sexta-feira, dezembro 12, 2025

Permanecente

     Sinto a tentação de me fechar ao mundo como se fosse uma espécie de berbigão monstruoso. Fechar-me, vedar a frincha com indiferença pegajosa e deixar-me estar, isolado, a olhar o escuro com os olhos abertos como se estivessem fechados. Ficar assim, muito quieto, sem nada para fazer, sem fazer nada.     

    Na escuridão absoluta em que agora me encontro tento reflectir sobre quem sou, o que faço aqui, de onde venho, para onde vou, essas coisas básicas sem as quais dificilmente somos alguém ou, sequer, alguma coisa. Mas no escuro nada se reflecte, tudo é a mais profunda sombra. No escuro dificilmente sou.

    Começo a arrepender-me de ter desejado tal enormidade. Decido não ceder à tentação. Continuo aqui, a luz do sol a derramar-se sobre a minha alma; exposto à merda e à mentira, tento equilibrar o corpo sobre as pernas, tento manter alguma dignidade humana. Continuo aqui, a ser o que consigo ser ainda que não saiba bem o que isso é. Permaneço, apesar de tudo, permaneço.

segunda-feira, dezembro 08, 2025

Loucura e culpa (2)

     Leio entrevistas, ouço doutores a reflectir sobre a questão e mais comentadores do que os necessários tentando encher minutos de programação com palratório incessante sobre as razões que estão na origem deste movimento aparentemente imparável que é o que vem corroendo e destruindo a Democracia e o Estado Social na Europa. Citam-se autores, académicos, estudiosos, analisam-se tabelas, folhas de excel e sondagens, reflecte-se muito longamente para produzir informação que, caso pudesse ser colocada numa balança, decerto corresponderia a muitas toneladas de coisa nenhuma.

    Fala-se, fala-se, fala-se e os nazi/fascistas avançam inexoravelmente, conquistando as mentes dos jovens, um mistério inexplicável que talvez tenha explicação. É que os analistas ou são demasiado eruditos e não conhecem a baixa cultura popular, a versão actualizada da Pop Art, ou são demasiado burros e centrados em si próprios, o que os torna incapazes de verem o que está ali mesmo à frente das respectivas nariguetas. 

(continua mais uma ou duas vezes, talvez três) 

sábado, dezembro 06, 2025

Sinopse revelada

    O Último Reich


    O Último Reich resulta de uma adaptação de Terror e Miséria no III Reich, a peça de Bertolt Brecht, que levamos à cena em 2026, setenta anos após a morte do dramaturgo alemão. A estrutura da nossa adaptação é semelhante à do texto integral: uma sequência de cenas e situações independentes umas das outras que têm como pano de fundo um contexto unificador.      

    Reflectimos sobre a banalidade do mal, sobre nações e impérios que assentam alicerces nas vidas de pessoas comuns, sobre formas de sobreviver à estupidez e manter a sanidade, sobre coisas insignificantes que ganham contornos improváveis, o Efeito Borboleta a soprar nos ventos da História. 
 

    Rui Silvares 
    Almada, 4 de Dezembro de 2025

quinta-feira, dezembro 04, 2025

À procura da sinopse escondida

    Reflecte-se sobre o facto de a História não ser inevitável, sobre o facto de o Destino ser um mito, sobre não existir nenhuma pele humana sobre a qual uma qualquer Entidade tenha escrito a sangue a narração das vidas de cada indivíduo que calca o planeta. 

    Reflecte-se sobre o princípio de que as coisas acontecem como resultado de acções humanas que podem orientar-se neste ou naquele sentido, conforme as vontades, individuais ou congregadas, dos que constroem as grandes narrativas que servem de guias à nossa sociedade. Deus não tem nada a ver com isto.

    Reflecte-se sobre a ideia de que as grandes nações e os impérios poderosos assentam os seus alicerces sobre a força e o ímpeto de pessoas comuns. As coisas mais insignificantes podem ganhar contornos improváveis, é o Efeito Borboleta. Assim, uma nação obscura e em dificuldades pode renascer e transformar-se numa força avassaladora até que começa a perder a força do impulso inicial, abranda e, por fim, pára ao descobrir que os sonhos de glória acabam todos exactamente da mesma forma.

