domingo, junho 18, 2023

Os cartazes

 

    Dependendo das situações dou por mim a indignar-me, ou não, com questões relacionadas com racismo. Tenho consciência de que, dada a palidez da minha pele, sou um potencial privilegiado num espaço sociopolítico dominado por homens velhos tão ou mais brancos do que eu.

    Talvez por isso, quanto à cena do nosso primeiro-ministro e dos cartazes com o focinho de porco com lápis espetados nas cavidades oculares, não consiga decidir se são ou não são racistas. Parecem-me apenas vulgares, mal concebidos, com uma linha estética simploriamente boçal, definida por uma vontade um tanto infantil de provocar ofensa. Nem sequer julgo que sejam de particular mau gosto. Não chegam a tanto.

sexta-feira, junho 16, 2023

Todos os fantasmas morrerão

     Os dias passam e o mundo cada vez mais parece menos: menos habitável para a generalidade das espécies, menos respirável, menos amável, definitivamente menos explorável. Cada dia para a frente dá a sensação de ser também um dia para trás, como se duas paredes paralelas de comprimento infinito se fossem aproximando, inexoravelmente, e eu (e tu, nós, todos) percorresse o corredor formado pelos muros à procura de qualquer coisa semelhante a esperança. Uma brecha, um desabamento, cimento húmido; mas - nada!

    O calor aperta também. Falou-se do degelo constante mas a notícia não durou mais que um dia. A guerra, a comissão de inquérito, as transferências de jogadores de futebol, são tantos os assuntos interessantes que o Apocalipse perde espaço noticioso. Já se sabe que todos havemos de morrer.

    Não consigo evitar a sensação de que assistirei ao fim de uma civilização. Serei um velho a observar o desabar do orgulho desmedido de uma certa parte da Humanidade (da qual fiz - ainda faço? - parte), talvez isso me proporcione algum distanciamento, alguma tirada filosófica para os anais que, azarucho, estarão prestes a encerrar as entradas de citações por caducidade absoluta do tempo da civilização.

    Sinto uma certa frustração por nem a vaidade sobreviver. Morrendo as pessoas do futuro morrerão também todas as pessoas do presente e do passado e todos os deuses (sim, com Jeová e Maomé de braço dado e à cabeça) por falta de memória que mantenha vivos todos os fantasmas.

sábado, junho 10, 2023

Verdade

        Notícia do Expresso – manchete – China regista, em Maio, a inflação mais baixa do mundo – Os preços no consumidor subiram apenas 0,2% em Maio, segundo os dados publicados esta sexta-feira pelo Gabinete Nacional de Estatística em Pequim. Até à data apenas cinco economias no mundo registaram em Maio inflação abaixo de 1%. As Seicheles entraram em deflação. 

        A mesma notícia no Observador – manchete – Inflação na China acelera para 0,2% - O valor da inflação homóloga na China verificou um aumento de 0,2%. Verificou-se um aumento nos preços de alguns alimentos, nomeadamente carne de ave, óleos e frutos secos. 

        Esta entrada com excertos de duas notícias respigadas em edições online quando andava à cata de informação noticiosa sobre a China serve para recordar que a "verdade" e a "realidade" não são sempre a mesma coisa. Estou convicto que nós fabricamos a "verdade" enquanto a "realidade" existe para lá da nossa percepção, envolvendo tudo como uma espécie de camada de ozono, uma camada factual inverificável.

        Penso poder afirmar sem que me tremam as pernas de vergonha que o ponto de vista individual, a convicção ou a vontade de acreditar em alguma coisa contribuem de forma decisiva para que a "verdade" ganhe consistência dentro das nossas almas (ou será nos nossos cérebros?). A imparcialidade é possível?

        A ser verdade (!!!) isto provaria que a realidade é algo mais abrangente, albergando tantas verdades quantas as que os indivíduos (ou os grupos) forem capazes de engendrar: a realidade como universo, a verdade como constelações ou sistemas planetários. Sei que isto é algo entre a filosofia de tasca e poesia de merda mas, na verdade (hihihi), é o que, de momento, se arranja.

        Talvez pudesse continuar a especular e a acrescentar exemplos e banalidades mas é tempo de concluir: a verdade é uma coisa muito nossa.

 

quinta-feira, junho 08, 2023

Goodbye Maria Ivone

     Ao que tudo indica a China será, num futuro não tão distante quanto isso, o novo farol da Humanidade em substituição do já gasto e confuso farol norte-americano. É, mais ou menos, a ordem natural das coisas. O império americano estafou-se. Goodbye Maria Ivone.

    Esta aparente inevitabilidade deixa muitos de nós, ocidentais, a torcer as mãozinhas e o nariz em simultâneo (eu, por exemplo, torço mais o nariz e menos as mãozinhas): então o que vai ser dos Direitos Humanos? Onde vai parar o Estado Social? O que vai acontecer à Liberdade de Expressão? Talvez estas questões sejam mais inquietantes para os europeus do que para os americanos ou, bem vistas as coisas, dentro de algum tempo talvez a maioria dos cidadãos nem se preocupe muito com tais direitos...

    Vamos por partes. Quanto aos Direitos Humanos tanto os américas como os europeus preocupam-se sobretudo com os seus próprios, quero dizer, os Direitos Humanos dos outros são normalmente questões relativas. Veja-se, por exemplo, a preocupação com a situação dos migrantes que vão alimentando os cardumes do Mediterrâneo ou com os outros que batem de chofre no muro da fronteira mexicana. Batemos muito no peito mas não é por isso que deixamos de beber a nossa cervejola enquanto comentamos o último naufrágio com um prato de caracóis. Liberdade de Expressão? talvez este seja o último anel que resta do tesouro que nos foi prometido com o regime democrático. Já o Estado Social é coisa que nos EUA não se percebe o que seja e é visto como uma perigosa manigância de regimes comunistas. 

    Mas, pensemos um nadinha, tanto os europeus como os américas têm manifestado vontades políticas muito pouco higiénicas sempre que têm sido chamados a votar. De Trump a Meloni, de Meloni a Le Pen, de Le Pen a todos aqueles políticos obscuros dos quais não sei o nome mas que se vão chegando ao poder um pouco por todo o continente europeu, a ascensão fascista parece uma pandemia descontrolada. Então qual o problema de um mundo dominado pela China? Pois é. Vou pensar nisso. Agora calo-me que o post já vai comprido.

quarta-feira, junho 07, 2023

Ainda a respeito da Economia

    

Temos vivido tempos políticos conturbados, não por questões de política propriamente dita, mas por aquilo a que os francófonos chamam "faits divers". É extraordinário que se possa continuar a discutir a legalidade de uma acção que poderá ter sido (ou não) tomada por fulano a mando de sicrano que nega tudo e o seu contrário, como se fôssemos figurantes de uma ópera bufa à escala nacional. Enquanto andamos nesta treta as coisas verdadeiramente importantes ou parecem menores ou simplesmente passam de fininho. 

