sábado, novembro 16, 2024

Amanhã é dia do Senhor

     Celebrar o Nada, adorar o Vazio, eis a essência de todas as religiões. Ora tentamos preencher as lacunas criadas pela ausência de raciocínio, ora as ignoramos, afirmando tratar-se a ignorância de um mistério. Não fosse a religião manifestação da nossa absoluta incapacidade para compreender o mundo, poderíamos imaginá-la fruto de algum tipo de construção intelectual destinada a preencher o Nada, destinada a agitar o Vazio.

    A religião será, então, uma emanação da nossa impotência, da nossa incapacidade para encontrarmos justificação para sermos aquilo que somos (mesmo que não sejamos capazes de o compreender). 

    Estou convencido de que, sendo nós bichos como os outros, não existe o Nada, muito menos o Vazio; isto dispensa por completo Deus de ser o que imaginamos que Ele seja, o que decerto muito O aliviará. Isto porque Deus, a existir, não seria capaz de evitar esta mesma sensação de perda constante, esta angústia de não encontrar um sentido para o que quer que seja. Afinal de contas, não fomos nós criados à Sua imagem e semelhança?

sábado, novembro 09, 2024

A felicidade num buraco

     Ficar na sombra não é das coisas mais fáceis a que um gajo possa aspirar. A tentação de deitar um cornicho de fora é muito forte. Querer banhar a fronte na luz do sol, mostrar o sorriso, explicar a quem esteja a ouvir como somos gajos espectaculares, a compulsão da exposição social fala alto. Mas não tão alto que abafe a tendência natural para a anulação do ego. Quando esta existe.

    Uma educação católica em meio rural cava profundas valas onde semeamos modéstia com uma eficácia tal que a colheita dura a vida toda. E tentamos mudar, tentamos deixar a agricultura, imaginar outras actividades, mas nada funciona. Campónio uma vez, campónio a vida toda. Nunca deixarei de ser um campónio. Tempos houve em que a constatação dessa evidência me incomodou. Nos tempos que correm a condição de eterno campónio enche-me de orgulho. Vai na volta esse orgulho não é mais que auto-defesa. É bem possível que assim seja. 

    A passagem do tempo fornece a cada um de nós a possibilidade de vestir uma armadura mais ou menos eficaz contra os temores que o mundo vai sendo capaz de nos infundir. O mundo que se infunda! Que se infunda esta merda toda. Vou cavar um buraquinho onde possa aninhar-me confortavelmente, como imaginei a toca da raposa Salta Pocinhas, heroína imbatível da minha mais tenra infância. E nesse buraquinho serei feliz, até ao esquecimento absoluto.

quinta-feira, novembro 07, 2024

Um lugar infecto

     O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Para eles o ouro não chega a ser uma miragem. Nunca sairão daquele lugar infecto. "Que é o único lugar a que têm direito", pensou o homenzinho no guichet enquanto contava notas de 5 e 10 euros.

    O Pedinte e o Troglodita são extremos de uma linha sinuosa. O Pedinte não desiste da existência. Estende a mão, implora baixinho. Podemos não o ver mas não é porque seja invisível. É por sermos cegos. 

    O Troglodita é um gajo um pouco perigoso. Não percebe bem nada do que o rodeia. Tem feelings, por vezes feelings muito ásperos; tem sentimentos confusos. Antipatiza naturalmente com o Pedinte talvez por sentir que há, entre eles, algum tipo de competição. Por atenção? Por espaço? O Troglodita não compreende nada.

    "São umas bestas!" - o homenzinho do guichet não passa de um miserável (a vários níveis) mas contemplar aqueles dois maltrapilhos, que vivem e cagam no meio da rua, fá-lo sentir-se um nadinha poderoso. O suficiente para se imaginar uma personagem importante.

    O Troglodita adiantou-se ao Pedinte mas nem um nem outro terão, jamais, acesso à informação necessária. Nunca sairão daquele lugar infecto.

quinta-feira, outubro 31, 2024

Momento perdido

     Ler e reler o que antes escrevera vestia-lhe o espírito com um fato confusor, como o de Fred, a personagem de K. Dick. "Não sou ninguém" - pensou ele. Na verdade queria dizer que poderia ser qualquer um, que seria sempre alguém, porventura alguma coisa. Tremiam-lhe as mãos.

