quinta-feira, outubro 31, 2024

Momento perdido

     Ler e reler o que antes escrevera vestia-lhe o espírito com um fato confusor, como o de Fred, a personagem de K. Dick. "Não sou ninguém" - pensou ele. Na verdade queria dizer que poderia ser qualquer um, que seria sempre alguém, porventura alguma coisa. Tremiam-lhe as mãos.

    Quis escrever algo que fizesse sentido mas não foi capaz.

quarta-feira, outubro 30, 2024

Enfartamento

     Hoje sinto-me incrivelmente farto desta merda toda. Talvez amanhã tenha perdido esta estranha sensação de vazio, de falta de motivação. Motivação para quê? - perguntarás tu, leitor amigo. Também não sei, respondo eu. Motivação para nada, motivação para tudo ou apenas para alguma coisa. Suspeito que é precisamente por não saber do que estou a falar que sinto esta espécie de náusea, esta espécie de vertigem, este desgosto em relação ao mundo. E a mim próprio.

    Sinto-me incrivelmente farto desta merda toda.

segunda-feira, outubro 28, 2024

Fábula abstrusa

     Cantam passarinhos dentro desta minha cabeça. Piu, piu, repiupiupiu, cantam eles e eu avanço feliz, aos pulinhos pelo trilho da floresta. As árvores são de betão, as vacas deslocam-se sobre rodas, o prado é pintado de verde com umas pintas vermelhas aqui e acolá. São papoilas. 

    Não tenho tempo a ganhar, como tal não poderei perdê-lo. Um pterodáctilo passeia lá bem no alto, um macaquito sem pêlo olha-me de soslaio. Esconde qualquer coisa encostada ao peito ao virar-me as costas. Não me interesso por ele, muito menos por aquilo que esconde. Quero que o macaco se lixe. Prefiro dar atenção aos passarinhos que me esvoaçam no sótão. Piu-piu-piu-trólarópiupiu. A música é alegre e deixa-me bem disposto.

    Chego finalmente à escola. Tudo parece continuar no devido lugar. A bicharada esvoaça, rasteja, saltita, urra, pipila, zurra, tudo parece confirmar a torpe banalidade do costume. Quem tiver de comer haverá de fazê-lo, quem tiver sina de ser comido haverá de tentar escapar à dentuça alheia.

    Peixes grandes comem peixes pequenos.

terça-feira, outubro 22, 2024

Babel

     O Antigo Testamento é uma obra muito lida e muito comentada. Os exegetas cristãos esforçam-se por fazer leituras que não provoquem desconforto a Jeová, não vá o Diabo tecê-las. Assim, a tradição vai esclerosando o texto e nada de novo acontece. Ler a Bíblia é como ler o manual de montagem de uma estante do Ikea, está lá tudo muito explicadinho e não restam dúvidas, não há margem para erros de interpretação.

    Aconteceu-me recentemente com a passagem que refere a Torre de Babel (Génesis:11).

    Os exegetas interpretam a confusão linguística como sendo um castigo de Deus, penalizando a soberba humana, por pretenderem os homens construir uma torre que alcançasse os céus. Não me parece justo. Segundo a narrativa, a construção da Torre de Babel começa pouco tempo após o Dilúvio (esse sim, parece ser um inequívoco castigo divino, narrado em várias histórias anteriores ao texto bíblico, nomeadamente no Gilgamesh).

    Na minha maneira de ver, depois do Dilúvio a raça humana ficou traumatizada e terá sido o cagaço o combustível que pôs em andamento a construção da torre. Os homens não queriam aproximar-se fisicamente de Deus. Isso não faz sentido, qual a razão que os levaria a pretender proximidade com um ser incorpóreo que, ainda por cima, é omnipresente. Nem um macaco pensaria em semelhante patetice!

    Na minha maneira de ver, a construção da torre teve como principal motivo afastar os homens de um possível segundo dilúvio. Eles não queriam aproximar-se de nada, apenas afastar-se de nova subida das águas. 

    Então, porque haveria Jeová de os impedir de tal coisa? Porque Jeová é um Deus ciumento, vingativo e controlador e, evitando que os seres humanos conseguissem protecção nas alturas, conseguiria mantê-los sob pressão e ameaça, garantido desse modo que as suas leis e regras seriam mais facilmente observadas. Deus queria carneiros no Seu rebanho.

    Só não percebo muito bem porque carga de água criou Ele o homem se a carneirada lhe convinha muitíssimo melhor. Talvez por ser um Deus cínico? Se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança decerto não lhe terá transmitido apenas a beleza simétrica que nos caracteriza. Somos bichos de personalidade bem vincada, Pai.

quinta-feira, outubro 17, 2024

Palavras em palco

     A palavra ou vem controlada, com intenção, ou transporta consigo uma certa dose de confusão e  arrisca-se a arrastar a cena penosamente. Os actores parecem improvisar o gesto com mais à vontade do que improvisam com palavras. 

    Tudo isto poderá confirmar a ideia de que precisamos de saber o que fazer no palco antes de nos atirarmos a fazê-lo. Mesmo os resultados positivos de uma improvisação são mais tarde recuperados em sessões de ensaio de modo a procurar um sentido mais estruturado para o seu significado. Não consigo imaginar os espectáculos idealizados por Merce Cunningham.

    Lá no fundo, a ideia é não sermos demasiado obcecados com regras na abordagem ao objecto artístico. Nem tão radicais como Cunningham nem tão rígidos como um ídolo cicládico.

domingo, outubro 13, 2024

Diálogo ao pé da escada

     - Mas isso é mentira!

     - Isto é mentira? Isto é mentira... mas em que mundo vives tu? Nos dias que correm a mentira é uma questão de opinião.

     - Então, e a verdade?

     - A verdade é um conceito plástico; molda-se de acordo com os teus objectivos. Porra, não aprendes nada comigo!?

     - Estou a tentar, mas não é fácil. Contigo nada é definido, nada é concreto, está sempre tudo a mudar. Uma coisa é isto e, um minuto mais tarde, essa coisa já se transformou em outra coisa. É confuso.

    - É confuso porque eu sou bom naquilo que faço.

    - Eu sei, mas é difícil acompanhar as tuas constantes mudanças de opinião.

    - Eu não mudo de opinião, limito-me a variar o ponto de vista, encaro as situações de diferentes perspectivas logo, a mesma questão admite uma certa variedade de respostas. Não aprendes mesmo nada comigo.

sábado, outubro 12, 2024

Dito repensado

     Comeram-me a carne mas não hão-de roer-me os ossos. Os meus ossos, quem os rói sou eu!

segunda-feira, outubro 07, 2024

Ai, ai...

     Estou confuso; não distingo verdade de mentira. Não distingo o primeiro do segundo nem uma coisa da outra. Estou confuso. Não consigo separar o erro da coisa certa e a verdade nem sempre parece ser a coisa certa. Estou confuso; a mentira, muitas vezes, corrige erros profundos, terríveis erros. Sinto-me confuso, ai, ai, sinto-me confuso.

domingo, outubro 06, 2024

Os nervos

    - Dói-me o sistema nervoso, ando a tomar uns comprimidos. Mas os comprimidos desarranjam-me a bexiga. E mijo como uma doida.

    - E depois?

    - E depois? Depois estou numa reunião, estou num ensaio, estou na cama e... tungas! Dá-e uma ânsia mijadeira que não me aguento.

    - Mas ficas bem?

    - Mal não fico, mas o bem que os comprimidos me fazem, mijo-o todo e voltam-me os nervos a ficar doridos.

    - Vives num autêntico circo vicioso.

    - É um circo com leões, com cães e com macacos!