            

          Veio António Costa fazer frente aos que o tentavam açoitar por não dizer a verdade, agitando-lhes à frente do nariz os números da Economia. Faltará Ética mas sobra Economia que é o que interessa! E depois vem a história dos bancos, dos certificados de aforro e dos juros e recordo a célebre afirmação de Luís Montenegro, devidamente enquadrada nos idos de 2014: "a vida das pessoas não está melhor mas a do País está muito melhor" bem na linha de outra reflexão intemporal, esta da autoria de Passos Coelho: "nós sabemos que só vamos sair desta situação empobrecendo".

 

E é muito isto! Neste período pós-geringonça recuperámos a perspectiva dos tempos da “troika”: "nós", o povinho, só nos safamos empobrecendo enquanto "eles", os ricos, não habitam o mesmo planeta e, certamente por isso, ficam cada vez mais ricos. Haverá quem consiga explicar a coisa com clareza mas eu não sou capaz. Faltam-me estudos.

 

Carta enviada ao Director do jornal Público

 

segunda-feira, junho 05, 2023

Seria um prazer

     Visto sob a perspectiva de quem anda por aqui a fazer pela vida, o nosso sistema sócio-político é uma coisa odiosa. Já muitas vezes expliquei que me considero um tipo com sorte. Por nunca ter passado fome que não fosse por opção, por nunca ter tido frio que não fosse por descuido, por ter uma saúde razoável. A tudo isto posso somar o facto de nunca ter tido faltas de dinheiro dramáticas. Enfim, sou aquilo que alguns designam por "nababo". Se bem que em pequena escala.

    "Então, se és um nababo, ainda que em pequena escala, de que te queixas" podes tu perguntar, velho amigo leitor (ou velha amiga). Queixo-me não por mim, mas por outros que vivem vidas de merda por serem, tal como eu, comidos por parvos pelas forças do capital. A diferença é que eu, depois de bem rapado e chupado pela vampiragem ainda vou ficando com uns trocos que me permitem comer bem e beber melhor. Nada de luxos desnecessários até porque, na sua maior parte, são inalcançáveis. E, sinceramente, estou-me bem a cagar para os luxos de um modo geral. Petinga, arroz de feijão e uma boa garrafa de tinto já fazem mim algo próximo de um paxá.

    Mas a verdade é que a forma como somos roubados à descarada pelos bancos e pelas geringonças das finanças não é nada agradável, muito menos justa, absolutamente imoral. Os ordenados miseráveis que auferem largas fatias da população, gente que trabalha para ser pobre, as rendas, os juros, os impostos, as taxas, tornam para mim um mistério a vida destes meus concidadãos. Daí que sinta alguma vontade de lixar a vida aos cabrões que nos lixam a nossa.Seria um prazer.

quinta-feira, junho 01, 2023

Cansaço inquietante (terror infinito)

     Cada dia que passa é menos um dia que vives, mais um dia que viveste. É assim, andas enrodilhado com o tempo, com o espaço, enfiado numa camisa de sete varas que te tolhe o pensamento. Tentas esbracejar mas nada, a coisa não se move, a coisa olha-te com aquele aspecto sobranceiro que têm as coisas como ela. 

    É inquietante.

    Corres para aqui, deslizas para ali. Faz um calor de cozer camelos no deserto, sentes a transpiração nos pés, nas mãos, escorre-te calor costas abaixo, são pingos de suor. Não é suor resultante do esforço intelectual, nem sequer do esforço braçal que te faz acreditar nos benefícios do trabalho. Não. Nada disso. É transpiração produzida por aquela estranha sensação que te deixa petrificado.

    É o terror.

    Esforças-te por acordar. Queres regressar aos lençóis, deixar para trás aquele mar infinito sobre o qual caminhas (sabes que apenas Cristo poderia fazê-lo!) mas não consegues deixar de avançar. Para onde diriges os teus passos? Em direcção ao horizonte que, como sempre fazem todos os horizontes, teima em deslocar-se à tua frente. Nunca o alcançarás.

    É o cansaço.

quarta-feira, maio 31, 2023

Pesadelo

     "É o bicho, é o bicho, vai-te devorar..." como cantava um certo cantor (qual o seu nome?) num tema que teve grande êxito e punha muita gente aos pulinhos. O bicho não esmoreceu (ele nunca vai esmorecer) e continua por aí, a cheirar, a lamber o beiço, a arreganhar a tacha, olhinho luzidio, contente por partilhar contigo este mundo no qual interpretas o papel de idiota gorducho pronto a ser papado. O bicho nem precisa ter fome, bastam-lhe os dentes.

    E se a maioria dos cidadãos for fascista por instinto e vocação? E se andares por aí a proclamar justiça e humanidade aos vizinhos estando eles simplesmente a cagar-se no que dizes, no que és e representas? Já pensaste nessa possibilidade? Eu penso nisso. Cada vez mais.

    Se os fascistas vierem a ocupar as cadeiras do poder estou feito ao bife mas não será isso que me transformará em pateta alegre. Só espero que a raiva (ou será coragem) que hoje me enche o peito perante uma besta fascista não se esvazie caso a besta se transforme em governante.

domingo, maio 28, 2023

Pequenas mentiras dominicais

     Tenho, por vezes, a sensação de que a presunção me poderia matar, tão forte a sinto no meu peito. Logo de seguida penso: "não é presunção tua mas do outro, tomas por presunção a tua percepção da mania de grandeza que emana daquele que discursa perante ti". Fico angustiado por não ser capaz de perceber o que realmente se passa comigo e com os outros, que relação posso estabelecer entre o que sinto, o que sei e o que acontece lá fora, ao redor do meu corpo.

    Mas afinal o que quero eu? Aspiro à santidade? Alguém consegue ser (absolutamente) imparcial na avaliação que faz de si próprio e do mundo circundante? Apercebo-me do modo como a ignorância me tem atrapalhado a existência, o modo como distorce, amplia e reduz as minhas ambições até esfrangalhar por completo a mais ténue possibilidade de percepção que possa ter de mim, do outro, do mundo.

    Poderá este texto assemelhar-se a um confuso lamento. Não creio que o seja. Faz-me lembrar vagamente os tempos em que ia à missa e, não tendo tomates para me confessar ao padre, aproveitava a homilia para imaginar conversas íntimas com Nosso Senhor. A coisa proporcionava-me momentos de imensa paz, dava-me conforto. Não é que tenha saudades desse tempo... talvez minta.

terça-feira, maio 23, 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Público, 22 de Maio de 2023

Leio (página 2): “Imigrantes em Lisboa e Porto: um quarto para cinco, por mil euros” e penso “é o Mercado a auto-regular-se”. Não tenhamos ilusões, o Mercado é um bicho esfomeado, a sua auto-regulação consiste em satisfazer a gula que é a sua razão de existir. Bem podem contorcer-se os chamados “liberais”, bater no peito reclamando que há bons e maus nesta história (os que batem no peito querem acreditar que são bons). Haverá bons e maus mas, como no Gólgota, uns e outros não passam de ladrões.

