sexta-feira, maio 23, 2014

Vislumbre

Hoje de manhã, ao ouvir o locutor a debitar notícias na rádio, tive uma visão muito sombria. Não pelo conteúdo das notícias, nem sequer me lembro do que o gajo dizia, a sombra toldou-me o espírito quando me concentrei no tom com que o locutor debitava as palavras.

A voz era morna e bem torneada, como são sempre as vozes dos locutores, mas a forma como dizia as coisas que tinha para dizer era de uma inexpressão, de uma frieza distanciada, que me fez recordar os tempos em que, miúdo, ouvia certos colegas a ler nas aulas de Português. Sabiam ler, é certo, mas davam a sensação de não compreender nem um bocadinho o conteúdo das suas leituras. A máquina funcionava mas produzia ruído e pouco mais.

Assim fiquei; estático por momentos, sem dar atenção ao texto, focado exclusivamente no tom. Tive um vislumbre daquilo que (compreendo agora) se está a transformar a nossa sociedade Ocidental: uma coisa vazia e ôca, travestida, uma falsidade que se afirma genuína constantemente, uma beleza horrível de tão perversa (que a beleza pode ser horrível sem ferir mais do que a susceptibilidade de alguns ou apenas da maioria).

Saí do carro como um zombie. Subi a rua sem me aperceber dos passos que dei, levava a cabeça perdida no tal sítio, a cabeça perdida num lugar que é apenas uma visão.

Quando dei por mim estava encostado ao balcão da pastelaria a beber um café. Fui trazido de regresso à realidade pela voz de flauta esganiçada de uma senhora que costuma tomar o pequeno-almoço naquele lugar e fala sempre como se estivesse a discursar sem microfone num comício. Que senhora tão irritante.

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