    Quis escrever algo que fizesse sentido mas não foi capaz.

quarta-feira, outubro 30, 2024

Enfartamento

     Hoje sinto-me incrivelmente farto desta merda toda. Talvez amanhã tenha perdido esta estranha sensação de vazio, de falta de motivação. Motivação para quê? - perguntarás tu, leitor amigo. Também não sei, respondo eu. Motivação para nada, motivação para tudo ou apenas para alguma coisa. Suspeito que é precisamente por não saber do que estou a falar que sinto esta espécie de náusea, esta espécie de vertigem, este desgosto em relação ao mundo. E a mim próprio.

    Sinto-me incrivelmente farto desta merda toda.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Fábula abstrusa

     Cantam passarinhos dentro desta minha cabeça. Piu, piu, repiupiupiu, cantam eles e eu avanço feliz, aos pulinhos pelo trilho da floresta. As árvores são de betão, as vacas deslocam-se sobre rodas, o prado é pintado de verde com umas pintas vermelhas aqui e acolá. São papoilas. 

    Não tenho tempo a ganhar, como tal não poderei perdê-lo. Um pterodáctilo passeia lá bem no alto, um macaquito sem pêlo olha-me de soslaio. Esconde qualquer coisa encostada ao peito ao virar-me as costas. Não me interesso por ele, muito menos por aquilo que esconde. Quero que o macaco se lixe. Prefiro dar atenção aos passarinhos que me esvoaçam no sótão. Piu-piu-piu-trólarópiupiu. A música é alegre e deixa-me bem disposto.

    Chego finalmente à escola. Tudo parece continuar no devido lugar. A bicharada esvoaça, rasteja, saltita, urra, pipila, zurra, tudo parece confirmar a torpe banalidade do costume. Quem tiver de comer haverá de fazê-lo, quem tiver sina de ser comido haverá de tentar escapar à dentuça alheia.

    Peixes grandes comem peixes pequenos.

terça-feira, outubro 22, 2024

Babel

     O Antigo Testamento é uma obra muito lida e muito comentada. Os exegetas cristãos esforçam-se por fazer leituras que não provoquem desconforto a Jeová, não vá o Diabo tecê-las. Assim, a tradição vai esclerosando o texto e nada de novo acontece. Ler a Bíblia é como ler o manual de montagem de uma estante do Ikea, está lá tudo muito explicadinho e não restam dúvidas, não há margem para erros de interpretação.

    Aconteceu-me recentemente com a passagem que refere a Torre de Babel (Génesis:11).

    Os exegetas interpretam a confusão linguística como sendo um castigo de Deus, penalizando a soberba humana, por pretenderem os homens construir uma torre que alcançasse os céus. Não me parece justo. Segundo a narrativa, a construção da Torre de Babel começa pouco tempo após o Dilúvio (esse sim, parece ser um inequívoco castigo divino, narrado em várias histórias anteriores ao texto bíblico, nomeadamente no Gilgamesh).

    Na minha maneira de ver, depois do Dilúvio a raça humana ficou traumatizada e terá sido o cagaço o combustível que pôs em andamento a construção da torre. Os homens não queriam aproximar-se fisicamente de Deus. Isso não faz sentido, qual a razão que os levaria a pretender proximidade com um ser incorpóreo que, ainda por cima, é omnipresente. Nem um macaco pensaria em semelhante patetice!

    Na minha maneira de ver, a construção da torre teve como principal motivo afastar os homens de um possível segundo dilúvio. Eles não queriam aproximar-se de nada, apenas afastar-se de nova subida das águas. 

    Então, porque haveria Jeová de os impedir de tal coisa? Porque Jeová é um Deus ciumento, vingativo e controlador e, evitando que os seres humanos conseguissem protecção nas alturas, conseguiria mantê-los sob pressão e ameaça, garantido desse modo que as suas leis e regras seriam mais facilmente observadas. Deus queria carneiros no Seu rebanho.

    Só não percebo muito bem porque carga de água criou Ele o homem se a carneirada lhe convinha muitíssimo melhor. Talvez por ser um Deus cínico? Se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança decerto não lhe terá transmitido apenas a beleza simétrica que nos caracteriza. Somos bichos de personalidade bem vincada, Pai.