Mais adiante (página 9) o texto de Ricardo Arroja, “A ciência sombria” deixa-me a impressão de que a Economia é uma ciência capaz de proporcionar previsões credíveis desde que não haja “quebras de estrutura nos dados” e fico com a desagradável sensação de que Economia e Mercado são vírus produzidos no mesmo laboratório gerido por um qualquer génio maligno, daqueles que pululam nos livros de BD, cujo único sonho é a dominação do mundo.

Por fim (página 20) “Guterres fala em fracasso moral dos países ricos e pede reformas”. Qual herói com pequeníssimos poderes, o secretário-geral das Nações Unidas faz a sua habitual pregação no deserto. Os ricos não têm ouvidos; bem podes bradar, ó Guterres!

Haverá excepções entre ricos, economistas e liberais adoradores do Mercado mas as suas vozes, abafadas na multidão dos seus pares, nunca chegarão aos céus.

 Carta enviada ao director do jornal Público

 

segunda-feira, maio 22, 2023

À flor da pele

     Não sei se podemos chegar a considerar um mistério esta necessidade avassaladora que temos de encontrar dentro de nós algo de especial, qualquer coisa que nos distinga da manada, que faça de nós um bicho diferente dos outros embora de semelhante aparência. Raramente nos basta ser quem somos; raramente matutamos sobre o que realmente somos: animais.

    Quando por vezes alguém nos chama a atenção para essa nossa condição indiscutível procuramos espelhos por nós cuidadosamente escolhidos e mostramos o nosso reflexo neles. Desde a Bíblia, que prova que fomos criados por Deus e somos diferentes da restante bicharada, até aos manuais escolares que nos explicam que somos animais sim, mas animais racionais, os únicos que pensam, que se sonham e se questionam, arranjamos um sem número de artefactos por nós construídos que provam a quem quiser ver  a nossa excepcionalidade. Somos especiais, é o mínimo que podemos pensar.

    Quando olhamos um cão bem dentro dos seus olhos, ou um gato, ou mesmo um pequeno pardal saltitante, há qualquer coisa que assoma dentro da nossa alma, se por acaso a tivermos. Há qualquer coisa que faz vacilar a nossa certeza, qualquer coisa que nos traz o coração à flor da pele e ficamos a pensar: que maravilhosa expressão esta, "à flor da pele"! E damos por nós a imaginar como dirá o cão aquilo que o comove, como explicará o gato que coisas maravilhosas viu ao longo das suas sete vidas, o que pensará o pardal na hora de ir finalmente descansar.

    Se Deus existe não somos nada mais que bichos entre a bicharada, todos nós com o coração ao pé da boca e a sensibilidade à flor da pele.

quarta-feira, maio 17, 2023

Dos objectos

     Possuímos tantas pequenas coisas que nos são imprescindíveis no dia-a-dia que mais parecemos baús de viajantes desajeitados. Antes de pormos um pé fora de casa convém verificar se levamos connosco essa miríade de coisinhas: o telemóvel, a chave de casa, a chave do carro, a carteira, os cartõezinhos, o isqueiro, o maço de cigarros e mais que de momento não me estou a lembrar.

    Esquecer algum destes objectos pode fazer-nos sentir um agonia violenta ao ponto de voltarmos atrás para o recolher. Perder um deles pode revelar-se uma tragédia à moda dos gregos. Tecemos estranhas relações com coisinhas exteriores a nós que são aparentemente insignificantes, como se fossem pintos de uma enorme galinha cujo papel estamos sempre prontos a representar. 

    Fazemos disto um modo de vida, isto de andar a chocar objectos para depois os transportarmos e conduzirmos através das agruras deste mundo. Um dos problemas desta situação prende-se com a ausência de vida verdadeira nos nossos filhinhos queridos. De vez em quando um deles resolve esconder-se e, por mais que o procuremos, por mais que viremos tudo de pernas para o ar, o diabrete não se mostra nem revela deixando-nos meio loucos de angústia e raiva.

    Dizem que é a malícia dos objectos mas talvez tudo isto seja apenas uma expressão complexa da nossa infinita estupidez.


sábado, maio 13, 2023

Ser quase nada

     Não sei se também te acontece, não sei se, por vezes, tens aquela incómoda sensação de que pouco mais és que o teu número de contribuinte (o célebre NIF), que a tua identidade é mais fiscal do que humana. Sabes bem que, mesmo depois de morto e enterrado, os que por cá ficarem e sejam ecos do que foste, vão continuar a debitar aquele número que te identifica, como se o tivesses tatuado na alma e ele continue por aí, a pairar como se fosse um fantasma, o que resta de ti.

    Não sei se também te acontece tremer um bocadinho quando pensas que além do NIF tens o número da Segurança Social, o do Sistema de Saúde, o da Carta de Condução, o do telefone, o da porta de casa e do Código Postal... e o teu nome? A tua pessoa? Há alguém dentro de ti?

    Não sei se também te acontece mas eu, tem dias que penso que sou uma ficção na cabeça de alguém que tem a paranóia dos números e por vezes sonho um pesadelo em que esse alguém muda de registo (transforma-se em poeta) e eu fico reduzido a quase nada. Ás vezes sonho este pesadelo em que não sou nada apesar de saber que sou alguém. E transpiro como se tivesse rios inteiros dentro das veias.

sexta-feira, maio 12, 2023

Ser artificial

     É a Inteligência Artificial, IA para os amigos. E para os inimigos.

    Dizem que anda por aí, que vai ser a nossa madrasta, a nossa carcereira, há até quem diga que a IA vai ser a nossa assassina ou a nossa médica assistente neste processo de auto-destruição que encetámos vai pra muito, muito tempo. É a eutanásia global a ganhar contornos definitivos.

    Pessoalmente não lhe tenho ligado muito mas isso não me imuniza em relação aos seus efeitos, sejam de curta ou longa duração. Para ser sincero penso que não precisamos da IA para assinarmos a nossa sentença de morte: bastamo-nos bem uns aos outros.

terça-feira, maio 09, 2023

Riso e siso (e riso)

     "Muito riso, pouco siso", pois sim, já me tinhas dito. Rir é das coisas mais fixes que me lembro de ter feito em toda a minha vida. Quando o riso é sincero e me abana as fundações do esqueleto é como se a Felicidade ganhasse forma e consistência: a consistência de uma gargalhada incontrolável. É tão bom!

    Depois temos a versão "gargalhada forçada". 

    A gargalhada forçada não tem nada a ver com aquela outra, que referi logo a abrir ou, pelo menos, tem muito pouco a ver; é familiar afastada, é o que é! Uma prima em 3º grau a dar-se ares de putéfia mas que, na verdade, é apenas uma prima incompreendida por emitir sinais dúbios, sinais confusos, enfim, todos corremos o risco de sermos mal interpretados. A gargalhada forçada corre muitos riscos de interpretação.