 

quarta-feira, dezembro 03, 2025

Loucura e culpa

     A culpa é dos políticos, dos partidos políticos, das suas políticas, dos jornalistas e do jornalismo, principalmente das redes sociais. A culpa é, sobretudo, das redes sociais e da maneira como a informação surge e se move nas redes sociais: no Tique Taque, no Instagram, no Facebook e por aí fora, todos canais possuídos por tenebrosos capitalistas, verdadeiros vampiros, autênticas personagens de Banda Desenhada, da categoria dos génios loucos ou dos simplesmente loucos, daqueles que, caso fossem pobres, seriam internados numa instituição qualquer e por lá esquecidos ou andariam a pedir esmola nas estações de metro e a comer ratazanas ao pequeno-almoço, génios com aquela loucura que os faz imaginarem-se capazes de dominar o mundo.

    A culpa da imparável ascensão de ideologias que repugnam pessoas da minha idade não é culpa fácil de atribuir. Aponta-se a Educação ou a falta dela, a aparente falência do sistema democrático, a incapacidade de distribuir a riqueza, a solidão de indivíduos que se fecham em suas casas e se vão transformando num híbrido, parte humano, parte vegetal, que vai perdendo a capacidade de sentir empatia, essa coisa já declarada horrível por Elon Musk, esse ser vivente que respira e tem a mioleira mais frita que uma batata belga. A culpa, desta vez, não pode ser atribuída ao macaco.

(continua)

domingo, novembro 30, 2025

Ubu, és tu?

    


    Ontem aconteceu o lançamento da minha versão de Rei Ubu, a obra-prima de Alfred Jarry, esse escritor tonto como uma barata. O facto de ter tido o trabalho de transformar a obra de Jarry em algo parecido com aquilo que ontem foi posto à venda, faz de mim quase tão tonto como Jarry, talvez um pouco menos pois até os tontos podem aprender qualquer coisa com o exemplo alheio. Diz-me os tontos que admiras, dir-te-ei que tonto és.

    A coisa deu-se no Salão das Carochas, ali em cima, em Almada Velha. O Zé Xavier Ezequiel, na sua qualidade de editor, apresentou a cena, o segundo livro editado pela Tordesilhas, uma editora ainda bebé. A sala estava bem composta e tive oportunidade de debitar umas quantas falsas banalidades. A Ana Nave também falou um bocadinho e depois a Josefina Correia e o Carlos Dias Antunes leram a primeira cena de Rei Ubu, as partes das personagens que eles próprios haviam interpretado em 2017, aquando da apresentação desta coisa em palco: a Josefina como Mãe Ubu, o Carlos como Pai/Rei Ubu.

    No fim assinei uns quantos exemplares, que o Ezequiel vendeu a quem os quis comprar, com uma caneta que a Ana Saltão me emprestou. Eu, que ando sempre com, pelo menos, uma caneta no bolso, esqueci-me de a(s) transportar comigo logo ontem, logo naquele dia. Tivemos ainda a possibilidade de beber umas garrafas de vinho e tasquinhar umas coisas secas (bem agradáveis). Enfim, foi uma espécie de festa. Até o meu irmão apareceu! 

sábado, novembro 29, 2025

Diferentes aspectos

     Olhava a mulher sentada de soslaio ou olhava de soslaio a mulher sentada? Não me recordo muito bem mas o seu aspecto não me deixou indiferente. Parecia ser um homem que se foi esquecendo da saudade a vida inteira e nem para tio ficou por não ter ninguém que se lembre dele, que saiba quem ele é, por não ter ninguém que o reconheça. O olhar dele não era amigável nem curioso nem desinteressado, apenas inquietante. Mais à frente uma rapariga com uma mala enorme estacionada ao seu lado auto-fotografava-se fazendo uma boquinha que dava ao seu rosto o aspecto de um rabo anguloso com um olho do cu protuberante.