segunda-feira, abril 07, 2025

Para chegar à alma

     A religião é útil para a organização de sistemas sociais embrionários, enquanto os elementos que formam um grupo não têm ainda consciência do papel que poderão vir a desempenhar no todo sem imaginarem coisas um bocado difíceis de aceitar (matar, roubar, cobiçar a mulher alheia, etc). Nessas circunstâncias é razoável ameaçar toda a gente com a figura de um pai que vive para lá das nuvens ou no topo daquela montanha inacessível que virá distribuir desgraças caso não sejam cumpridas as regras impostas pela religião. É como fazemos com as crianças quando elas não se portam de acordo com os nossos desejos, ameaçamos com o papão. Deus é o papão dos animais humanos mais ou menos adultos.

    Para sociedades formadas por elementos com dois dedos de testa, a filosofia facilmente substitui a religião. Penso que podemos encontrar a felicidade para lá dos altares e das estantes de livros mas reconheço que precisamos de algo que nos possa iluminar nas horas mais escuras. Pessoalmente não estou a ver que a religião sirva para atenuar a dor (quando os meus pais faleceram não me serviu de grande coisa, na verdade não me serviu de nada) mas acredito que possa confortar quem acredite piamente em certas coisas que, aos meus ouvidos, soam a treta absoluta. Não sei se invejo essas pessoas.

    Quanto à filosofia... confesso que não pensei muito no assunto, sou mais adepto da arte como via para fortalecimento e alívio do espírito. Bem vistas as coisas talvez o sistema seja encontrar complementaridade entre as diferentes vias: religião, filosofia, arte e mais que venha.

    O cérebro é, de facto, uma máquina complicada. É uma máquina capaz de produzir uma alma que lhe faça companhia.

quarta-feira, abril 02, 2025

Que somos nós?

    Se "pensar é acrescentar frases a uma frase inicial, multiplicar as frases em volta de uma primeira sentença" (Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação, pág 065), o que dizer do ser vivo? O que dizer de ti, que lês estas palavras? 

    O que somos nós senão vidas que andam à volta de si próprias? O que somos senão múltiplos de algo há muito esquecido? O que seremos senão seres unicelulares que se complicaram para além da capacidade de uma imaginação alucinada?                                              

terça-feira, abril 01, 2025

Árvore Imunalógica (reflexão opaca)

     

    Em princípio Deus terá sido inventado por algo semelhante a um Ser Humano apesar de, na maioria das cosmogonias religiosas entretanto estabilizadas, a coisa tenha acontecido ao contrário. Na tentativa de clarificar esta complexa questão criou-se a adivinha: “o que apareceu primeiro?”, na qual substituímos Deus e o Ser Humano, pelo Ovo e pela Galinha. Até hoje as respostas mais conclusivas e definitivas, que postulam ter sido Deus o primeiro a aparecer e que depois vai criando tudo o que mexe e tudo o que está parado, são teorias impostas à força da martelada ou plantadas em territórios fertilizados pela mais profunda ignorância. 

    A existência de Deus parece implicar obrigatoriamente que se tenha medo de alguma coisa, reverência absoluta e necessidade de protecção perante as forças cósmicas. Trata-se de uma protecção do tipo mafioso: “se queres estar seguro pagas uma mensalidade, se não pagas ainda te acontece alguma desgraça”; esta ideia resume, de algum modo, o essencial das chamadas “religiões do livro”. Normalmente a alma é a moeda de troca.

    (continua)

sábado, março 29, 2025

O fantasma

     Já ali não havia dia nem havia noite. Apenas um estado de paroxismo permanente; um espanto, uma estupidificação, uma ausência de sentido no fluir do tempo. A cidade; ruído infinito, movimento perpétuo.

    Ali estava ele. Cambaleante.

    As palavras salivavam-lhe nos lábios e ele a cuspi-las. As palavras saíam-lhe da boca acompanhadas de grunhidos, roncos animalescos, sons que só naquela cabeça faziam algum sentido. Aquele ser vivo não iria morrer tão depressa apesar de a vida não lhe fazer grande falta. 

    Transmigrava suavemente para a condição de fantasma.

terça-feira, março 25, 2025

Árvore Imunalógica

    

Árvore Imunalógica (inacabada)
acrílico sobre papel de aguarela em folhas de tamanho A3
7X42cm de altura

    A lua, uma aranha, hipopótamo, um nome, uma ideia, homem, mulher, espírito, o sol, luz, montanha, nuvem, jaguar, o livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, demónio, fogo, coisas pequenas, infinito, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas das formas de Deus. Desenhar a árvore genealógica de Deus, entidade híbrida por excelência, é tarefa deveras ingrata. Ao reflectir sobre o assunto encontrei uma árvore, sim, mas imune a qualquer tipo de lógica, encontrei uma “árvore imunalógica”.

segunda-feira, março 24, 2025

Deus(es)

     Montanha, nuvem, jaguar, livro, floresta, rio, pássaro, fantasma, nota de banco, elefante, fogo, coisas pequenas ou imensuráveis, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Deus! Umas vezes único, outras vezes múltiplo mas sempre poderoso e capaz dos feitos mais extraordinários. Deus ora te ouve e te vigia, ora te abandona à tua sorte. Vai-te lixar. Ou te castiga ou te premeia ou se mostra indiferente ao que quer que possas fazer. Deus é desconcertante, os deuses nem tanto. Traz-me um chá.

    Cogumelo, serpente emplumada, automóvel de grande cilindrada, sol, escuridão, tudo, nada, algo impossível e o seu contrário, eis algumas formas de Deus.

    Talvez pudesse continuar por muito tempo, talvez pudesse escrever muitas linhas, muitas páginas, porque Deus é tantas coisas, são tantos os deuses, mas já estou um bocadinho chateado. Fico por aqui.

sábado, março 22, 2025

Trampa

     Trump está apostado em transformar-se num vilão de Banda Desenhada. Um vilão meio apatetado, sem noção de quem é. Está convencido de que é grande mas é apenas gordo, imagina ter um penteado icónico mas é apenas careca, vê-se como um rei mas, a ser rei, não é mais que o rei dos merceeiros. Trump é uma figura de opereta.

     Trump é mau, é má pessoa, está todo podre, tem a alma apodrecida. É um bicho fedorento ferido no seu amor próprio e todos sabemos que uma besta ferida se torna triplamente perigosa. Trump está a fazer tantas coisas estúpidas, tantas coisas incompreensíveis, tem tanto poder e tão pouca inteligência (nenhuma sensibilidade) que é um perigo até mesmo para a cambada que acredita nas mentiras dele, que continua à espera que aquela boçalidade seja uma coisa fôfa, que a maldade tenha, afinal, inspiração divina (algo que não me surpreenderia).

    Trump é um cancro que, caso não venha a ser debelado, irá transformar o mundo todo em trampa. Como ele.