    Se pensarmos um pouco compreendemos que a gargalhada forçada pode ter diferentes origens e outros tantos destinos. Pode vir da necessidade de mostrarmos cumplicidade com o outro e dirigir-se ao ego alheio; pode ser uma demonstração de compreensão de algo que não compreendemos lá muito bem e ir direitinha para o canal que sintoniza o desprezo no nosso interlocutor; pode ser muito simplesmente uma proverbial expressão de boçalidade... a gargalhada forçada pode ser tantas coisas que nem ela sabe o que na realidade significa (até porque, sendo forçada, não pode reclamar grande coisa em termos de "realidade"... ou pode?)

    Termino aqui esta breve reflexão pois que me está a deixar um pouco macambúzio, um nada meditabundo, pensar tanto em gargalhadas não está a ser nada divertido.

domingo, maio 07, 2023

Coisa suspeita

     Hoje acordei bem disposto mas a coisa passou depressa. Regressei ao lugar um pouco incómodo, um pouco sombrio, ainda assim agradavelmente fresco, onde venho parar quando não me porto mal. Não há nada de errado, pelo menos nada que se note, mas a boa disposição dura muito pouco tempo. 

    Não é que se transforme em terror ou desespero, nada disso! Longe disso. Nem sequer posso suspeitar que alguma depressão possa vir a instalar-se no céu por cima desta minha cabeça. É apenas este leve sopro, esta pálida maçã, aquele vulto difuso, uma certa ausência de vontade. É este não-sei-quê que me incomoda por não ser capaz de compreendê-lo.

    Mas, assim à primeira vista, não parece coisa capaz de me deitar na cama.

sexta-feira, maio 05, 2023

Fado velho

 

Toda a gente fala da trapalhada. Olha o Costa! Olha o Marcelo! E o Galamba? Andou tudo a adivinhar a atitude do Costa, a resposta do Marcelo, o castigo do Galamba. Agora é tudo a tentar adivinhar as intenções do Costa e as habilidades do Marcelo; o Galamba, esse, vai perdendo consistência física até ficar reduzido à pejorativa expressão: “galambada”.

Pessoalmente preocupa-me que seja necessário recorrer a gente do calibre de um Galamba quando se pretende formal um elenco ministerial. Poderia referir uma infindável galeria de personagens mais ou menos horrorosas que já desempenharam cargos de relevo nos governos da nação mas queria apenas realçar esse aspecto; não há gente melhor para sentar nas cadeiras ministeriais? Já nem digo gente mais qualificada, apenas alguém mais honesto ou, pelo menos, alguém que não mentisse descaradamente.

Depois penso: nas próximas eleições tudo vai mudar. Mas olho para as fotos nos jornais e vejo um Hugo Soares em bicos dos pés atrás do ombro de Luís Montenegro, vejo Ventura com aquela nuvem de personagens confusas de aspecto malévolo que o emolduram sempre que vem jurar amor a Deus, à Pátria e a não sei mais quê, vejo gente que vocifera e cospe perdigotos em todas as direcções, vejo pessoas nas quais acredito mas não têm a força dos votos e penso “ai o Costa” e suspiro “ai o Marcelo”. É o velho fado português. Folheio o jornal e vejo Trump, vejo Putin, vejo Biden, Zelensky, Meloni, Lagarde, Xi, Bibi, e penso: estamos f******!

 Carta enviada ao Director do jornal Público

sábado, abril 29, 2023

Nas ruas da zumbisfera

     Sim, eu compreendo, ler umas palavras escritas por um gajo qualquer num blogue perdido na confusão florestal da Internet é algo quase estranho. Cada dia que passa a nossa atenção é mais e mais solicitada de diversas formas; com maior ou menor agressividade, de forma mais melodiosa ou imposta por voz autoritária, a requisição dos nossos amores é feita pela publicidade, pela informação jornalística (24 horas-dia, 7 dias da semana), pelos vendedores de felicidade, pelas sereias, pelos vigaristas, pelos profetas, pelas plataformas digitais, tik-tok, tik-tok, o relógio substituído, pelos políticos de todas as formas e feitios... textos e imagens, sobretudo imagens, imagens em movimento, submergem a alma do confuso cidadão que esbraceja sem saber muito bem se é a maré que o puxa, se é ele quem a empurra para a costa.

    E, dás por ti, ainda lês estas palavras. És um dos 7 ou 8 que o fazem com alguma regularidade. Estás neste recanto escondido de um beco sem saída na Cidade da Informação e pensas... não faço a mínima ideia do que estás a pensar mas, imagino, gosto de te "ver" por aqui, seja qual for a razão que te trouxe até este lugar. 

    Apesar de tudo, tenho a ilusão de quebrar um pouco o isolamento escrevendo nestas 100 Cabeças, insistindo em arrastar os meus passos pelas ruas desertas da zumbisfera. Até mais logo.

quinta-feira, abril 27, 2023

Fome de mais tempo

     O tempo encurta-se, cada dia mais curto, cada dia mais fechado, é uma caixinha com forma de ampulheta. O tempo muda de forma, ora ganha ora perde um aspecto que anteontem não tinha ainda. É um tempo de narrativas curtas, vidas inteiras metidas num clip, num anúncio publicitário, numa canção da moda, três minutos top. O tempo encolhe, as histórias são historinhas e os heróis... o que é isso?

    O passado continua moribundo, espeto-lhe um garfo, corto-lhe um bom pedaço. Chamo-lhe nomes mas ele, digno (afinal é o passado!), ele não responde à provocação. A caixinha cai no chão e despedaça-se. Tempo espalhado, varrido, tempo na pá do lixo, tempo a jazer no caixote. Mastigo o pedaço.

    Acabaram-se as epopeias.

segunda-feira, abril 24, 2023

Uma grande aventura

     Nem Paraíso, nem Nirvana, nem o caraças! Muito me alegraria caso conseguisse manter a compostura durante os anos que me restam nesta vida que, imagino, seja a única que tenho e que, uma vez acabada: adeuzinho pessoal, até nunca mais!

    Penso que esta sensação de finitude absoluta não complica demasiado aquilo que se me vai formando na mona. Pelo menos por enquanto. Já ouvi falar de ateus empedernidos que se convertem à última da hora, não vá o Diabo tecê-las. Será que, chegado o derradeiro minuto, a morte nos abre nos olhos uma perspectiva qualquer sobre um outro universo? "Ah, bom, sendo assim..." pensa o ateu com um pé cá e outro no lado de lá,"... sendo assim acredito em Ti.", mesmo sem imaginar o que quer que seja que ordena o andamento destas coisas.

    Estou, portanto, a ponderar várias possibilidades de nem sei o quê. Imagino que a vida seja exactamente assim, uma aventura imprevisível mesmo até ao último suspiro.

quinta-feira, abril 20, 2023

Pode ser que me entendas

     É deixar correr a coisa, que se lixe. Ser lindinho e sorrir como se tivesse caca na boca? Fingir ser o que se não sente? Para quê, para que serve tal coisa? Ser uma treta e lucrar com isso ou não ser nada e ficar como estamos? É deixar correr a coisa e depois logo se vê.

