imaginar as crianças que morrem na Índia, em busca de água.


Fecho o jornal, dobro-o e meto-o debaixo do braço. Saio dali meio perdido. Não me lembro bem o que ia a pensar quando entrei no meu carro e liguei a ignição. O mundo é tão grande e tão diverso… talvez não pensasse em nada. O que há para pensar?

quinta-feira, abril 21, 2016

Deus nada ex machina

Acabo de me aperceber que Deus, a existir, não deverá ter criado o Universo, em particular o nosso sistema solar. Isto porque, conforme a pregação, Deus terá criado a Terra para usufruto das suas criaturas, ou seja: nós.

Mas, sabemos agora, o Sol tem um período de vida limitado. O Sol vai morrer um dia e, com ele, toda a Criação.

Das duas uma: ou Deus estava distraído e não soube fazer as coisas, o que Lhe confere um estatuto nada condizente com a Sua suposta infalibilidade, ou então não passa de uma criação de mentes limitadas e ignorantes, como são as nossas.

Uma perspectiva mais melancólica poderá sugerir que Deus nos criou para O adorarmos sabendo de antemão que essa adoração tinha os dias contados. Oh Deus, que raio de coisas Te passam pela cabeça! És masoquista?

Os desígnios do Senhor são, de facto, tão insondáveis quanto a mente de uma minhoca.

segunda-feira, abril 18, 2016

Ser criativo

Há por aí quem se questione sobre os mecanismos da criatividade, como se pode enxotá-la lá do fundo do galinheiro das nossas ideias. Há quem acredite que ela pode sair a correr, agitando as asas com estardalhaço, fazendo saltar os incautos e os distraídos à sua desvairada passagem. Há por aí quem acredite que se pode forçar a criatividade.

Talvez seja possível fazê-lo, acredito nesse possibilidade, embora esteja convicto de que espevitar a criatividade individual tem de se fazer com jeitinho, assim como quem não quer a coisa.

Um dos maiores problemas prende-se com a maravilhosa variedade que caracteriza o Ser Humano. Aquilo que me estimula pode dar-te um sono dos diabos e vice-versa. Podes mesmo ser estimulado por um sono dos diabos (isso é bonito).

Pessoalmente, estou (quase) convencido de que a criatividade é um processo caótico e, como tal, é despoletada quando menos se espera, embora possamos criar condições favoráveis ao seu despertar a horas certas. Aquilo que funcionou hoje pode não resultar amanhã e a diferença entre um dia e o outro pode ser uma unha negra ou um alarme estridente que parou de guinchar num determinado momento. Um segundo antes ou um segundo depois e nada teria acontecido.

Perguntam-me como faço quando pretendo criar alguma cisa nova. Não faço, deixo acontecer. De vez em quando funciona.

quarta-feira, abril 13, 2016

3 dos meus heróis



Após concluir a montagem da exposição que vou inaugurar na próxima sexta-feira contemplei os trabalhos nas paredes da galeria e senti aquela coisa quentinha que nos é proporcionada pela sensação de um trabalho concluído.

Sentei-me um pouco a pensar naquilo que fiz e pude constatar a forte influência de 3 artistas do passado.

Por ordem cronológica: Hyeronimus Bosch, pela delirante imaginação que muito me sugestiona; Francisco de Goya y Lucientes, pela desenvoltura no tratamento dos materiais e pela forma profunda como olhou o ser humano; Max Ernst, o glorioso Dadamax, pela inventividade extraordinária nas propostas de tratamento dos materiaise nas técnicas que trouxe à luz do espírito.

Outros haverá que me guiam a mão e a mente quando trabalho mas estes 3 são, sem dúvida, os meus maiores heróis. Os meus 3 heróis.

segunda-feira, abril 11, 2016

Tempo morto

Acabo de chegar do aeroporto de Lisboa onde fui deixar a minha filha. São seis horas e onze minutos da manhã. Ela vai voar, eu estou sentado. Tenho duas horas até começar o meu dia de trabalho, duas horas entaladas entre ainda agora e mais daqui a nada.

A quebra das rotinas cria estes espaços indefinidos durante os quais podemos fazer o que quisermos e, na verdade, a vontade de fazer seja o que for não é lá muito grande. Sinto-me um pouco fora de mim, algo desorientado. A quebra das rotinas transforma-me em algo indefinido.

O dia vai ser longo. Além das aulas tenho duas exposições para montar. Serão longas horas de algum esforço físico e concentração em níveis máximos. Longas horas em que muitas coisas vão depender da minha capacidade de mobilizar e canalizar energias. No entanto... tenho este espaço de tempo vago, sereno; é a isto que se chama um tempo morto?

domingo, abril 10, 2016

Um Mundo Pior

Deus criou o nosso mundo. Perfeito, como é apanágio de Deus. Mas até mesmo Deus comete erros de cálculo como o que cometeu ao colocar no mundo a Humanidade.

Nós encarregamo-nos de fazer deste mundo um mundo cada vez pior. Ignoramos Deus (há quem acredite que Ele morreu embora outros pensem que se foi embora, apenas) destruímos com maior ou menor grau de consciência a Sua obra.

Da parte que me toca, penso que Deus não é tido nem achado nesta história. Inventámo-Lo muito mais do que Ele nos terá inventado a nós. Ignorá-Lo ou venerá-Lo não atrasa nem adianta o processo de destruição que encetámos há milénios.

A destruição da nossa própria espécie é o fim anunciado da narrativa Humana. Talvez porque temos consciência de que o Sol se haverá de extinguir e o suicídio será a melhor forma de pôr termo a esta merda.

Um Mundo Pior é uma exposição de desenhos negros (ver clicando aqui).

quarta-feira, abril 06, 2016

Ladrões e bandidos

Os designados Panama Papers puseram de fora o rabo do gato escondido. Todos nós sabemos que a corrupção é uma qualidade indispensável ao exercício do poder. Mas a exposição pública dos negócios duvidosos de tanta gentalha impressiona.

Chefes de estado, personagens públicas de diversas áreas, gente polida e mais ou menos educada, muitos tementes a Deus, outros agnósticos convictos, todos eles com as patas enfiadas na merda, agora sabemos quem são.

As centenas de vigaristas revelados impressiona não tanto por serem imensos mas por conhecermos os dados secretos de apenas uma das milhentas empresas que se dedicam ao negócio de roubar o povão por este mundo fora. Multipliquemos o número de esquemas corruptos promovidos pela Mossack Fonseca agora revelados pelos esquemas semelhantes promovidos por empresas suas concorrentes e teremos a dimensão aproximada das razões que explicam o desvario total em que sobrevive a espécie humana.

A Democracia treme e vacila. Agora que estes ladrões começaram a ser publicamente expostos como irá reagir a besta capitalista? Duvido que se deixe engaiolar, decerto vai começar a destilar um veneno qualquer, vai estrebuchar e retaliar.

Aguardemos.