    Fazer planos, forçar os acontecimentos de modo a que as coisas se ajustem ao que imaginámos? Que seca, que angústia. Quem pode desejar viver assim, a torcer as vidas de outras pessoas? É deixar correr as coisas, pode ser que a felicidade aconteça. A felicidade rompe-nos o peito quando menos se espera. 

    Viver sem ambições maiores do que aquelas que nos cabem na vida que vivemos. Pois, também me parece, esta frase parece uma coisa e, vai na volta, não quer dizer absolutamente nada. Seja como for, pode ser que me entendas.

quarta-feira, abril 19, 2023

Anseio

     Como influenciar o delírio do quotidiano? Como fazer parte do todo produzindo algo relevante? Como não ser invisível nem inconsistente? Como ser alguém neste mundo confuso e hiper-mediatizado? Ora porra, por que carga de água poderemos nós ser assaltados por questões como as que acima ficam e fazer das suas respostas algo semelhante a um objectivo de vida? Não nos basta respirar e existir?

    É difícil compreender onde acaba a mera vaidade humana e onde começa o espírito altruísta, onde cessa a selfie e começa o olhar alheio. É complicado separar o acto de ver da sensação de ser visto. 

    Gostava de acreditar que me comporto de forma desinteressada, que o que os outros pensam não influencia a direcção que decido tomar, gostava de acreditar que sou uma espécie de herói que respeita um certo conjunto de valores que gosto de apregoar. Gostava de acreditar em tudo isto... mas não sou capaz.

terça-feira, abril 18, 2023

Frustrações

     Não devo nada ao mundo real mas nunca viverei tempo suficiente para saldar a minha dívida com mundos que não existem. A cada dia que passa sinto o meu corpo a pedir com maior veemência que me deixe de merdas; a pedir que me deixe ir, que desligue, que seja de sonho ou, pelo menos, que me deixe ser imaginado. A vontade de compreender o mundo a que chamamos real não encontra correspondência na minha capacidade de o fazer. Fico frustrado.

    A frustração é como uma pequena pessoa impertinente, inconveniente como um canito mimado que ladra a tudo o que passa e não deixa ninguém sossegado. Preferia deixar-me andar à boleia na barca de Caronte, acompanhá-lo de um lado para o outro levando corpos, cobrando óbulos, conversando com as almas hesitantes. Mas não posso pertencer simultaneamente a dois mundos que mal se tocam. É frustrante.

    Concluo que a vida me obriga a ferrar um calote valente, a não ter como pagar esta dívida difusa que apenas sei que vai crescendo. O que me vale é que o Sonho não cobra quando estou acordado e dos pesadelos resta o suor matinal: está pago? O que me vale é que o Absurdo se vai contentando com as coisas que desenho, que escrevo e com tudo aquilo que me passa pela cabeça e esqueço quase de imediato. 

    Na verdade (seja isso o que for), contas feitas, só posso dizer, como terá dito Picabia: não compreendes o que digo? Pois bem, eu compreendo ainda menos.

quarta-feira, abril 12, 2023

Leveza

     O Passado é uma coisa estranha. Ora parece pesar na memória, ora parece aliviá-la. Vem como se fosse feito de ondas parecidas com as que vivem no mar. A estranheza da coisa é que o Passado não provoca desconforto nem conforta por aí além, está ali, está aqui, sabemos que continuará a crescer atrás de nós irmanado no Futuro, um e outro sendo coisas que não sabemos bem o que são.

    O coração confunde-se-me com a alma, misturam-se-me no cérebro, somos todos uma coisa só que se agarra ao corpo, somos todos eu. E somos feitos de Passado e de Futuro, andamos por aqui a viver aquilo que o mundo nos oferece e o que somos capazes de oferecer ao mundo. Sinto uma espécie de paz que até aqui desconhecia. Pareço mais leve.

sábado, abril 01, 2023

Se calhar

     André Ventura tem um discurso abjecto, cavalga a xenofobia como se fosse a Virgem Maria em direcção ao Egipto montada no seu burrico, debita palavras vazias, é uma espécie de fascista mal encapotado, etc. A complacência do PS, a indefinição do PSD, as acções do PS,  a fome do PSD, a inépcia do CDS, etc. Leio o Público e são várias as tentativas de explicação para a ascensão da extrema-direita no nosso país. A maioria dos comentadores aponta para a tibieza do sistema e dos políticos. Fico a pensar: então e os cidadãos que se deixam seduzir por um discurso tão notoriamente abjecto, que aplaudem e aceitam a xenofobia, que não se incomodam (antes pelo contrário) com o voto depositado na boca de um fascista? São vítimas inocentes das malfeitorias da classe política? São pessoas de bem tão desiludidas que se transformam em... em quê? 

    Se calhar o tal racismo larvar de que para aí se fala é mais real do que estamos dispostos a aceitar. Se calhar o falhanço do sistema educativo vem de muito mais longe do que pensamos. Se calhar as pessoas não se incomodam tanto com a mentira como afirmam quando estão na casa de Deus a bater no peito. Se calhar há mais fascistas entre as pessoas de bem do que seria salutar para o nosso futuro colectivo.

    

sexta-feira, março 31, 2023

Fazer sentido

     Muito se martela a questão: andam por aí novos censores a cortar a torto e a direito em obras de arte com valor cultural mais do que devidamente caucionado. É a barbárie que regressa no seu melhor fato domingueiro e sorrisinho alarve afivelado. Um dos últimos exemplos é o alarido provocado por uma exibição despudorada do David a uma turma de criançolas lá para o meio dos USA. Os pais (se não católicos pelo menos cristãos de uma seita qualquer) ficaram aos gritos de "aijesusdeusnosvalha" que isto é pornografia.

    Não fosse o despedimento da directora da escola e a coisa seria mero acrescento ao extenso anedotário da cretinice universal. O que passará nas cabeçorras dos pais das pobres crianças, agora traumatizadas pelo vislumbre do corpo desnudo do David? Como pode alguém ser tão burro ou, pelo menos, tão ignorante? Pensando melhor até que faz sentido. Afinal de contas são americanos daqueles que se empanturram com gordura e passam demasiado tempo a olhar por sobre o ombro tentando perceber se Deus estará por ali, vigilante e bisbilhoteiro, a micá-los com vontade de os castigar ao menor sinal de pecado. Provavelmente são americanos daqueles que consideram a mentira um pecado capital e depois votam em Trump e olham para ele como se fosse um instrumento do tal Deus sobre a Terra. Faz sentido.

terça-feira, março 28, 2023

Macacôa olé!

     É a célebre "macacôa". Estou com a macacôa. Sinto-me alquebrado, doem-me os pés, apetece-me ser um calhau posto à sombra num pinhal. Se pudesse obliterar o cérebro não hesitaria.

    Resolvi googlar a palavra sem grandes esperanças de receber algo de volta mas..., eis senão quando, sou informado que macacôa é "popular - doença de pouca gravidade; indisposição; achaque". Umas vezes com acento circunflexo, outras vezes sem, a palavra aparece em todos os dicionários online sendo que a Infopédia é o lugar que fornece mais e mais variada informação sobre a macacôa, chegando mesmo a sugerir que a palavra terá origem na sua hermana espanhola "macacoa" (esta sim, sem acento) que significa, na hermosa língua de Cervantes, "tristeza ou melancolia".

    Não me sinto doentinho, nem posso afirmar que sinta o que quer que seja que deixe adivinhar alguma indisposição ou achaque. Ainda bem que a Infopédia trazia aquele rematezinho elegante com voltinha em curva de ida e volta pelo lado de lá da raia. Concluo que a minha macacôa é mais espanhola que portuguesa. 

    Olé!

sábado, março 25, 2023

Ironia macabra

     Li no jornal uma espécie de notícia que informa que a "ONU denuncia execuções sumárias de prisioneiros russos e ucranianos". O texto desenrola-se citando situações um tanto abstractas das quais ressaltam números aproximados. De prisioneiros mortos ou torturados, de civis trucidados, queimados, explodidos e, a rematar, refere 133 casos de violência sexual. É um texto que não vem assinado (por lapso?). Seco, despersonalizado, agreste, o texto lê-se penosamente. Talvez seja um bom retrato do que é a guerra para quem a acompanha ao minuto via CNN de rabinho no sofá, um espaço de violência virtual habitado por fantasmas exaustos e andrajosos.

    Houve um pequeno parágrafo que me chamou a atenção: "O relatório constata que, embora o abuso de prisioneiros de guerra ocorresse em ambos os lados, os prisioneiros russos "foram mais bem tratados", sendo que a violência era mais comum contra ucranianos."

    Sublinho o "foram mais bem tratados", entre aspas, uma manifestação de desejo ligeiramente ardente de que os criminosos que apoiamos sejam um pouco mais humanos que os outros criminosos, que supostamente odiamos ou, pelo menos, desprezamos. Pergunto-me: odiamos e desprezamos esses tipos por serem criminosos?

quinta-feira, março 23, 2023

O sentido das coisas

     Pensar nas coisas tentando encontrar-lhes um sentido é uma tarefa de complexidade variável. O grau de complexidade pode ser desconcertante pois que uma questão aparentemente simples poderá revelar-se demasiado difícil e o contrário também pode acontecer. Estamos, portanto, num eventual estado de eterna estupidificação perante as coisas que constituem o Mundo (Mundo entendido como a soma das coisas físicas com as metafísicas).

    Pronto, bastou o parágrafo anterior para me ter metido numa embrulhada da pior espécie. Encontrar um sentido seja para o que for, parece obrigar-nos a um intrincado exercício dialético que nos conduz sempre em direcção a um ponto limite ou uma linha de fronteira. No extremo de uma reflexão sincera não deparamos nunca com um muro, antes vamos encontrar-nos na orla de uma densa floresta. Podemos voltar para trás, acampar no local ou pegar na catana da Razão e insistir, prosseguindo caminho.

    Acontece por vezes, termos um vislumbre de algo que nos parece uma resposta. Podemos mesmo encontrar uma forma perceptível no meio da floresta. Mas serão fugidios momentos de felicidade, sensações passageiras de plenitude. 

    Estou em crer que cada vez que algo faz sentido apenas acrescenta maior necessidade de reflexão para que possamos continuar a tentar compreender o mundo que nos rodeia. Ou seja, cada resposta encontrada apenas amplia o campo das questões a colocar seguidamente. Quanto mais penetramos a floresta mais densa ela se torna, embora nos ofereça, aqui e ali, uma nova clareira onde poderemos acampar e ficar. Mas, há alguém que resista à tentação de continuar a desbravar?

(estou a entrar no capítulo final de O Princípio de Tudo)

segunda-feira, março 20, 2023

Águas mornas

     

    A conversa não é fácil nem sequer muito clara. Discute-se uma eventual diluição da fronteira entre territórios políticos, uma terra de ninguém entre "esquerda" e "direita". Para João Miguel Tavares será uma espécie de "terra prometida" que o Deus do Bom Senso reservou aos liberais, o povo eleito. É aí que se vai construindo o discurso equilibrado merecedor de constituir o evangelho socioeconómico que nos levará à redenção enquanto projecto de sociedade. Apesar de normalmente tomar banho com água muito quente até posso concordar com parte substancial do discurso de JMT.

    O problema é quando a nossa reflexão é feita em abstracto, principalmente se formos pessoas com uma vida razoavelmente confortável que, apesar da inflacção e dos salários baixos, ainda conseguimos pagar as contas e ter dinheiro de sobra ao fim do mês para comprar um livro ou ir a uma sala de teatro. É que há uma multidão que não se pode dar a estes "luxos”. São os tais deserdados que nunca tiveram herança que não fosse fome e miséria. São os tais que, apesar de trabalharem, não conseguem ganhar dinheiro suficiente para pagar a renda de casa e poder comer decentemente uma vez por outra. E o tempo é curto.

    A morte de Rui Nabeiro veio lembrar a todos nós que a solução se encontra na redistribuição da riqueza. Não há que abominar o capitalismo. Há que abominar os abutres, as sanguessugas e os vampiros que se aproveitam da nossa incapacidade para encontrarmos o tal lugar sem fronteiras onde todos seremos (mais ou menos) felizes.

   carta enviada ao Director do jornal Público

domingo, março 19, 2023

17 horas

     Apercebeu-se de que nunca mais haveria aquela pessoa do outro lado da chamada telefónica. Tudo porque passavam as 17 horas no mostradorzeco do telemóvel. Sentiu um aperto na garganta que desceu ao peito, um desconforto, uma ausência. As lágrimas voltaram. Nos últimos dias as lágrimas iam e vinham como se fossem um mar. Foi então que constatou o facto de não ter visto o corpo. Um calor inesperado ruborizou-lhe o rosto. Poupara-se ao cadáver?

    Reflectiu sobre a questão. Quem poupara ele ou o que poupara? No deve e haver dos afectos nunca houvera qualquer tipo de poupança. Concluiu que não poupara nada, pelo menos conscientemente, não houvera poupança. Apenas entrega, amor e, agora, instalava-se a saudade. Todos os dias, quando as 17 horas passearem em direcção ao fim da tarde. Para sempre.

domingo, março 12, 2023

Oxalá

     Pergunto-me se a crueldade nasce do ponto máximo da capacidade humana em suportar a dor e a angústia, aquele momento extremo em que alguém pensa: "que se foda!" e a partir do qual tudo perde o sentido e tudo passa a ser possível. Deixa de haver amor, deixa de haver ódio, tudo se transforma em indiferença paranóica.

    A pessoa cruel não terá de ser necessariamente monstruosa, muito provavelmente será triste e angustiada: tristeza e angústia, instrumentos terríveis das forças obscuras que teimam em manter viva a nossa crença na existência do Inferno. 

    A crueldade é uma doença do espírito? Para que isso fosse verdadeiro a nossa condição natural teria de ser a da bondade. Oxalá.

sexta-feira, março 10, 2023

TINA

     Não há volta a dar-lhe, dizem que vivemos sob o patrocínio da TINA (a tal que diz "there's no alternative) mas, está na cara, é uma conversa da treta. Alternativa há sempre, o problema consiste em percepcioná-la e, mais complicado ainda, conseguir criar sinergias capazes de pôr a coisa em marcha. 

    O nosso modo de vida fomenta a fragmentação do grupo. Metemo-nos em casa a olhar para rectângulos com imagens (televisores, computadores, telemóveis) acreditando que através dessas janelas virtuais comunicamos com o Mundo. Talvez até seja verdade, talvez haja comunicação (olha para nós, aqui, a "conversarmos"), mas acaba por ser uma comunicação estéril em termos sociais. A haver algum benefício no processo será tendencialmente individual.

    E é esse o nosso fado: sermos indivíduos com barrigas salientes e um umbigo na ponta, o qual contemplamos embevecidos, convencidos de que o Mundo não nos merece ou, nos casos mais desesperados, que não merecemos o Mundo.

    Quando saímos à rua em grandes grupos e manifestamos desacordo com algum aspecto menos atraente da TINA ficamos com a sensação de que fizemos algo socialmente radical mas, no fim das contas, a TINA acaba sempre a rir-se. A puta!

carta enviada ao Director do jornal Público

quarta-feira, março 08, 2023

Reflexos do passado (e do futuro)

     Não sou gajo de perder muito tempo defronte ao espelho. Com o andar da carruagem tenho-me tornado numa espécie de burro velho e grisalho, não sinto grande atracção pelo meu próprio reflexo. Isso não quer dizer que me estou absolutamente nas tintas para o meu aspecto. Nada disso. Apenas não perco muito tempo a pensar no que me transformei nem sinto particular saudade por aquilo que fui outrora. A barriga teima em ficar como está.

    Ainda assim, quando dou por ela, estico a nuca e tento manter uma certa postura ao caminhar na rua. Depressa esqueço e volto ao andar marreco. Estica, marreco, marreco, estica, sempre dá um certo colorido ao acto banal de pisar o passeio.

    Gosto de me imaginar como sendo jovial e bem-disposto. Daí que me ria bastante comigo próprio quando vejo o tal gajo grisalho, com a sua barriguita e meio marrequito a olhar-se no espelho depois de uma bela banhoca matinal. Sei que não sente grande tristeza por ser assim. Sei também que se vai tentando convencer de que a beleza é algo interior, uma confusão qualquer entre Ética e Estética, mas, lá no fundo, pensa que a beleza e a perfeição não precisam dele para nada. E ficamos bem assim.

terça-feira, março 07, 2023

Frutos do futuro

     A mulher já teria tido a ilusão de ser bela. Agora ajeitava timidamente o cabelo e caminhava rente à parede da clínica. Lá mais prá frente todos nos transformaremos em coisas que antes não conhecíamos.

segunda-feira, março 06, 2023

Coisas sem sentido

     Deuses que viajam de barco. Anjos que vislumbramos na berma da estrada. Personagens de fábulas nas quais somos os animais que falam. 

    É como quando te proteges de um frio que não sentes.

    Queremos do mundo coisas que não tem para nos oferecer e o corpo revela-se: é uma atrapalhação do espírito.

    Vivemos os nossos últimos dias.

domingo, março 05, 2023

Da beleza

     A beleza nem sempre é uma mentira. Por vezes ela é difícil de compreender por não ter equilíbrio nem simetria nem proporção. Por vezes está ali mesmo, à espera de ser vista, e não há quem a vislumbre. A beleza pode ser uma coisa triste (nesses casos dizemos que é coisa melancólica), pode ser um abandono, um vento levemente soprado que verga com graciosidade flores à beira do Inverno, pode ser uma ausência que se transforma em saudade.

    Sinto-me atraído pela beleza imperfeita embora seja sensível à sua extrema perfeição (quando o milagre acontece). Não é que a procure, não. Penso que seja preferível deixá-la acontecer. Forçar a beleza é pedir ao mundo que nos dê algo que pode não ter para oferecer.

domingo, fevereiro 26, 2023

Negócio

     Tenho a impressão de que tudo pode ser reduzido à dimensão do negócio. A guerra? Negócio. A linguagem? Negócio. O lixo? Negócio. A saúde? Negócio. E por aí fora: negócio, negócio e mais negócio. Vida e morte? Negócios. Como chegámos nós a isto? Tudo se compra, tudo se vende, tudo se negoceia. Nesta lógica global quem tem o poder? Os gajos do guito, é óbvio.

    Curiosamente os gajos do guito nunca estão satisfeitos com aquilo que têm e procuram sempre o melhor negócio. E nós, o pessoalzinho, qual é o nosso papel no meio disto tudo? Somos coisas negociáveis. Temos mais ou menos valor de acordo com aquilo que podemos oferecer ou que nos pode ser tirado. 

    Não me parece que Deus tenha previsto uma coisa assim. Mais uma vez fico convencido que o plano Dele falhou. Ou então Ele não tinha plano nenhum e limitou-se a improvisar quando criou o mundo.

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Como se fora um calhau

     É a guerra, é a guerra! Na Ucrânia disputa-se mais uma guerra (quantas guerras estão activas neste preciso momento em todo o mundo?), faz depois de amanhã um ano que começou na forma que agora lhe conhecemos. Uns dizem que a culpa é dos russos, outros que foram os ucranianos a provocá-la, outros ainda garantem ser da responsabilidade dos EUA, da NATO ou da União Europeia. Há opiniões divergentes conforme o espaço habitado, físico ou ideológico. A única certeza que fica é de que está uma guerra em curso no território ucraniano.

    De certeza? Bom, há ainda quem pense que aquilo é uma "operação especial" o que não configurará bem uma situação de "guerra-guerra" mas sim algo diferente. Patético, não é? Parece que não, não para todos. 

    No meio de todas as declarações de amor à paz, de consternação, de empatia para com os que sofrem na pele a crueza da guerra, de júbilo pela coragem dos bravos ucranianos, de asco para com a brutalidade criminosa dos russos, de enaltecimento dos valores democráticos e de defesa da liberdade dos povos, fico confuso, zonzo, embrutecido, sinto-me uma espécie de calhau.

    Feitas as contas desconfio de tudo, desconfio de todos. Até de mim próprio.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Sem título

É curioso verificar que na polémica ateada pelo plano do governo para a habitação lemos nesta secção do Público principalmente as opiniões daqueles que discordam. Pelo teor das missivas sou levado a pensar que uns são proprietários (ou “privados”), outros aproveitam a oportunidade para dar mais umas porradas no ceguinho e outros, muito simplesmente, não terão muito mais que fazer e, vai daí, segue mais uma carta ao Director. Pessoalmente não sou capaz de formar uma opinião com capacidade de resistência argumentativa mas a minha simpatia vai toda para aqueles que não vêem cumprido o seu direito constitucional à habitação. Vivemos num país de salários baixos (ou miseráveis) onde o preço da habitação em certas zonas compete com o de cidades capitais de países com níveis de vida muitíssimo superiores.

Terminaria fazendo notar ao leitor Bernardo Barahona Corrêa que o camelo, da história da Bíblia, não é um mamífero mas sim um cordame, daí a metáfora com o buraco da agulha. A compreensão deste mundo não está ao alcance de todos os animais; confesso a minha impotência.

 

Rui Silvares

Carta enviada ao director do jornal Público

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

Desprezo

     Os "vistos gold" por um lado, os trabalhadores imigrantes estrangeiros, pelo outro. A grande diferença? Uns têm sonhos, os outros não. Uns lutam pelo direito a sonhar, outros limitam-se a comprá-lo. Uns são pobres e desprezados, outros são ricos e anda por aí muita gente de fato a lamber-lhes as botas e a cheirar-lhes o cu. Como fazem os cães.

domingo, fevereiro 19, 2023

Está tudo bem

     Eu queria estar alegre, mas não estou. Não queria de forma nenhuma estar triste. Também não acontece. Situo-me ali assim, entre uma coisa e outra, exactamente aqui, neste lugar anónimo, nem feliz nem macambúzio; a fluir, simplesmente. É Domingo, vai passando a manhã.

    O céu está nublado mas a aplicação no telemóvel já me informou que daqui por um par de horas o sol vai despontar. Lá fora um pássaro vai chilreando. Tenho a impressão de ouvir martelar do outro lado da rua... talvez não, ainda o dia é criança pequena, quem haveria de o importunar com um  martelo a esta hora? Tudo parece estar bem, se "estar bem" for isto: a ausência de coisa alguma que possa constituir espanto.

    É Domingo, a manhã vai passando.

sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Pergunta estúpida

     Pois, olhar para dentro de nós, não é? Como se a alma fosse um espelho, como se pudéssemos contemplar o interior difuso de que somos feitos. Sentimentos, sensações, memórias. Ah, sim, dissecar a alma com o bisturi da sinceridade. Havia de ser bonito. 

    Suportar a densa banalidade que a solidão ajuda a fabricar e, ainda assim, manter uma humanidade à prova de bala. Ser capaz de ignorar a vontade de atirar boca fora um ou outro impropério, manter a calma olímpica própria de uma divindade amestrada. Possível, sim, mas desejável?

    Queremos ser ovelhas ou preferimos vestir a pele do lobo? Estúpida pergunta que não merece resposta. Cada um de nós é herói no seu próprio filme. Uns dias come-se, outros dias é-se comido. Diria que é assim a lei da vida mas estaria apenas a debitar mais uma frase vazia de sentido.

terça-feira, fevereiro 14, 2023

Preguiçar

     E se não te apetece fazer nada, sentes-te culpado? Não estás no teu direito? Que raio de espeto te enfiaram na consciência que te põe a rodar enquanto te assa o juízo no fogo lento da culpa? E que culpa é esta, é censura social; talvez religiosa? 

    De alguma forma criaram em ti a sensação de que há alguém ou alguma coisa que vigia dia e noite o que fazes e o que trazes contigo. Queres preguiçar, não fazer nada? Então não faças! O vigia que se indigne, que vá fazer queixinhas aos seus superiores. Sejam eles quem forem não serão nunca superiores a ti nem à tua vontade.

domingo, fevereiro 12, 2023

Enquanto Caronte não vem

     Enquanto Caronte não chega contemplamos memórias difusas, inventamos pretextos que preencham as conversas. As memórias vêm e vão, trazidas e levadas pela corrente eterna e lenta do escuro rio. Sob o negrume das águas adivinham-se almas errantes que nadam como se fossem peixes esquecidos do que são. Enquanto Caronte não vem.

    Enquanto Caronte não chega tentamos encontrar motivos que façam do tempo uma coisa viva, uma coisa que possamos viver juntos. Prolongamos a espera. Sabemos que Caronte vem a caminho. Não sabemos se rema ou deixa a sua nave negra simplesmente vogar por sobre as águas quietas. Aguardamos. Sabemos que Caronte lá vem.

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Sabedoria mais ou menos popular

  Quando a esmola é grande o pobre desconfia, o rico pede mais. O pobre pensa que talvez não mereça tanto ou que alguém o pretenda enganar com tamanha generosidade; já o rico, ciente do seu brilho e da forma como funciona o direito divino, acha pouco o que lhe oferecem. Tudo o que possa ganhar e acumular será sempre pouco. É tudo uma questão de hábito.

domingo, fevereiro 05, 2023

Boa tarde

     Bom, passei por aqui só para te dizer "olá, boa tarde", vou para ali fazer outra coisa. Pareceu-me de elementar boa educação cumprimentar-te, sorrir um pouco, acenar-te como se estivesse a zarpar rio acima numa barcaça atulhada de pinguins. Até amanhã. Fica bem.

sábado, fevereiro 04, 2023

Felicidade

     Por vezes sinto que a busca de uma forma de expressão artística vive mais de felizes acasos do que de buscas concretas e objectivas. Ensinaram-me que a transpiração vale mais do que a inspiração. Fingi acreditar. Na verdade não ensino isso a ninguém o que não significa que não valorize o trabalho esforçado. De maneira nenhuma!

    No parágrafo anterior falei em "busca de uma forma de expressão artística" e agora duvido dessa formulação. Fico a matutar se uma coisa assim se procura ou é ela que se revela e dá a conhecer. Terão as ideias (e as formas artísticas) algo que se possa assemelhar àquilo a que chamamos "vida"? Haverá algum universo paralelo habitado por esse género de entidades?

    Seja como for, regressando (penso eu) ao início desta reflexão, diria que a transpiração não garante a felicidade do encontro com a forma artística; que dependerá mais da inspiração, do jogo que jogamos quando lidamos com materiais e conceitos, misturando algures aquilo que trazemos na alma com aquilo que temos nas mãos. É uma alquimia, algo da ordem do maravilhoso. O resultado nem sempre ultrapassa níveis rasteiros mas, sabemos bem, há ainda dias felizes que poderemos viver!

sexta-feira, fevereiro 03, 2023

Da explicação do mundo aos mais jovens

     A tinta encolhe-se na caneta. Tem frio. A caneta sente necessidade de raspar no papel mais do que desejava mas não há razão para que se sinta culpada. A vida dos objectos é assim mesmo, eles não foram criados por deus.

quinta-feira, fevereiro 02, 2023

Rima

     Não sei bem qual aquele filósofo ou ramo da Filosofia que propõe a ideia de que vivemos uma ilusão, que somos parte do sonho de alguém (melhor, de alguma coisa), que, de facto, a existência de seja o que for não é mais do que nada. Se calhar ninguém propõe nada disto e fui eu que o sonhei.

    Por vezes sinto-me muito assim ou sinto-me muito assado; umas vezes estou a sonhar, outras a ser sonhado.